Em 1933, Oswald de Andrade, em um de seus lúcidos lances de vista sobre a cultura brasileira, chamava à atenção "pelo direito de ser traduzido, reproduzido e deformado em todas as línguas". Ontologicamente híbrida, a cultura (popular e de massa) brasileira tem no samba uma de suas proposições de investigação identitária.
Transcriando-se, sendo deformado, alterado, reproduzido, transtraduzido - tambores do candomblé e Jesus de Nazaré - culturalmente, o samba parece sintetizar as muitas vozes (plurais) que lhe constituem. "Liquidificador de orixás", como diria o sujeito da canção de Davi Moraes, "a elétrica magia da nação / (...) / lá na praça o poeta estende a mão / e a voz do povo canta".
Bem cultural, simbólico e patrimonial, o samba tem aceitado todos os argumentos (mutantes) geradores de mudança, ao longo do tempo. E resistido. Utilizando a antropofagia (que nos salva), ele muda para continuar. Trai para ser e estar tradição.
Não há um verdadeiro e único (puro) samba. O que, na prática, seria um samba-de-raiz? O que há são apropriações de um bem simbólico para fins de mercado. Toda tentativa de preservação que não tenha como matriz a noção de que a traição à tradição faz parte do processo de manutenção desta, resulta esterilizante. Na maioria das vezes, soa mais falso do que a falsificação que certos puristas tentam combater.
"Ninguém me salva / ninguém me engana / Eu sou alegre / Eu sou contente / Eu sou cigana / Eu sou terrível / Eu sou o samba", diz a canção "A voz do morto", de Caetano Veloso, na voz de Aracy de Almeida.
É neste contexto de mirada estética que surge a canção "Dos prazeres, das canções", de Péricles Cavalcanti. Cancionista responsável por momentos importantes em nossas canção e poesia, Péricles cria um sujeito que dança ao som dos inventores e mestres do passado-presente, apropriando-se de suas vozes como um médium antropófago, para cantar aquilo que é: canção, prazer estético.
Além e aquém dos pseudos desejos de pureza, o sujeito dessa canção é "aquele que o tempo não mudou, embora outro". O sujeito se insere na linha evolutiva da canção exatamente por não se acomodar, por imputar transformações - criar novos modos de cantar e ser feliz.
As notas de melancolia que a voz de Péricles Cavalcanti - timbre baixo, sereno - entoam figurativizam o ataque à adaptação esterilizante, tradicional e moderno que o sujeito da canção é. Ou seja, a voz do cantor teatraliza com sua gestualidade vocal a dança mítica que a canção sugere ao ouvinte.
Alheio aos debates sobre manutenção ou mudança, o samba aqui atravessa a avenida feliz: deglutindo e devolvendo ao mundo as vozes que o mundo lhe oferece. "A minha estirpe sempre esteve ao seu dispor. Me dê ouvidos que eu lhe digo quem eu sou", diz o sujeito, pela voz tranquila (quase canto-falado) de Péricles Cavalcanti.
O sujeito é um conjunto. Uma legião. Deus e o diabo na terra tropical. Do sol. Palavra e música, ele se materializa na voz. Ele antecede, como qualquer canção, à divisão nítida entre seus significantes, suas partes que, agora, misturadas, hibridizadas, já não tem mais sentido fora do todo.
Indivisível e traidor, ele - o samba, a voz do sujeito e a voz do cantor - sonha e arde de amor. Feitiço (in)decente que solta e prende a gente. Liberta-nos da mestiçagem facilmente adaptada ao conservadorismo. "Eu sou aquele", repete o sujeito. Aqui, ele canta o dali, o de ontem, o de hoje, o de sempre.
O sujeito toma seu lugar na linha que tem antecessores da estirpe de "Herivelto, Caymmi, Sinhô, Valente, Wilson Batista, Noel, Heitor dos Prazeres". A serviço dos prazeres, das canções os astros dançam e reluz - fazem coro.
Guardada no disco, sintomaticamente, chamado de Canções (1991), "Dos prazeres, das canções" faz da voz de seu cantor - suas modulações, gestos, performance - a chave de sua audição, por condensar a reflexão sobre si - sobre o cantar, sobre ser samba, sobre ser canção.
O eterno, no sujeito, é canção e identidade. Em primeira pessoa, a letra não deixa dúvida quanto à indistinguível concretização da mistura daquilo que é dito com quem diz. Sujeito-canção - receptor e emissor: canção. "Eu sou doutor nos sentimentos de alegria e de dor, dô, dô o que você quiser", diz este, que é aquele.
Bem cultural, simbólico e patrimonial, o samba tem aceitado todos os argumentos (mutantes) geradores de mudança, ao longo do tempo. E resistido. Utilizando a antropofagia (que nos salva), ele muda para continuar. Trai para ser e estar tradição.
Não há um verdadeiro e único (puro) samba. O que, na prática, seria um samba-de-raiz? O que há são apropriações de um bem simbólico para fins de mercado. Toda tentativa de preservação que não tenha como matriz a noção de que a traição à tradição faz parte do processo de manutenção desta, resulta esterilizante. Na maioria das vezes, soa mais falso do que a falsificação que certos puristas tentam combater.
"Ninguém me salva / ninguém me engana / Eu sou alegre / Eu sou contente / Eu sou cigana / Eu sou terrível / Eu sou o samba", diz a canção "A voz do morto", de Caetano Veloso, na voz de Aracy de Almeida.
É neste contexto de mirada estética que surge a canção "Dos prazeres, das canções", de Péricles Cavalcanti. Cancionista responsável por momentos importantes em nossas canção e poesia, Péricles cria um sujeito que dança ao som dos inventores e mestres do passado-presente, apropriando-se de suas vozes como um médium antropófago, para cantar aquilo que é: canção, prazer estético.
Além e aquém dos pseudos desejos de pureza, o sujeito dessa canção é "aquele que o tempo não mudou, embora outro". O sujeito se insere na linha evolutiva da canção exatamente por não se acomodar, por imputar transformações - criar novos modos de cantar e ser feliz.
As notas de melancolia que a voz de Péricles Cavalcanti - timbre baixo, sereno - entoam figurativizam o ataque à adaptação esterilizante, tradicional e moderno que o sujeito da canção é. Ou seja, a voz do cantor teatraliza com sua gestualidade vocal a dança mítica que a canção sugere ao ouvinte.
Alheio aos debates sobre manutenção ou mudança, o samba aqui atravessa a avenida feliz: deglutindo e devolvendo ao mundo as vozes que o mundo lhe oferece. "A minha estirpe sempre esteve ao seu dispor. Me dê ouvidos que eu lhe digo quem eu sou", diz o sujeito, pela voz tranquila (quase canto-falado) de Péricles Cavalcanti.
O sujeito é um conjunto. Uma legião. Deus e o diabo na terra tropical. Do sol. Palavra e música, ele se materializa na voz. Ele antecede, como qualquer canção, à divisão nítida entre seus significantes, suas partes que, agora, misturadas, hibridizadas, já não tem mais sentido fora do todo.
Indivisível e traidor, ele - o samba, a voz do sujeito e a voz do cantor - sonha e arde de amor. Feitiço (in)decente que solta e prende a gente. Liberta-nos da mestiçagem facilmente adaptada ao conservadorismo. "Eu sou aquele", repete o sujeito. Aqui, ele canta o dali, o de ontem, o de hoje, o de sempre.
O sujeito toma seu lugar na linha que tem antecessores da estirpe de "Herivelto, Caymmi, Sinhô, Valente, Wilson Batista, Noel, Heitor dos Prazeres". A serviço dos prazeres, das canções os astros dançam e reluz - fazem coro.
Guardada no disco, sintomaticamente, chamado de Canções (1991), "Dos prazeres, das canções" faz da voz de seu cantor - suas modulações, gestos, performance - a chave de sua audição, por condensar a reflexão sobre si - sobre o cantar, sobre ser samba, sobre ser canção.
O eterno, no sujeito, é canção e identidade. Em primeira pessoa, a letra não deixa dúvida quanto à indistinguível concretização da mistura daquilo que é dito com quem diz. Sujeito-canção - receptor e emissor: canção. "Eu sou doutor nos sentimentos de alegria e de dor, dô, dô o que você quiser", diz este, que é aquele.
***
Dos prazeres, das canções
(Péricles Cavalcanti)
Eu sou aquele
Que o tempo não mudou
Embora outro, eu sou o mesmo
Eu sou um mero sucessor
A minha estirpe
Sempre esteve ao seu dispor
Me dê ouvidos que eu lhe digo quem eu sou
Sou Herivelto, sou Caymmi
Eu sou Sinhô
Eu sou Valente, eu sou Batista
Eu sou Noel, eu sou Heitor
Dos prazeres, das canções
Eu sou doutor
Nos sentimentos de alegria e
de dor, dô, dô o que você quiser
Tô, tô, tô
Pro que der e vier
(Péricles Cavalcanti)
Eu sou aquele
Que o tempo não mudou
Embora outro, eu sou o mesmo
Eu sou um mero sucessor
A minha estirpe
Sempre esteve ao seu dispor
Me dê ouvidos que eu lhe digo quem eu sou
Sou Herivelto, sou Caymmi
Eu sou Sinhô
Eu sou Valente, eu sou Batista
Eu sou Noel, eu sou Heitor
Dos prazeres, das canções
Eu sou doutor
Nos sentimentos de alegria e
de dor, dô, dô o que você quiser
Tô, tô, tô
Pro que der e vier
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