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16 março 2016

Mortal loucura



Poeta de uma época em que a ideia de autoria ainda não estava configurada, posto que o eu (corpo individual) vivia na movência discursiva, diluído no corpo místico anônimo e coletivizado administrado pela Igreja-Estado, Gregório de Matos faz de “Mortal loucura” um libelo à moral de então: “Quem do mundo a mortal loucura ... cura, / A vontade de Deus sagrada ... agrada”.
“Sendo produtos de práticas fundamentadas na metafísica escolástica, as letras coloniais não conhecem a divisão dos regimes discursivos posteriores ao Iluminismo”, anota o professor João Adolfo Hansen. E completa: “Em todos os discursos que examinei, encontrei a mímese aristotélica, a definição escolástica da pessoa, a teologia-política católica, a tópica da ‘razão de Estado’, a ética cristã e um fortíssimo sentido providencialista da história”.
A didascália (ou cabeçalho) que hoje acompanha o citado poema de Gregório reforça a intenção moralizante: “No sermão que pregou na Madre de Deus D. João Franco de Oliveira pondera o poeta a fragilidade humana”. E se o humano é frágil, cabe a quem Deus deu o cuidado dos homens pregar a cura da mortal loucura: a usura, a cobrança pelo uso (indevido) das coisas de Deus. Daí o “cuidar de si”, sugerido no poema. “Quem não cuida de si, que é terra, ... erra” e, mesmo amados pelo “alto Rei”, devemos desaferrar os desejos terrenos e atar nossas vidas à vontade de Deus.
O uso da flor como símbolo da efemeridade da vida é bastante recorrente na poesia atribuída a Gregório de Matos: “É a vaidade, Fábio, nesta vida, / Rosa que da manhã lisonjeada / (...) / Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa / De que importa, se aguarda sem defesa / Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?”, diz noutro poema. A flor murcha, a juventude passa, o viço esvai, a vaidade é inútil. “Gozai, gozai da flor da formosura, / Antes que o frio da madura idade / Tronco deixe despido, o que é verdura”, canta noutro soneto. Para que vaidade, se “no fim desta jornada” a “flor da formosura” será nada?
O soneto de Gregório não tem título. Mas não foi à toa que José Miguel Wisnik intitulou a canção – a poesia musicada – de “Mortal loucura” (Onqotô, 2005). É em torno dessa ideia que os versos desdobrados em eco giram numa espiral ascendente que figurativizam as ladainhas católicas, seus monocórdios tons, e iconizam o sacral.
Originalmente cantadas, já que Gregório não publicou livros, aliás, reza a lenda que ele vivia a cantar suas poesias acompanhado de uma guitarra rústica, as palavras do poeta demandam voz. Caetano Veloso, parceiro de Wisnik no disco Onqotô (disco feito sob encomenda para o Grupo Corpo), musicou o soneto “Triste Bahia”, incorporando à poesia de Gregório de Matos ritmos e citações musicais do folclore e do domínio público da Bahia. Caetano atualizou a “Triste Bahia” para os anos de repressão política e estética. O disco Transa é do período do exílio de Caetano.
Por sua vez, já tendo sido cantada por Lívia Nestrovski (Duo, 2012), Mônica Salmaso (Alma lírica brasileira, 2011), José Miguel Wisnik (Indivisível, 2011) e Izabel Padovani (Mosaico, 2008), “Mortal loucura” agora figura na trilha sonora da telenovela Velho Chico (2016), na voz de Maria Bethânia.
A modulação vocálica de Bethânia intensifica a intenção educadora dos versos do poema e estão a serviço da mensagem da letra da canção. No segundo terceto, temos o verso-chave: “Ó voz zelosa, que dobrada ... brada”. Nos dois tercetos, a cantora alonga ainda mais as vogais, aumenta a emissão vocal, dobrando a altura da voz, oitava acima, subindo aos céus o canto ao “alto Rei” – oração que desaterra a terra. Forma é conteúdo.
Com uma ambiência sonora composta por Marcio Arantes (baixo synth e guitarras), Siba (rabeca), Guilherme Kastrup (percussão) e Paulinho Dalfin (viola caipira), a atual versão de “Mortal loucura” devolve o poema de Gregório de Matos à Bahia colonial, arcaica, medieval e Popular (com P). Para isso, importa atentar para as variações modais da rabeca, suas vibrações interioranas, em contraste com o baixo synth e as guitarras do litoral. É dessa sintaxe sonora complexa, desse dualismo estésico que canta Gregório: um poeta cantor. Repentista? Precursor do rap?
Seja como for, a versão cantada por Bethânia, adensando elementos já sinalizados na versão de Mônica Salmaso, expõe o jogo do humano entre o antro e o teocentrismo. O humano cindido entre o Estado e o estado-de-coisas individuais. Questão importante para uma telenovela que trata de um Brasil antigo, colonial, de um tempo em que a família, a terra e a propriedade asseguravam a manutenção da existência do “homem de bem”.
E se a música cura, a voz da menina de Oiá, daquela que resignificou o uso da poesia escrita nos palcos da poesia cantada é o unguento necessário para a preservação da “flor da formosura”, da juventude, do viço, do novo que sempre vem, do novo que permanece novo, transpassando os tempos.

***

(Gregório de Matos / José Miguel Wisnik)

Na oração, que desaterra......... a terra (aterra),
Quer Deus que a quem está o cuidado.... dado,
Pregue que a vida é emprestado........... estado,
Mistérios mil, que desenterra.............. enterra.

Quem não cuida de si, que é terra,.......... erra,
Que o alto Rei, por afamado............... amado,
É quem lhe assiste ao desvelado............. lado,
Da morte ao ar não desaferra,.............. aferra.

Quem do mundo a mortal loucura.......... cura,
A vontade de Deus sagrada.................. agrada
Firmar-lhe a vida em atadura................. dura.

Ó voz zelosa, que dobrada..................... brada,
Já sei que a flor da formosura,............... usura,
Será no fim desta jornada....................... nada.

21 comentários:

Suzete Dantas disse...

Belíssima análise, embasada em grande conhecimento literário e musical, aliado a uma sensibilidade transcendente!
Agradeço por ter tido a oportunidade de ler. Deleite total!!
Sugiro a publicação na Cult, na folha Ilustrada, em edições culturais da Paraíba, de Pernambuco, do Brasil! precisamos todos conhecer melhor Gregório, atentar os ouvidos para Bethânia e, afinal, merecemos o prazer de ler um texto bonito como este - lírico, didático, emocionante!

roger disse...

A pessoa pensa logo assim : caramba Bethânia podia gravar tudo de todos ou de qualquer um e ainda assim nos puxar pra dentro do som de uma forma ímpar, teses a parte e concordo com todas até as que nem existem ainda , de que Maria Bethânia consegue esse feito . Mais como gosto muito da Bethânia posso ter o censo crítico comprometido .... MaisConfesso que hipnotiza

roger disse...

É claro parabéns do tamanho do São Francisco muito didático ... Amei vlw ... João Pessoa Pb

Ramira disse...

Análise informada e sensível. Belíssimo poema-canção.
Como lembra outra canção, que também está na trilha,"cantar parece com não morrer"- salve a arte, só nela transcendemos.

Unknown disse...

Leonardo mutio obrigado por postar seus comentarios e visao.....estava faltando e consegui encontrar.....
Uma pergunta...considera como uma oração?
Abrs e grato.

Tati disse...

Maravilhosa análise, de uma sensibilidade absurda, sinto-me um grão de mostarda ao apresentar minhas pobres poesias, rsrsrs.

Adriana alvarenga disse...

Excelente narrativa, ótimo ver esse poema lindo com essa ótica. Gostaria ainda de saber, em qual livro do Gregório que eu encontraria esse poema, tenho dito essa dificuldade.
Grata.

Marcelus disse...

Perfeita análise da poesia e a interpretação de Betânia que vivifica o poema. Nem precisa ser fã desse colosso, mas ao conhecer a síntese da poesia pelo amigo Leonardo (Parabéns com P), é impossível não admirar a profundidade da poesia (G. Matos) e da assombrosa interpretação que irrompe os limites dos reles mortais, como eu.

Unknown disse...

Profundo, lindo, emocionante. Uma linda poesia,que musicada e Depois cantada pela da Rainha dos Raios( Maria Bethânia) me deixa arrepiado!

Robson de Barros disse...

Demais essa poesia musical

Unknown disse...

Parabéns pela análise a um só tempo profunda, rica em dados e muito bem elaborada. Gosto de todas as versões que já ouvi desde Wisnick, Caetano, Monica Salmaso, Bethânia...

Delpech disse...

Ouvir uma canção dessa na voz de Bethânia, é algo maravilhoso.

Delpech disse...

Ouvir uma canção dessa na voz de Bethânia, é algo maravilhoso.

Unknown disse...

Perfeita canção!

Unknown disse...

Perfeita canção!

Unknown disse...

"Parece que os ecos do poema estão pedindo para soarem".já disse o próprio Wisnik!

Paulo Weinberger (Paulo.W) disse...

Caro Leonardo!
Eu compus uma trilogia de canções sobre poemas nos anos 70 e em 1980 a minha música Fragilidade Humana - sobre poema de Gregório de Matos - foi gravada em SP por Maricenne Costa, com um lindo arranjo de Frederyko ou Fredera, grande guitarrista do Som Imaginário, Milton, Gal, Gil, Elis, Gonzaguinha, etc... O guitarrista Heraldo do Monte também participou com um lindo solo, além do solo final com guitarra-distorção do próprio Fredera.
Wisnik quando compôs a Mortal Loucura não conhecia a minha Fragilidade Humana. Mostrei a ele por email depois - e ele gostou.
Se vc usa o Whatsapp, posso mandar o mp3 lá pra vc ouvir - ou então por email. O meu é pauloweinberger@yahoo.com.au - moro em Sydney, Australia.
Abraço...

Ed disse...

Que análise mais bem feita! Que prazer ao lê-lo. Parabéns é pouco!!!

Cleia disse...

Belíssima e densa análise!

Emerson disse...

Eu gostaria...

Anônimo disse...

Ser um grão de mostarda já é, em si, muito poético.