"A canção popular é produzida na
intersecção da música com a língua natural. Valendo-se de leis musicais para
sua estabilização sonora, a canção não pode, de outra parte, prescindir do modo
de produção da linguagem oral. Daí a sensação de que um pouco de cada nova obra
já existia no imaginário do povo, senão como mensagem final ao menos como
maneira de dizer", anota Luiz Tatit em Musicando a semiótica (p. 87).
Tendo isso em mente, podemos dizer que,
se é um erro falar em um "jeito certo" de cantar essa ou aquela
canção, não podemos esquecer que cada mensagem "pede" por um jeito
mais “apropriado” de emissão vocal. Ou seja, se para que ocorra a eficácia da
intenção na emissão de uma mensagem o que é dito precisa estar em sintonia com o
modo de dizer, e é assim, por exemplo, que identificamos um ator canastrão, na
canção acontece de igual modo. "A própria credibilidade enunciativa
implicada nas execuções vocais depende do êxito da apreensão simultânea do modo
de produção da linguagem oral em seu interior" (Tatit, idem, p. 88).
É no reconhecimento, pelo ouvinte, de
que aquilo só poderia ser dito/cantado daquela forma que reside o vigor da canção:
na integração entre letra e melodia na voz; na "equivalência entre sintaxe
e ritmo", anota Tatit (idem, p. 87). Dito de outro modo, se não há um
único "jeito certo" de dizer/cantar determinada mensagem, há um
acordo íntimo e invisível entre emissor e ouvinte para que este reconheça na fala/canto
daquele a credibilidade e o efeito de real necessários à fruição e, quiçá, ao
entendimento. "Nossa vasta experiência com a linguagem oral [provoca] um
efeito inevitável de 'realidade' enunciativa: alguém diz alguma coisa aqui e
agora" (Tatit, idem).
Vem daí, e da memória cancional do
ouvinte, toda a problemática e os perigos que residem na mudança de ritmo, de
frequência melódica de uma canção cuja estabilidade do conteúdo na forma, e
vice-versa, já havia sido engendra por um cancionista. Volto ao exemplo da
versão de "Chuva, suor e cerveja" (Caetano Veloso) na voz de Simone (Quatro paredes, 1974; Em boa companhia, 2010).
Tendo sido gravada por Caetano Veloso (Muitos carnavais, 1989) em formato de
frevo, isto é, tematizando a ação de quem se movimenta durante uma folia
carnavalesca, a canção recebe da cantora Simone uma versão passionalizada,
repleta de alongamentos vocálicos incompatíveis com aquilo que está sendo
dito/cantado. Senão vejamos: como ouvir os versos "Não saia do meu lado /
Segure o meu pierrot molhado / E vamos embolar ladeira abaixo / Acho que a
chuva a gente a se ver / Venha veja deixa beija seja / O que Deus quiser"
sem visualizar o ato plasmado na letra?
É certo que Simone descarta a última
estrofe que diz "A gente se embala se embola se embola / Só para na porta
da igreja / A gente se olha se beija se molha / De chuva suor e cerveja",
ápice da ação tematizada, desprezando assim o título e o invólucro do todo
cancional. Mas isso não anula a desestabilidade entre a substância sonora e o
conteúdo que ela carrega, já que, como sugerimos, o ato de conjunção entre
corpo e folia atravessa toda a canção.
A ênfase depositada pela letra nos
aspectos da aproximação entre os foliões
(sujeito da canção e o outro a quem ele se dirige) não se sustenta na cama
sonora dos alongamentos vocálicos da versão de Simone, estando as personagens
no meio da folia, aproveitando ("segure o meu pierrot molhado"),
juntos ("não saia do meu lado"), a festa.
"Quem canta sabe que se não
recuperar os conteúdos virtualizados na composição, durante o período da
execução, deixando transparecer uma inegável cumplicidade com o que está dizendo
(o texto) e com a maneira de dizer (a melodia), simplesmente inutiliza o seu
trabalho e se desconecta do ouvinte" (Tatit, idem, p. 89). Não queremos
negar que há quem, pela paixão, conecte-se à versão de Simone, mas nosso
trabalho aqui é analisar a integração da letra, da melodia e da voz: o ritmo evocado
pela sintaxe.
É por isso que chamo à discussão a
versão de Arnaldo Antunes (Paradeiro,
2001) para "Exagerado" (Cazuza, Ezequiel Neves e Leoni). Enquanto a
versão de Cazuza investe na mensagem da letra usando-a como uma cantada de conquista
e sedução, efetuando o balanço dos sentidos do ouvinte pelo uso do rock, a
versão passional e grave de Arnaldo cria um sujeito cancional que parece
consciente de já ter conquistado o outro e canta para a manutenção do desejo
entre os dois.
A inserção de sutis "ruídos vespertinos
do Candeal (BA)" amplia a certeza deste sujeito que recusa a rua – ao
contrário do sujeito urbano da versão de Cazuza – e quer ficar infinitamente
unido ao outro, dentro da bolha afetiva criada na canção de amor: o canto passional
não permite que os sons de fora estourem a bolha e atinjam os sons de dentro.
Ao trocar os dispositivos melódicos do
rock, com sua tendência à valorização de personagens e dos rituais dançantes
ancorados nos ataques consonantais, na segmentação da melodia e na marcação dos
acentos, pela passionalização, empenhada no estado psíquico, tais como a
solidão e a contemplação, através da ampliação da frequência e duração das
vogais, Arnaldo Antunes investe em versos como: "Nossos destinos foram traçados
/ Na maternidade (...) Jogado aos teus pés / Eu sou mesmo exagerado / Adoro um
amor inventado". E reinventa a canção.
A voz de Arnaldo e o violão de Cézar
Mendes possibilitam uma nova possibilidade de ouvir uma "mesma"
mensagem, uma mensagem, diga-se de passagem, impregnada das energias da versão
dançante de Cazuza fortemente disseminada na cultura cancional. Note-se, como
exemplo disso, que amparado por sua versão, Cazuza recebeu o epíteto de
"poeta exagerado".
Para o bem da verdade, a versão de
Cazuza já indicia aquilo que Arnaldo realiza. Trabalhando entre acelerações e
desacelerações, naquilo que comumente denominamos pop-rock, balada romântica, o
sujeito de Cazuza sugere paixão, através da atenção despertada pelo primeiro
verso: "Amor da minha vida". Arnaldo capta tais índices e investe
neles.
Para Luiz Tatit (idem, p. 92-93),
"ao controlar a velocidade da voz que fala, atribuindo-lhe uma duração no
interior da voz que canta, o cancionista revela o que R. Barthes denominou
'grão da voz', ou seja, a exata intersecção entre língua e música: a condição
ideal para o efeito de verdade da obra". Deste modo, Arnaldo transfere o
exagero da emissão vocal acelerada do rock para a letra de mensagem exagerada
de um sujeito que diz feliz e suplicante: "Eu nunca mais vou respirar / Se
você não me notar / Eu posso até morrer de fome / Se você não me amar".
Ao final, se na versão de Cazuza (1985),
e mesmo na versão de Ney Matogrosso (Vivo,
1999), o ouvinte “presta mais atenção” à gestualidade vocal visceral, na versão
de Arnaldo Antunes é a letra, ou melhor, o modo visceral como o sujeito se entrega
na letra, que se ilumina e concentra a atenção. A produção oral de Arnaldo
presentifica um sujeito em ritmo narrativo exageradamente jogado aos pés do
outro. E assim entra em sincretismo com o outro, agora ele: sujeito cancional e
da canção – exagerado: gerado no excesso.
***
(Cazuza / Ezequiel Neves / Leoni)
Amor da minha vida
Daqui até a eternidade
Nossos destinos foram traçados
Na maternidade
Paixão cruel desenfreada
Te trago mil rosas roubadas
Pra desculpar minhas mentiras
Minhas mancadas
Por você eu largo tudo
Vou mendigar, roubar, matar
Até nas coisas mais banais
Pra mim é tudo ou nunca mais
Eu nunca mais vou respirar
Se você não me notar
Eu posso até morrer de fome
Se você não me amar
Por você eu largo tudo
Vou mendigar, roubar, matar
Até nas coisas mais banais
Pra mim é tudo ou nunca mais
Exagerado
Jogado aos teus pés
Eu sou mesmo exagerado
Adoro um amor inventado
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