"Este fio é a única coisa que me liga ainda à nossa vida. (...) Porque tu me falas. (...) Neste momento, respiro porque tu me falas", diz a personagem criada por Jean Cocteau para o monólogo (ao telefone) A voz humana.
Mesmo mediada, gravada, reproduzida a voz de alguém é inimitável. E a voz de quem se ama é o sopro na alma do amador. Ouvir-se pela voz de alguém restitui-nos à vida. A personagem de Cocteau, abandonada pelo amado que se casará com outra, só existe porque há alguém - ligado à ela pelo fio telefônico - que lhe permite viver, falar, cantar.
Construída num momento em que se discutiam as novidades tecnológicas nas transmissão e reprodução da voz humana, atravessada pelas falhas técnicas dos aparelhos, o que causava estranhamento entre a voz e seu dono, a peça de Cocteau fala-nos da imaterialidade da pessoa. Ou melhor, da presença da pessoa na materialidade da voz.
A voz carrega toda a mensagem da alma humana. Imperfeitas ou não, as máquinas ajudam a presentificar alguém distante. Ao dar play, trazemos o cantor para o nosso lado. A voz do cantor nos liga à vida. "Quando eu te ligar cantando aquela velha canção / Não diga que estou enganado", diz o sujeito da popular, direta e brejeira "Aquela velha canção".
Se no caso da peça de Cocteau temos em cena "apenas" aquele que ouve e engendra falas passionais apartir da audição "inaudível" ao expectador, na canção "Aquela velha canção", de Carlinhos Brown e Marisa Monte, temos em cena a voz do sujeito que liga o (e para o) outro, a fim de evidenciar o amor.
Somos seres sonoros - ilusões sonoras, verdades fabricadas. E as trilhas que emolduram nossa existência tem importância decisiva naquilo que somos. Certo dessa certeza, o sujeito canta: "Quando eu te ligar cantando aquela canção / Não diga que não sente nada". É no canto do amor que as personagens vivem: são e estão no mundo.
Cantar aquela velha (sempre nova) canção é fazer o amor amar, é disparar a memória afetiva e tudo aquilo que fomos e/ou poderíamos ter sido. E não à toa o sujeito diz: "Quando eu te ligar cantando aquela canção / Pra te desnortear, te ferir com carinho / É pra fazer doer no seu ouvido a nota melhor do nosso amor".
E aqui entra a importância da interpretação de Marisa Monte. Trabalhando com acelerações e desacelerações no andamento entoativo, ao cantar a expressão "aquela canção" oitava acima do restante do canto, a cantora desperta a dor ("te ferir com carinho") no ouvido afetivo do destinatário. Um lance de forma e conteúdo bem resolvido.
Além disso, as frases longas, que parecem não querer caber na linha melódica, indiciam a urgência do que é dito (cantado) pelo sujeito. Atuando nestes momentos a contenção dos alongamentos vocálicos na voz de Marisa Monte. Ela, que tem no excesso de presença da própria voz - seja na palavra cantada, seja nos vocalizes - uma assinatura cancional, consegue o registro ideal para desenhar o sujeito dessa canção.
Diferente da situação criada por Cocteau, o sujeito da canção finge não estar numa situação conversacional. Ele lança o aviso/convite para que "quando ligar" o ouvinte tenha a atenção necessária para escutir o que quer saber de verdade: o amor, a voz do outro que lhe dá vida - "Alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, amor". Alôs, luas e amor também uma oitava acima do comum da altura da canção, figurativizando "a nota melhor do nosso amor".
E eis que surge mais um aspecto metacancional dessa canção: consciente de sua função de cantor, o sujeito diz o que irá fazer, fazendo. Anuncia o canto, cantando. Ao ritmo de sons interioranos, caipiras, próximo às melodias que ouvimos à beira da estrada, na boleia de um caminho. "A saudade então aperta o peito / Ligo o rádio e dou um jeito / De espantar a solidão", diria o sujeito da canção "Caminhoneiro", de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e John Hartford, um possível destinatário da mensagem do sujeito de "Aquela velha canção".
Guardado no disco O que você quer saber de verdade (2011), o sujeito de "Aquela velha canção" se desnuda, pois, assim como o ouvinte de sua mensagem, nada, nada, nada está resolvido. A não ser o tudo, tudo, tudo de ser cantor. Apesar da mágoa, o sujeito permanece sendo o cantor do outro, posto que assim também se canta e encontra um lugar no mundo. Ele canta a interdependência amorosa, via telefone. Ele sabe que, através do telefone móvel, ele pode estar o tempo todo, mesmo com o passar do tempo, ao lado do outro.
Cantor, emissor da palavra cantada, está no querer do sujeito mandar ou não o outro para o inferno - silenciar."O inferno nem é tão longe", diz o sujeito da canção da Nação Zumbi. Já para o sujeito de "Aquela velha canção", enquanto houver amor, canção, o inferno é longe. Afinal, no canto recíproco as personagens se mantem no paraíso.
O sujeito é do tempo em que a gente se telefonava. Tal e qual o amado da personagem de Cocteau, apesar de ter esquecido certas dores, ele está irremediavelmente ligado ao ouvinte, pela lei irrevogável do canto. Um (cantor) vive no canto do outro (ouvinte). E vice-versa. Inferno e céu de todo instante.
Frio, mas motor de calor (presença), o telefone é a coisa que mantem as personagens vivas. Mediador do afeto, ele facilita o contato, reabre os sentimentos, notifica o (nosso) amor. Jogando com o que pode e o que não pode ser, já que quem fala está (palavra cantada) e não está (corpo) aqui/agora, os instrumentos de reprodução estão à disposição de nossas mentiras sinceras (real/ficção), da vida, vida que não menos nossa que da canção.
Mesmo mediada, gravada, reproduzida a voz de alguém é inimitável. E a voz de quem se ama é o sopro na alma do amador. Ouvir-se pela voz de alguém restitui-nos à vida. A personagem de Cocteau, abandonada pelo amado que se casará com outra, só existe porque há alguém - ligado à ela pelo fio telefônico - que lhe permite viver, falar, cantar.
Construída num momento em que se discutiam as novidades tecnológicas nas transmissão e reprodução da voz humana, atravessada pelas falhas técnicas dos aparelhos, o que causava estranhamento entre a voz e seu dono, a peça de Cocteau fala-nos da imaterialidade da pessoa. Ou melhor, da presença da pessoa na materialidade da voz.
A voz carrega toda a mensagem da alma humana. Imperfeitas ou não, as máquinas ajudam a presentificar alguém distante. Ao dar play, trazemos o cantor para o nosso lado. A voz do cantor nos liga à vida. "Quando eu te ligar cantando aquela velha canção / Não diga que estou enganado", diz o sujeito da popular, direta e brejeira "Aquela velha canção".
Se no caso da peça de Cocteau temos em cena "apenas" aquele que ouve e engendra falas passionais apartir da audição "inaudível" ao expectador, na canção "Aquela velha canção", de Carlinhos Brown e Marisa Monte, temos em cena a voz do sujeito que liga o (e para o) outro, a fim de evidenciar o amor.
Somos seres sonoros - ilusões sonoras, verdades fabricadas. E as trilhas que emolduram nossa existência tem importância decisiva naquilo que somos. Certo dessa certeza, o sujeito canta: "Quando eu te ligar cantando aquela canção / Não diga que não sente nada". É no canto do amor que as personagens vivem: são e estão no mundo.
Cantar aquela velha (sempre nova) canção é fazer o amor amar, é disparar a memória afetiva e tudo aquilo que fomos e/ou poderíamos ter sido. E não à toa o sujeito diz: "Quando eu te ligar cantando aquela canção / Pra te desnortear, te ferir com carinho / É pra fazer doer no seu ouvido a nota melhor do nosso amor".
E aqui entra a importância da interpretação de Marisa Monte. Trabalhando com acelerações e desacelerações no andamento entoativo, ao cantar a expressão "aquela canção" oitava acima do restante do canto, a cantora desperta a dor ("te ferir com carinho") no ouvido afetivo do destinatário. Um lance de forma e conteúdo bem resolvido.
Além disso, as frases longas, que parecem não querer caber na linha melódica, indiciam a urgência do que é dito (cantado) pelo sujeito. Atuando nestes momentos a contenção dos alongamentos vocálicos na voz de Marisa Monte. Ela, que tem no excesso de presença da própria voz - seja na palavra cantada, seja nos vocalizes - uma assinatura cancional, consegue o registro ideal para desenhar o sujeito dessa canção.
Diferente da situação criada por Cocteau, o sujeito da canção finge não estar numa situação conversacional. Ele lança o aviso/convite para que "quando ligar" o ouvinte tenha a atenção necessária para escutir o que quer saber de verdade: o amor, a voz do outro que lhe dá vida - "Alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, amor". Alôs, luas e amor também uma oitava acima do comum da altura da canção, figurativizando "a nota melhor do nosso amor".
E eis que surge mais um aspecto metacancional dessa canção: consciente de sua função de cantor, o sujeito diz o que irá fazer, fazendo. Anuncia o canto, cantando. Ao ritmo de sons interioranos, caipiras, próximo às melodias que ouvimos à beira da estrada, na boleia de um caminho. "A saudade então aperta o peito / Ligo o rádio e dou um jeito / De espantar a solidão", diria o sujeito da canção "Caminhoneiro", de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e John Hartford, um possível destinatário da mensagem do sujeito de "Aquela velha canção".
Guardado no disco O que você quer saber de verdade (2011), o sujeito de "Aquela velha canção" se desnuda, pois, assim como o ouvinte de sua mensagem, nada, nada, nada está resolvido. A não ser o tudo, tudo, tudo de ser cantor. Apesar da mágoa, o sujeito permanece sendo o cantor do outro, posto que assim também se canta e encontra um lugar no mundo. Ele canta a interdependência amorosa, via telefone. Ele sabe que, através do telefone móvel, ele pode estar o tempo todo, mesmo com o passar do tempo, ao lado do outro.
Cantor, emissor da palavra cantada, está no querer do sujeito mandar ou não o outro para o inferno - silenciar."O inferno nem é tão longe", diz o sujeito da canção da Nação Zumbi. Já para o sujeito de "Aquela velha canção", enquanto houver amor, canção, o inferno é longe. Afinal, no canto recíproco as personagens se mantem no paraíso.
O sujeito é do tempo em que a gente se telefonava. Tal e qual o amado da personagem de Cocteau, apesar de ter esquecido certas dores, ele está irremediavelmente ligado ao ouvinte, pela lei irrevogável do canto. Um (cantor) vive no canto do outro (ouvinte). E vice-versa. Inferno e céu de todo instante.
Frio, mas motor de calor (presença), o telefone é a coisa que mantem as personagens vivas. Mediador do afeto, ele facilita o contato, reabre os sentimentos, notifica o (nosso) amor. Jogando com o que pode e o que não pode ser, já que quem fala está (palavra cantada) e não está (corpo) aqui/agora, os instrumentos de reprodução estão à disposição de nossas mentiras sinceras (real/ficção), da vida, vida que não menos nossa que da canção.
***
Aquela velha canção
(Carlinho Brown / Marisa Monte)
Quando eu te ligar cantando aquela velha canção
Não diga que estou enganado, estou resolvido
Vou dar férias pro meu coração
Confesso que fiquei zangado, eu fiquei magoado,
Mas agora passou, esqueci
Não vou te mandar pro inferno porque eu não quero
E porque fica muito longe daqui
Quando eu te ligar cantando aquela canção
Pra te desnortear, te ferir com carinho
É pra fazer doer no seu ouvido a nota melhor do nosso amor
Quando eu te ligar cantando aquela canção
Não diga que não sente nada
É pra fazer doer no seu ouvido a nota melhor do nosso amor
Alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, amor
(Carlinho Brown / Marisa Monte)
Quando eu te ligar cantando aquela velha canção
Não diga que estou enganado, estou resolvido
Vou dar férias pro meu coração
Confesso que fiquei zangado, eu fiquei magoado,
Mas agora passou, esqueci
Não vou te mandar pro inferno porque eu não quero
E porque fica muito longe daqui
Quando eu te ligar cantando aquela canção
Pra te desnortear, te ferir com carinho
É pra fazer doer no seu ouvido a nota melhor do nosso amor
Quando eu te ligar cantando aquela canção
Não diga que não sente nada
É pra fazer doer no seu ouvido a nota melhor do nosso amor
Alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, amor
3 comentários:
Podem fazer o estudo que for,
encontrar eufonias,
singelezas,
mensagem subliminar,
metacancionismos,
mas a música é fraca,
assim como o disco.
Decepção do ano.
Não fiz análise do disco. Debrucei-me sobre uma canção, a fim de investigar minhas proposições de tese.
Eis o texto mais lúcido sobre este fraco disco da MM: http://blogdobiar.blogspot.com/2011/11/o-romantismo-pop-de-marisa-monte.html?spref=fb
Apenas para ser justo,
a decepção do ano é
Lou Reed e Metallica.
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