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30 abril 2021

Triste Bahia

Esquecido até o Romantismo, quando foi publicado por Varnhagen (Florilégio da poesia brasileira, 1850), só em 1968 teve-se acesso ao que se considera ser a “Obras completas” da poesia atribuída a Gregório de Matos Guerra (1636-1696), graças à iniciativa do escritor e crítico James Amado. Quatro anos depois, exilado em Londres como consequência da ditadura militar brasileira, Caetano Veloso incluiu o canto de parte do soneto “À cidade da Bahia” no disco Transa (1972). Os versos “Triste Bahia! ó quão dessemelhante / Estás estou do nosso antigo estado!” diagnosticam o estranhamento e a vontade de pertencimento do sujeito cancional de Caetano no seu primeiro disco de grupo, gravado como um show ao vivo e arranjado por Jards Macalé, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Sousa. Se para Gregório a Bahia, capital política do Brasil colônia, era triste porque mestiça, mulata, cabocla, para Caetano a Bahia torna-se triste porque, sob o julgo da ditadura militar, a liberdade e a diversidade estão sob ameaça – aquilo que era a alegria da cidade, ou seja, a mistura, o encontro, o contraditório, encontra-se solapado.
“A alegria é a prova dos nove”, escreveu Oswald de Andrade. Alegria é a força maior, sugeriu Nietzsche. Por sua vez, “Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo / Daqueles que velam pela alegria do mundo”, cantaria Caetano em “Podres poderes” (1984). E, de fato, a alegria trágica (em nada alienada) é um dos eixos de sua poética. Caetano resignifica os versos gregorianos “Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado / Rica te vejo eu, já tu a mim abundante” ao mover os parâmetros quiasmáticos do que sejam pobreza e riqueza, empenho e abundância, alegria e tristeza na canção cantada entre a realidade dos anos de chumbo e o falso “milagre econômico brasileiro” alardeado pelo governo militar.
A astúcia de Caetano está em, enunciando um poema (hoje) do cânone, problematizar a permanência e a pertinência dos mecanismos de silenciamento daquilo que extraoficialmente caracteriza a cultura brasileira, a saber: o logos vocalizado, a gaia ciência das ruas, dos terreiros, da fala sempre à margem da escrita. E isso singulariza o gesto cancional de Caetano porque todos os procedimentos técnico-persuasivos da poesia à época de Gregório são recuperados, no entanto, para inverter o ethos colonial, expor sua decadência e impertinência.
Caetano mostra que Gregório é seu (nosso) contemporâneo: ao invés do “Rica te vi” gregoriano, lemos “Rico te vejo eu”, no encarte do disco; assim como do “A mim foi-me trocando” ouvimos “A mim vem me trocando” na voz do cancionista. Essa agoridade do estado de ânimo do sujeito cancional é significativa para a construção de sentido do olhar retrospectivo e da atualidade da cidade e do país. Vejamos o verso “Estás e estou do nosso antigo estado”. À “ostensiva ornamentalidade da retórica barroca” (Oliveira, 2003, p. 37), aqui marcada na aliteração em /t/, Caetano propõe uma nova mirada no “estado antigo” do Estado atual (1970!). Para tanto, ele despreza e substitui os tercetos do poema, pondo no lugar uma profusão de significantes afro-ameríndios, rasurando e recriando o conceito de autoria e a imagem do país. Com efeito, o cancionista engendra “o cantar [de outras] verdades de todos sabidas, mas de muitos esquecidas”.
Cantar Gregório do modo como Caetano canta, inserindo versos de domínio público é também restituir a discussão em torno da autoria da poesia atribuída ao poeta. Sobre isso, Ana Lucia Oliveira destaca que: “1) não se conhece texto autógrafo de Gregório de Matos; 2) não há texto seu impresso em vida; 3) seus poemas foram recolhidos, sem nenhum critério normativo, em códices manuscritos por copistas dos séculos XVII e XVIII, que podem ter-lhe atribuído autoria da produção alheia” (2003, p. 33). Portanto, Caetano recoloca num disco de canção popular, ou seja, na boca do povo, algo que era, em origem, “público”.
Desse modo, se Gregório imitou para superar seus modelos – Gôngora, Guevedo e, no caso de “Triste Bahia!”, a Imitatio Sancta fora aplicada sobre o soneto “Fermoso Tejo Meu” do português quinhentista Francisco Rodrigues Lobo: “Fermoso Tejo meu, quão diferente / Te vejo e vi, me vês agora e viste: / Turvo te vejo a ti, tu a mim triste, / Claro te vi eu já, tu a mim contente. // A ti foi-te trocando a grossa enchente / A quem teu largo campo não resiste; / A mim trocou-me a vista em que consiste / O meu viver contente ou descontente!”, dizem os dois quartetos –, por sua vez, Caetano imita o modelo gregoriano para superar a visão limitada de Brasil que o contexto ditatorial instaura. Dito de outro modo, ao parodiar o soneto, implodindo, substituindo e corrompendo seus tercetos, Caetano inverte ironicamente, tanto o lugar privilegiado que o soneto ocupa em nossa cultura livresca, quanto o ethos eurocêntrico. Assim, a generalista e artificiosa técnica da sátira gregoriana ganha tons personalistas contraculturais do contexto do país em 1972: “triiiiiiiiiiste Recôncavo”, canta o santamarense.
Não é qualquer cancionista que consegue manipular tais referências, registrá-las em disco, colocá-las nas casas e na voz da classe média brasileira. Lembremos que é de Caetano a frase “Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas”. Logo, mais do que uma valorização acrítica do “domínio público” nacional, Caetano identifica na potência vocal desse domínio “a mais avançada das mais avançadas das tecnologias” (“Um índio”, 1976): a gaia ciência. 
Berço do cancionista exilado, o Recôncavo Baiano foi o centro da economia açucareira escravista, concentrando inúmeros engenhos. Fundamental à época de Gregório – “Deste em dar tanto açúcar excelente / Pelas drogas inúteis, que abelhuda / Simples aceitas do sagaz Brichote”, dizem os tercetos suprimidos e substituídos na canção –, a cana doce, a “Sugar cane fields forever” como Caetano cantará em 1973 rasurando o título da canção “Strawberry fields forever” dos Beatles, reaparece na paisagem da cidade de Santo Amaro caetânica: por exemplo, “Cana doce, Santo Amaro / gosto muito raro / trago em mim por ti” (“Trilhos urbanos”, 1979) e “Que doce amargo cada vez que o vento traz / a nossa voz que chama verde do canavial, canavial” (“Motriz”, 1983). Note-se que é em “Sugar cane fields forever” que o santamarense canta “Sou um mulato nato / No sentido lato / Mulato democrático do litoral”, para desespero de Gregório, digo, das forças antidemocráticas.
Enquanto os versos atribuídos a Gregório pedem que a Bahia se feche à ameaça estrangeira – “Oh se quisera Deus que de repente / Um dia amanheceras tão sisuda / Que fora de algodão o teu capote!”, dizem os últimos versos do poema –, o projeto antropófago e tropicalista de Caetano elogia a devoração crítica da diferença, do diferente: “Enquanto os homens exercem seus podres poderes / Índios e padres e bichas, negros e mulheres / E adolescentes fazem o carnaval / Queria querer cantar afinado com eles” (“Podres poderes”). Ao tom desiludido do primeiro acorde de berimbau, seguido do icônico “triiiiiiiiiiste Bahia”, num procedimento de colagens já presente nas canções tropicalistas, Caetano justapõe: “Pastinha já foi à África / Pra mostrar capoeira do Brasil”.
Em “Triste Bahia”, acompanhado por uma massa percussiva singular, os versos “Bandeira branca enfiada em pau forte” e “O vapor de cachoeira não navega mais no mar” são repetidos num encaminhamento de êxtase, ou melhor, de “transe”, para dialogar com o título plurisignificante do disco. Quando canta “O vapor da cachoeira não navega mais no mar” Caetano novamente rasura o texto de Gregório com “triiiiiiiiiiste Recôncavo, oh, quão dessemelhante”, personalizando e atualizando as visões do purgatório-Brasil às realidades éticas e estéticas do contexto histórico. Ao canto de “Maria pegue o mato é hora, / arriba a saia e vamo-nos embora / Pé dentro, pé fora, / quem tiver pé pequeno vai-se embora” une-se “Oh, virgem mãe puríssima”, numa reiteração elogiosa ao sincretismo. Todos os símbolos religiosos dançam ao ritmo de afoxés e sambas de roda. Algo impensável à época de Gregório.
Ao combinar, repetir, encaixar e remanejar significantes sonoros e imagéticos, Caetano engendra um procedimento a la Gregório, porém, não mais para registrar uma tristeza ressentida e sim para lamentar a perda da utopia que a mestiçagem representara. “Talvez tenha sido pecado apostar na alegria”, canta em “Queixa” (1982). Ao cantar “Triste Bahia”, Caetano reverbera mais o sujeito que diz “a Bahia já me deu régua e compasso”, da canção “Aquele abraço” (1969), de Gilberto Gil. Aliás, é Gil, companheiro da Tropicália e do exílio londrino, quem canta em “Back in Bahia” (1972) a saudade da “luz do luar / do luar que tanta falta me fazia junto com o mar / mar da Bahia / cujo verde vez em quando me fazia bem relembrar”. Ou seja, é mais saudade do que ressentimento o que entristece o sujeito caetânico. Saudade da Bahia que ele cantara em “Viva a Bahia, ia, ia”, em “Tropicália” (1969), em que Bahia rima com Maria, musa invocada nos versos da canção barroco-tropicalista: "Maria, pegue o mato é hora / arriba a saia vamo-nos embora". 

ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
DUNN, Christopher. Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. Trad. Cristina Yamagami. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria de Estado da Cultura, 1989.
JULIÃO, Rafael. Triste Bahia: Caetano Veloso e o caso Gregório De Matos. In. Revista Terceira Margem, v. 21, n. 36, UFRJ, 2017. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/tm/article/view/17831/10820
OLIVEIRA, Ana Lúcia Machado de. Breves anotações sobre a musa praguejadora da “Época Gregório de Matos”. In: ROCHA, Fátima Cristina Dias. Literatura brasileira em foco. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
VIEIRA, Antonio. Sermão da Sexagésima. In: Sermões I; edição crítica. Direção científica de Arnaldo do Espírito Santo. Lisboa: Centro de Estudos de Filosofia / Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2008. p. 21-62.
WISNIK, José Miguel. Poemas escolhidos de Gregório de Matos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Trad. Amálio Pinheiro; Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Sonia Queiroz. Cotia,SP: Ateliê Editorial, 2005.


3 comentários:

Patrícia Anette disse...

Que maravilha. Passei a semana pensando sobre tropicalismo e barroco, e cá esse texto pra coroar o domingo!

Obrigada por compartilhar conosco.
Abraço

Anônimo disse...

Por favor, faça uma leitura de "catedral", interpretada por Leandro e composta por Tanika takaran e Zélia duncan.

Sou uma grande fã desde ontem, quando conheci seu projeto por meio de uma sensível leitura de "manhãs de setembro"

Agradeço desde já <3

Anônimo disse...

Antes tarde do que nunca, agradeço também por compartilhar este texto conosco!