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31 julho 2021

Os três mal-amados

Quando Caetano Veloso cantou "Minha música vem da / Música da poesia de um poeta João que / não gosta de música / Minha poesia vem / Da poesia da música de um João músico que / Não gosta de poesia" ("Outro retrato", Estrangeiro, 1989), além de estar reconhecendo e homenageando "o dado de Cabral / a descoberta de Donato" em sua formação, também faz referência à alardeada rejeição de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) a uma suposta melodia implícita à poesia, à musicalidade do poema.
Fato é que o poeta, que Caetano apresenta como "o maior poeta brasileiro surgido depois do modernismo, pertencente, pela idade, à geração de 45, mas em tudo oposto a ela: um poeta das coisas vistas com olho lúcido e expressas em linguagem seca e rigorosíssima" (Veloso, 1997, p. 212-213) e afirma como "meu poeta favorito - e o que mais extensamente li, (...) diante dele tudo parecia derramado e desnecessário" (Veloso, 1997, p. 339); esse poeta que escrevera “saio de meu poema / como quem lava as mãos” (Melo  Neto,  1999,  p.  93) afirmou: “É essencial em poesia ter um som, uma ligação com a fala. Mas é uma dicção diferente, que não é cantável. Realmente não gosto de música, nunca gostei. Sou um poeta visual, não auditivo. A única música que gostei foi o flamenco, que é dissonante, pois o sujeito canta no extremo da voz” (Gazeta Mercantil, 1997).
João Cabral de Melo Neto sabia que a noção de lírica mudara no momento em que a poesia escrita passou a superar a poesia cantada na cultura. O corpo e a voz do poeta tinham um modo-de-usar-e-dizer o poético que não será o mesmo no papel. Cabral quis limpar a palavra escrita de toda reminiscência de um tipo de lirismo próprio à voz. Mas ele sabia também que a música, a entonação implícita persiste nas palavras, mesmo escritas. Seu trabalho foi o de escamotear este impulso vocal externo ao poema escrito e iluminar a palavra no suporte da página.
É por esta perspectiva que entendemos o que Paul Zumthor escreve em A letra e a voz: "O texto 'literário' é fechado: simultaneamente por causa do ato que, material ou idealmente, o circunscreve e na intervenção de um sujeito que efetua esse fechamento. Mas essa intervenção provoca o comentário, suscita a glosa, de modo que, nesse nível, o texto abre-se, e um dos traços próprios à 'literatura' é sua interpretabilidade. O texto tradicional, em contrapartida, pelo simples fato de que transita pela voz e pelo gesto, só pode ser aberto, numa abertura primária, radical, a ponto de escapar, por lampejos, à linguagem articulada; por isso ele se esquiva à interpretação, pelo menos a toda interpretação globalizante" (1993, p. 283-284).
João Cabral tinha consciência da potência de nossa canção popular e afirmou: "Eu acho que a música popular pode ajudar enormemente a poesia, não no sentido de esta poesia vir a ser melhor, mas no sentido de aumentar a propagação da poesia" (O Globo, 27/10/1973). E desde 1966 quando Airton Barbosa e Chico Buarque musicaram Morte e Vida Severina (1955) para o teatro, até o disco Transfiguração (2006) da banda Cordel do Fogo Encantado, em que a vida de Severino é base para a canção "Morte e Vida Stanley", passando pelo disco de Cátia de França, Vinte palavras ao redor do sol (1979), com título inspirado nos versos de João Cabral de Melo Neto - "Falo somente com o que falo: / com as mesmas vinte palavras / girando ao redor do sol", e pela citação caetânica (1989), pelo disco Severino (1994) da banda Paralamas do Sucesso, a antilírica cabralina tem presença na canção popular. Destaque-se aqui a declamação feita por José Paes de Lira, Lirinha, então vocalista do Cordel do Fogo Encantado, de trechos do poema em prosa "Os Três Mal-Amados" (O palhaço do circo sem futuro, 2002).
No texto “o que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?”, Ruth Finnegan sugere diferenças e aproximações entre canto, declamação e recitativos, três modos da palavra cantada, entre outros. A partir de um conceito amplo de canção, a autora, para quem “quando você procura ‘canção’ no catálogo de uma biblioteca, encontra listas intermináveis de textos predominantemente verbais. É neles que se crê poder encontrar a verdadeira realidade – e não certamente na efêmera e incapturável performance” (Finnegan, 2008, p. 20-21), ajuda-nos a compreender a substância complexa e fugidia da performance. “A performance cantada é evanescente, experimental, concreta, emergindo na criação momentânea dos participantes. Como bem formulou Peggy Phelan, ‘a única vida da performance é no presente’” (idem, p. 24). Não é essa experiência o que vivem Lirinha e seu público durante “Os Três Mal-Amados”?
Sintonia, êxtase, catarse são termos apropriados. Ou, melhor, "o ritmo constitui a força magnética do poema. Por suas repetições, a voz sistematiza uma obsessão; pela sincope, ela faz explodir os signos em uma simbolização virtualmente histérica: transmite-se assim um conhecimento liberto de temporalidade, identificado com a própria vida, palpitação imemorial” (Zumthor, 2010, p. 185). No caso, a repetição é marcada por "O amor comeu..." presente no início das frases selecionadas do personagem Joaquim. Não é à toa, já que ele também aparece na "Quadrilha" de Carlos Drummond de Andrade, referência para Cabral. Lirinha deixa de fora as queixas de João e Raimundo sobre Teresa e Maria, respectivamente.
Lirinha realiza um trabalho de antologista, posto que seleciona quais partes do poema oralizar, encarnando a figura do repentista. Das onze falas de Joaquim, o cancionista escolhe três - as falas mais viscerais? O timbre potencializa o cognitivo, o ouvinte é instado à ação. A declamação visceral do vocalista Lirinha ficou famosa durante a turnê da banda e seu coro sempre emocionado. Se no poema lemos os nomes dos três personagens, na performance temos uma multidão de vozes comidas pelo amor.
Quando Lirinha chega à derradeira fala - "O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - o público já está seduzido e extasiado. Neste jogo entre expressão e comunicação, Lirinha aprofunda e embaralha o que João Cabral anotara na orelha do livro Duas águas: "de um lado, poemas para serem lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo aprofundamento temático quase sempre concentrado exige mais do que leitura, releitura; de outro lado, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos" (1956).
Se por um lado, e de modo mais comumente praticado, temos cancionistas que cantam poemas escritos, vertendo poesia em letra, permitindo a reminiscência mais rápida do texto; por outro lado há cancionistas que deglutem, torcem, parodiam a poesia escrita antes de torná-la letra de canção. Em ambos os casos a parceria entre poetas e letristas é firmada. Mas o segundo caso exige de quem escuta um trabalho maior, a fim de aprofundar o registro da autoria de quem labora, citando direta ou indiretamente, o poema escrito ao cantá-lo. Ao que parece, nestes casos a leitura da poesia demorou mais, não se esgotou na primeira vez, quando o ímpeto de cantar, dizer o texto em voz alta aparece. Há aqui um processo de devoração do conteúdo de leitura acumulado. Em "Os Três Mal-Amados" Lirinha embaralha tais categorias com precisão.


FINNEGAN, Ruth. O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?”. MATOS, Cláudia Neiva de; TRAVASSOS, Elizabeth; MEDEIROS, Fernanda Teixeira. Palavra cantada: ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
MELO NETO, João Cabral. Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1999.
______. Música. Gazeta Mercantil, 28/12/1997. Documento on-line não paginado. Disponível em: http://www.tirodeletra.com.br/musica/ JoaoCabraldeMeloNeto.htm. Acesso em: 09 ago. 2021.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a "literatura" medieval. Trad. Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
______. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat, Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

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Os três mal-amados

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome. O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos. O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Um comentário:

Unknown disse...

Quantas reflexões interessantes e relevantes sobre poesia, escrita e performance. Muito obrigada por compartilhar conosco e nos fazer aprender mais a cada dia!