Escrevendo
sobre Poesia e História, Octávio Paz observa que "os 'poetas malditos' não
são uma criação do romantismo: são o fruto de uma sociedade que expulsa aquilo
que não pode assimilar. A poesia não ilumina nem diverte o burguês. Por isso
ele desterra o poeta e faz dele um parasita ou um vagabundo" (O arco e a lira).
Se
por um lado, distanciamo-nos um pouco da mirada de Paz, demasiadamente imersos
que estamos hoje na "sociedade do espetáculo", com o entretenimento
pesando mais que a cultura (conjunto de práticas de um lugar) e a arte
(conjunto de práticas específicas de uma linguagem), por outro lado, essa
definição atemporal de poesia e de poeta, recobrando preceitos platônicos,
sugere que todo poeta e toda poesia são malditos, párias, fantasmas,
vagabundos.
Isso
é percebido do lugar que a poesia ocupa nas estantes das livrarias até os espaços
destinados aos poetas nas celebradas festas-feiras literárias. Passando pelo
fato de que a poesia não tem valor, cotação. Desse modo, seguindo essa linha de
raciocínio, podemos dizer que os adjetivos que damos à poesia e aos poetas -
maldito, marginal - são uma exigência do ordenamento social e do mercado.
Forma
é conteúdo. Porém, observando particularmente a nossa historiografia, ancorada
em leituras sociológicas, percebemos que os adjetivos, bem como a periodização
da literatura feita no Brasil, além de tomar por empréstimos termos estrangeiros,
estão mais fincados nos temas. E poesia, sendo arte, é forma.
É
desse modo que, quando a noite entra no jogo, notada e assumidamente com os
românticos, o conceito de "maldito" cola na poesia e no poeta. A
noite e seus mistérios, suas figuras e personagens nublam a harmonia sacerdotal
e filosófica. A noite revela (para usar um termo caro a Octavio Paz)
sentimentos e sensações até então meticulosamente controlados, ordenados pela
religião. Se "a missão do poeta é restabelecer a palavra original, distorcida
pelos sacerdotes e pelos filósofos", como sugere Paz, as perguntas
lançadas pelos românticos persistem sendo a tônica da poesia desde sempre.
Por
essa perspectiva, as canções que Luís Capucho guarda no disco Poema maldito (2014) são malditas tanto
nos temas, quanto na performance vocal de dicção "marginal",
"fantasmática", não-radiofônica, livre dos programas de afinação
vocal. Dicção que vocaliza sujeitos noturnos, de "braços atrofiados",
camponeses de bad trip, desassossegados, que acordam babados "tarados de
você".
Tomemos
como exemplo a canção que dá nome ao disco. Assinada por Luís Capucho e Tive,
"Poema maldito" recupera questões urgentes à poesia oitocentista
brasileira, porém, atualizado em gesto afórico, ou seja, no entre-lugar da euforia
e da disforia.
O
sujeito da canção, em primeira pessoa, diz: "Sou luís capucho e escrevi o
Cinema Orly e tenho namorado". Paquerado na praia por "um sujeito
aleijado", vai à casa desse beber e ver filme pornô. Mas o outro cai no
chão. De "louva-deus sagrado" passa a ser visto como um "inseto
moribundo".
Usar
o cotidiano como objeto estético requer repertório literário e artístico. O que
poderia parecer a "escrita automática" de uma memória (os verbos
estão no presente, mas o "vou embora dali" demonstra distância
temporal) revela-se a consciência entre as coisas, o homem e a linguagem: a)
referência biográfica a Luís Capucho, autor e personagem do fato cancional; b)
uso das comparações - "louva-deus" e "inseto moribundo"; c)
presença do sujeito de "braços atrofiados" como tema noturno, em
contraste com a situação vivida na praia; d) apatia diante da agonia do outro;
e) exploração do tempo em flashs
cinematográficos; f) homoerotismo.
Por
sua vez, o sexo é dessacralizado, dessublimado. A interdição sexual é resultado
do confronto quase barroco entre a ideia de um "louva-deus" e a
revelação de um "inseto moribundo". O corpo do outro interdita e
intimidade, promove um abandono próprio capturado e ressemantizado pelo sujeito
da canção.
Mas
de nada valeria esse trabalho verbal, esse contar das coisas estranhas sem a
vocalização afórica - estéril - de Luís Capucho, dando significado cruel, mau,
maldito ao sujeito cancional. Esse sujeito parece dialogar esteticamente com os
versos do poeta decadentista Medeiros e Albuquerque: "Que importa a Idéia,
contanto / que vibre a Forma sonora, / se da Harmonia do canto / vaga alusão se
evapora?".
Esses
versos traduzem a dicção de Luís Capucho: crua. Como crus são os temas
abordados em sua poesia, prosa, canções. O autor de Cinema Orly transita com movimentos estranhos ao mainstream: entre
sutilezas e brutalidades, gestos e afetos, tradição e ruptura, fatos culturais
e estética. E a autorreferência cruel, diferente dos selfies comuns e
integrados de "alegria", é artifício que revela o outro lado do
espelho onde se reflete o espírito (ou seria o fantasma?) de uma época.
***
(Luís
Capucho / Tive)
Tô
na praia
Com
um sujeito aleijado
Que
busca intimidade comigo
Ele
tem os braços atrofiados e isso faz
Com
que ele se pareça um louva-deus sagrado
Estamos
conversando
Ele
me diz que vive só
E
que prefere assim
Porque
gosta de se deitar no sofá
A
ver filme pornô
Eu
disse:
-
Sou luís capucho e escrevi o Cinema Orly e tenho namorado.
Em
todo caso ele me chama pra beber e ver filme pornô na sua sala.
Então,
se aproxima e trata de sentar-se do meu lado
Mas
não sei como aconteceu, ele caiu no chão
Com
movimentos estranhos que não entendo
Fico
um tempo a reparar que não vai se levantar sozinho
E
vou embora dali
E
o abandono em sua agonia de inseto moribundo.
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