Entrevista ao MetaBlog do Música Esparsa.
Para ser lida ao som de "Museu", de Chico César.
Música Esparsa – Quando e por que você
começou a se interessar pela escrita sobre música e, especificamente, em
divulgar suas ideias através dos blogs 365 Canções e Lendo Canção?
Leonardo Davino:
Comecei a me interessar pela escrita sobre canção ainda na graduação em Letras,
na UFPB [Universidade Federal da Paraíba]. Fiz parte de um Projeto de Iniciação
Científica com o prof. Amador Ribeiro Neto sobre a poesia de Caetano Veloso.
Desde então, a interface Poesia e Outras Artes, em especial a canção, tem sido
meu objeto de estudo. O blog 365 Canções
surgiu da ideia de montar um corpus original
para a minha tese de doutorado. Eu queria pensar a canção a partir do acaso
(escrever diariamente sobre a primeira canção que eu ouvisse ao ligar o rádio)
e das tensões com as teorias até então estudadas, pensar a produção de
subjetividades, ou o que tenho chamado de sujeito cancional, a partir da
audição de uma canção. O blog 365 foi um
exercício crítico-teórico para a tese, portanto. Foi em cima desses pequenos
textos diários, escritos ao longo de 2010, que escrevi minha tese, defendida em
2014 (UERJ). O Lendo Canção, por sua vez, é um
desdobramento do 365. Os leitores do 365 e eu não queríamos parar de ouvir, ler e escrever, foi então que
surgiu o Lendo Canção, onde, sem a mesma
periodicidade, até porque não tenho mais o tempo de dedicação exclusiva que eu
tinha na época da tese, continuo pensando a canção popular, a poesia
vocalizada, as vocoperformances.
ME – Alex Ross, crítico musical dos
E.U.A., escreveu o seguinte em um de seus textos: “Eu odeio ‘música clássica’:
não a coisa, mas o nome. Ele aprisiona uma arte tenazmente viva num parque
temático do passado. Elimina a possibilidade de que música no espírito de
Beethoven ainda possa ser criada hoje. Condena ao limbo a obra de milhares de
compositores ativos que precisam explicar a pessoas de outro modo bem
informadas o que fazem para ganhar a vida. Essa expressão é uma obra-prima de
publicidade negativa, um tour de force de anti-propaganda. Gostaria que
houvesse outro nome. Invejo o pessoal do jazz que fala simplesmente de ‘a
música’. Alguns fãs de jazz também chamam sua arte de ‘música clássica dos
Estados Unidos’, e eu proponho uma troca: eles podem ficar com o ‘clássica’, eu
ficarei com ‘a música’.” [Escuta só: do clássico ao pop. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011, p. 19]. Na tua percepção, quais rótulos utilizados atualmente
mais atrapalham do que ajudam na relação dos artistas e do público em geral com
a música?
LD – Entendo o que Alex
Ross diz por uma perspectiva de lugares de escuta e lugares de feitura. A
expressão “música clássica” parece contaminada por um lugar de poder distante,
elitizado, para poucos. Nesse sentido, sim, a “música clássica”, em
contraposição à “música moderna”, à “música contemporânea”, surge mais como um
signo de poder social do que como uma tipologia possível. Ainda nesse sentido,
a “música clássica” seria feita por e para eleitos sociais, eliminando a
possibilidade de ser identificada na “música popular”, outra opositora sua, por
exemplo. Diante de um mundo onde as fronteiras entre margens e centros estão a
cada instante sendo problematizadas, a expressão “música clássica”, como anota
Ross, “é uma obra-prima de publicidade negativa, um tour de force de
anti-propaganda”. Mas somos instintivamente fadados aos rótulos. Queremos
classificar tudo ao nosso redor. Com a música não é diferente. Particularmente,
costumo dizer que trabalho com “canção popular mediatizada”. Sei que é uma
expressão ampla, pois a mediação é uma marca de nossos tempos: une clássica,
erudita, popular, vanguarda. No entanto, depois de termos artistas como Walter
Smetak, Heitor Villa-Lobos, Tom Jobim, John Cage, Naná Vasconcelos, Tom Zé, a
Tropicália, o Mangue Beat, entre tantas outras expressões de sonoridade que
nublam as definições e os rótulos, penso ser mais produtivo trabalhar com a
multiplicidade do que com classificações. É mais difícil, mas é mais digno dos
objetos e do tempo atual. Pensemos, por exemplo, como o samba passou da margem
para o centro, quais os procedimentos feitos para que houvesse essa
(tumultuada) passagem. É assim que penso o funk, o rap, por exemplo. Voltando a
pensar próximo a Alex Ross, os rótulos são mais carregados de estigmas sociais
de discriminação ou legitimidade do que de conteúdo artístico imanente nas
obras rotuladas.
ME – Considero uma frase do André
Bazin, citada a seguir, uma importante fonte de inspiração para persistir na
divulgação da música independente: “A função do crítico não é trazer numa
bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar o máximo possível,
na inteligência e na sensibilidade dos que o leem, o impacto da obra de arte”.
De alguma maneira você também entende a definição do autor para a “função do
crítico” (independente de você se considerar assim) como algo próximo do que
publica no 365 Canções e no Lendo Canção?
LD – Creio que sim.
Como professor de Literatura e pesquisador de Canção, penso que se há uma
função do crítico essa deve ser a de iluminar por dentro a obra estudada. Isso
faz com que aconteça isso que o Bazin propõe, ou seja, prolongar uma verdade
possível (uma verdade estética, já que a Verdade não existe) na inteligência e
na sensibilidade (que para mim são faces de uma mesma moeda) do ouvinte/leitor.
Mais do que explicar a obra, algo impensável num mundo cada dia mais
inexplicável, creio que o crítico deve conversar com a obra, tensionando a
verdade ali exposta, refletindo sobre as reverberações dessa obra no exercício
cotidiano de viver. Daí que o crítico, tal como Ezra Pound afirmou, também se mostra
pelas escolhas – tanto teóricas, quanto artísticas – que faz. Para mim,
explicar a obra é silenciar a obra e, consequentemente, o ouvinte-leitor. Se
ainda existe uma função para a obra de arte, acredito que essa seja a de
provocar pane nas certezas, estimular a dúvida. Portanto, cabe ao crítico,
manter a dúvida erguida pela e na obra.
ME – Deixe um recado para
os leitores do Música Esparsa.
LD – Dedico-me
sobretudo a ouvir canção como quem ouve Sereias. As Sereias, mais do que levar
à morte, levavam o ouvinte ao reconhecimento de si, ou seja, à morte do
“indivíduo velho” e à revelação do novo, das possibilidades. Meu recado seria
afirmar que cada canção guarda (pelo menos) um recado, ouça-lo como Ulisses,
sem cera nos ouvidos, para que o nó na orelha (a dúvida estética) possa nos
impulsionar para frente, para as possibilidades de reflexão ética da vida e do
viver.
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