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08 setembro 2011

À meia voz

Tenho tratado aqui muitas vezes da canção enquanto consolo e sustentáculo da vida. Isso pode levar à equivocada conclusão de que a canção, ao cantar o ouvinte, é sempre uma promessa de felicidade, e/ou uma certeza de alegria.
Para além disso, penso a canção como uma intervenção na comodidade dos significantes, no cotidiano vazio dos significados e no lugar - "lenho oco" - que ocupamos no mundo. Ou seja, ao dizer e tocar sentimentos, a canção pode ser (também) o incômodo que mobiliza: que tira o ouvinte do lugar confortável onde a segurança sedutora nos coloca. Ela impulsiona o pensamento sobre a vida.
Dito de outro modo: a canção entoada pelas neosereias (cancionistas modernos) leva à suspensão do juízo sobre a vida, desloca a ideia de segurança. Sim, ao impedir a movimentação do indivíduo, ao paralisar a busca do não-cais, a segurança é pura sedução destruidora da subjetividade.
Cantantes e carentes de canção, a neosereia não se compraz com o desenho forçadamente bonito do outro. Ela mostra ao ouvinte - porque observa a si mesma - as várias pontas da estrela: canta o inseguro dos fantasmas da voz.
É desde modo, diante de uma sereia cúmplice do ouvinte, que podemos entender os versos da canção "À meia voz", de Marina Lima e Antonio Cícero: "Meu bem não lhe darei / Um céu sem dor nem lei / Mas aceite esta canção / Que fiz pra te alegrar / Debaixo desse véu / Assim à meia-luz / Só há você e eu".
O sujeito da canção, efeito que só se dá durante a execução da canção, faz do canto - da afirmação da vida, o que implica a carta de aceite à dor e à alegria - um ato de amor. Aqui, sujeito e ouvinte compactuam do mesmo (e humano) desejo de ser cantado.
Regravada para o excelente disco Literalmente loucas (2011), onde recebeu uma bonita interpretação de Anelis Assumpção, a canção "À meia voz" começa com um pedido: "Me diz o que é que foi / Pra você se magoar assim / Confessa aqui pra mim / Me diz onde é que dói". E é a partir de uma não-resposta, do significativo silêncio do outro (nós não temos acesso à resposta, mas a supomos), que o sujeito da canção trabalha: colando suas inquietações aos sintomas antevistos no outro.
Mais adiante o sujeito cai na dúvida mortal de todo cantante: "Será que ainda vou ser / Seu ninho de prazer?". Para concluir: "Melhor pagar pra ver". Certo de ter feito algo que motivou a dor no outro - o silêncio, talvez -, o sujeito da canção encontra no canto o melhor modo de remissão.
O núcleo desta metacanção está nos versos: "Me diz o que é que eu fiz / Pra te fazer infeliz assim / Soletra aqui pra mim / Me diz à meia-voz / Prometo não contar / Promessas não dão mais / Confessa e sela a paz". A confissão do outro, dita de modo que nós (ouvintes-voyeurs da canção) não podemos ouvir, selando a cumplicidade das duas personagens, plasma o caráter fundamental de toda canção: tocar de forma individual e intransferível cada ouvinte.
Agindo assim, o sujeito cria a Nossa canção: a canção dos dois. Como diz o sujeito de "Nossa canção", de Zé Miguel Wisnik e Mauro Aguiar: "as canções / só são canções / quando não são / promessas". É no instante-já, no momento luminoso do ato de cantar, pagando pra ver, que o sujeito toca o outro: engendra sua música invisível - ilumina o afeto.
A canção é o veneno-remédio, o paraíso-inferno que une cantor e cantado: promove a amizade entre as partes desejantes de permanência no mundo. O sujeito pede a (meia) voz do outro - um segredo íntimo dos dois - para sobre ela cantar: selar a paz, manipular curativos. Ambos errantes tentando acertar o tom do amor.

***

À meia voz
(Marina Lima / Antonio Cícero)

Me diz o que é que foi
Pra você se magoar assim
Confessa aqui pra mim
Me diz onde é que dói
Será que ainda vou ser
Seu ninho de prazer?
Melhor pagar pra ver

Me diz o que é que eu fiz
Pra te fazer infeliz assim
Soletra aqui pra mim
Me diz à meia-voz
Prometo não contar
Promessas não dão mais
Confessa e sela a paz

Meu bem não lhe darei
Um céu sem dor nem lei
Mas aceite esta canção
Que fiz pra te alegrar
Debaixo desse véu
Assim à meia-luz
Só há você e eu

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