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15 setembro 2011

Filosofia

No livro Vozes plurais - Filosofia da expressão vocal, Adriana Cavarero investiga como a filosofia tem trabalhado na promoção da própria "surdez", à deriva dos cancionistas, poetas e filósofos que investem no apuro do ouvido.
Para a autora, agindo deste modo, a filosofia nega a unicidade de cada voz, negando por sua vez a especificidade de cada indivíduo. Ou seja, só quando nos distraímos da "obsessiva vigilância" que tal filosofia engendra acessamos particularidades inimitáveis de cada humano de "carne e osso", emissor e destino do som.
Cavarero anota que "a voz de quem fala é sempre diversa de todas as outras vozes, ainda que as palavras pronunciadas fossem sempre as mesmas, como acontece justamente no caso de uma canção". Cantar apresenta a verdade de um vocálico - "é ter o coração daquilo" - e isso desestabiliza as formas generalizadoras - "universalidades abstratas e sem corpo" - do modo como temos desenvolvido o pensamento.
No Brasil, não é à toa que "nossa gente era triste amargurada, inventou a batucada pra deixar de padecer", como diz a canção, dando uma amostra daquilo que uma cultura híbrida, mestiça e miscigenada como a latino-americana pode oferecer ao mundo em contribuição ao pensamento. Talvez isso explique em parte não termos aqui uma escola filosófica forte frente às culturas hegemônicas e tenhamos desenvolvido o ensaio como espaço de reflexão daquilo que (possivelmente) somos.
Cantando juntos mandamos a tristeza embora. Aquela tristeza que quer tomar conta do sujeito da canção "Filosofia", de Noel Rosa - "O mundo me condena, e ninguém tem pena / Falando sempre mal do meu nome / Deixando de saber se eu vou morrer de sede / Ou se vou morrer de fome" -, e que logo cede lugar a outra afirmativa: "Não me incomodo que você me diga / Que a sociedade é minha inimiga / Pois cantando neste mundo / Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo".
Movido por uma filosofia íntima, alicerçada no seu jeito de corpo, o sujeito vai da defesa autopiedosa ao ataque: "Quanto a você da aristocracia / Que tem dinheiro, mas não compra alegria / Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente / Que cultiva hipocrisia". "É, por assim dizer, a 'phoné' que determina a fisiologia do pensamento", como diria Cavarero. Pensar com o corpo inteiro, a plenos pulmões, não com o cérebro.
Livre das amarras que o dinheiro impõe, artista, cantor, sambista, o sujeito da canção exalta a alegria, que, por sua vez, não denega a dor. "Um porto alegre é bem mais que um seguro", ele poderia dizer. Cantada por Mart'nália no disco Pé do meu samba (2002), "Filosofia" ganha valores novos. Afinal, quem melhor do que uma mulher que guarda em si - voz e corpo - os signos do malandro (fingidor de rico) para cantar os emblemas de uma nova filosofia?
Aqui, corpo e palavra cantada mostram como o 'logos' perdeu a voz, a escuta. E se empenham na vocalidade do sujeito afastado das ideias gerais, platônicas. Há portanto uma sabedoria singular na voz do sujeito de "Filosofia": cantar é estar vivo, pensar a plenos pulmões. Lúcido de sua condição (humana) de escravo, através da voz o sujeito faz a sua escolha entre o samba e a hipocrisia: forja uma verdade.
Como Adriana Cavarero atesta: "A voz, qualquer coisa que diga, comunica antes de tudo, e sempre, uma só coisa: a unicidade de quem a emite". Urge criar dispositivos que nos possibilite entender tamanha força historicamente negada: ter ouvidos para ouvir.

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Filosofia
(Noel Rosa)

O mundo me condena, e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome

Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim

Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim

Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo

Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia

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