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28 fevereiro 2019

Balada do esplanada

No texto "Sobre poesia oral e poesia escrita" Décio Pignatari anota que "quando surge a poesia, as malhas sociais já começaram a emaranhar-se, e o poeta vê reduzindo-se seu auditório, até que suas excogitações poéticas se transformem no monólogo dos dias atuais". E completa: "o poeta faz do papel o seu público, moldando-o à semelhança de seu canto, e lançando mão de todos os recursos gráficos e tipográficos, desde a pontuação até o caligrama, para tentar a transposição do poema oral para o escrito, em todos os seus matizes" (Ver Teoria da poesia concreta).
Parece ser este o motor do desejo do eu-lírico de "Balada do esplanada", de Oswald de Andrade, ao escrever: "Eu qu'ria / Poder / Encher / Este papel / De versos lindos / É tão distinto / Ser menestrel". O pretendente a menestrel sabe que da poesia moderna o suporte é o papel, não mais a voz.
Quem lê a obra - poesias, manifestos, teses, ensaios - do poeta Oswald de Andrade (1890-1954) imagina que a estética modernista da escrita refletisse no modo como Oswald vocalizava seus poemas. No entanto, o que se ouve nas raras gravações (de por volta 1950) da voz do poeta no disco Ouvindo Oswald (projeto de Augusto de Campos e produção musical de Cid Campos, 1999) presta tributo à grandiloquência, à fala (por que não dizer?) burguesa, à oratória pomposa. O alongamento e a altura da penúltima sílaba de cada verso confirmam isso.
Poderíamos dizer que na releitura antropofágica do Modernismo feita pelos Tropicalistas Caetano Veloso entendeu esse arcaísmo contaminante do moderno mais quando canta "Coração materno", de Vicente Celestino, do que quando canta "Tropicália", por exemplo. Mas se temos comumente interpretado como irônica a versão de Caetano para a emblemática canção de Vicente, estaria também carregada de ironia a vocoperformance de Oswald?
No texto "A arte vocal burguesa" Roland Barthes escreve que "esta arte é essencialmente sinalética, pretendendo impor, não a emoção, mas os signos da emoção". É o que faz o sujeito cancional de Oswald: "não se contenta nem com o simples conteúdo semântico das palavras, nem com a linha musical em que se apoiam: precisa ainda dramatizar a fonética", diria Barthes (ver Mitologias).
Tomemos como exemplo o poema "Balada do esplanada" (Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade, 1927). Para começar, vejamos a terceira estrofe, núcleo da ironia oswaldiana: "Eu qu'ria / Poder / Encher / Este papel / De versos lindos / É tão distinto / Ser menestrel". Ao vocalizar o texto, o poeta encarna esse menestrel - artista medieval que declamava poemas de outrem para a corte. Para ser eficaz em sua função de entreter (e, por vezes, denunciar), o menestrel precisava equilibrar cantoria, declamação e dramatização na voz.
Oswald escreve uma balada imperfeita, posto que, segundo Norma Goldstein (ver Versos, sons, ritmos), este poema de forma fixa "costuma apresentar três oitavas (estrofes de oito versos, geralmente com versos de oito sílabas" (ver Versos, sons e ritmos). O poema de Oswald tem sete estrofes, mais um adendo "Oferta", cujos versos, em geral, tem a metade das sílabas formais. Podemos interpretar como um exercício de transgressão entre escrita e voz, oralidade e texto, por exemplo, as aliterações e as terminações em /or/?
O eu-lírico fracassa no desejo de ser menestrel, na escrita, embora tente fazê-lo na enunciação do poema. Ou melhor, a escrita falha ao registrar o que é da voz. O sujeito cancional burguês gerado ironicamente pelo Oswald leitor/trovador "teima em considerar ingênuos os seus consumidores, para os quais é preciso mastigar a obra e indicar exageradamente a sua intenção, receando que ela não seja suficientemente compreendida", diria Barthes.
O eu-lírico começa o poema assim: "Ontem à noite / Eu procurei / Ver se aprendia / Como é que se fazia / Uma balada / Antes de ir / Pro meu hotel". As inflexões e as modulações elocutórias do sujeito cancional oswaldiano carregam nas tintas, "desenhando" a emoção para o ouvinte. "Sublinhar a palavra dando um relevo abusivo à sua fonética, querendo que a gutural da palavra creuse seja a enxada que rasga a terra e a dental de sein a doçura penetrante, é praticar uma literalidade de intenção, e não de descrição, é estabelecer correspondências abusivas. Deve-se, aliás, relembrar aqui que o espírito melodramático, que caracteriza a interpretação de Gérard Souzay, é precisamente uma das aquisições históricas da burguesia: reencontramos esta mesma sobrecarga de intenções na arte dos nossos atores tradicionais, que são, como se sabe, atores formados pela burguesia e para ela", diria novamente Roland Barthes.
Oswald estaria consciente disso ao ler seu poema em voz alta, ou estaria apenas apegado às convenções elocutórias de sua época? As gravações são feitas pouco antes de sua morte. Esse desejo de significar cada detalhe do verso faz parte da ironia? De acordo com Barthes, "esta arte analítica está votada ao fracasso, sobretudo no campo da música, cuja verdade só pode ser de ordem respiratória, prosódica, e não fonética". O autor do poema "Pronominais" - "Dê-me um cigarro / Diz a gramática / (...) / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro" - teve a intenção de, como "o bom negro e o bom branco da nação brasileira", destruir "uma ordem intelectual parasita na superfície contínua do canto" (Barthes)?
Menestrel amador, o eu-lírico é incorporado na leitura expressiva, demasiado espetacular, emocionada, absolutamente literal, rompendo com a nuance interna do desejo (prosódico das ruas, não dos salões) de encontrar poesia "Na dor / Na flor / No beija-flor / No elevador", conforme escreve na derradeira estrofe, antes do adendo: "Quem sabe / Se algum dia / Traria / O elevador / Até aqui / O teu amor".
Esta experiência da poesia deslocada do progressivo lugar de aburguesamento do poeta na cultura ocidental é, sem dúvida, fundamental para entender a proposta estética oswaldiana. Da dor ao elevador, Oswald descentraliza o impulso lúdico. A natureza da poesia é construída: ao rimar dor com elevador, o poeta aponta a permanência da rima, apesar do progresso. Ou seja, aponta a tradição na ruptura: "Pra m'inspirar / Abro a janela / Como um jornal".
Tudo isso é percebido no modo irônico da leitura em voz alta feita pelo autor. A recusa à linguagem tradicional, ao "lado doutor", como ironiza Oswald no "Manifesto Pau-Brasil" e o discurso anti-retórico são enfrentados com tradição e retórica. "A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos", portanto, não se reflete na voz que lê o poema escrito.
Em 1987, Cazuza encerra o seu disco Só se for a dois com a apresentação de uma versão adaptada do poema "Balada do esplanada". Se Oswald declamava e dramatizava, Cazuza canta e distensiona o "fracasso" do eu-lírico. A sonoridade blues acompanha a voz do cancionista numa balada, esta sim, vocoperformada mais aos moldes da estrutura coloquial da linguagem. O ouvinte é embalado por uma canção de aparência amadora, como si quem canta estivesse perto (íntimo) de quem ouve. Sem o afastamento corporal imposto pela grandiloquência da performance vocal (irônica?) de Oswald. Cazuza faz uma canção para tocar no rádio.

Na balada "Burguesia" (1989, de Cazuza, George Israel, Ezequiel Neves) Cazuza faz o dignóstico: "A burguesia fede / A burguesia quer ficar rica / Enquanto houver burguesia / Não vai haver poesia"; e a autoavalição: "Eu sou burguês, mas eu sou artista / Estou do lado do povo".
E aqui retorna à pergunta: o desejo de significar cada detalhe do verso faz parte da ironia oswaldiana? Ou o poeta apenas reproduz um modo de leitura da época, a la século XIX? A pergunta é pertinente porque Oswald vai utilizar os mesmos procedimentos entoativos para ler outros poemas, estes sem o conteúdo crítico à vida burguesa motor de "Balada do esplanada".
Seja como for, o disco Ouvindo Oswald - sua fundamentalidade nas pesquisas em torno da palavra cantada - reúne 52 poemas e 2 manifestos. Além da voz de Oswald lendo 15 poemas seus, temos Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Arnaldo Antunes, Lenora de Barros, Omar Khouri, Pauli Miranda e Walter Silveira performando a escrita na voz. Um disco para ouvir com ouvidos livres!

***

Balada do esplanada
(Oswald de Andrade)

Ontem à noite
Eu procurei
Ver se aprendia
Como é que se fazia
Uma balada
Antes de ir
Pro meu hotel.

É que este
Coração
Já se cansou
De viver só
E quer então
Morar contigo
No Esplanada.

Eu qu'ria
Poder
Encher
Este papel
De versos lindos
É tão distinto
Ser menestrel

No futuro
As gerações
Que passariam
Diriam
É o hotel
Do menestrel

Pra m'inspirar
Abro a janela
Como um jornal
Vou fazer
A balada
Do Esplanada
E ficar sendo
O menestrel
De meu hotel

Mas não há poesia
Num hotel
Mesmo sendo
'Splanada
Ou Grand-Hotel

Há poesia
Na dor
Na flor
No beija-flor
No elevador

  Oferta

Quem sabe
Se algum dia
Traria
O elevador
Até aqui
O teu amor

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