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15 setembro 2019

O meu desejo


No livro Um teto todo seu Virginia Woolf chamou atenção para a urgência de compreender a mudança - "de maior importância do que as Cruzadas ou as Guerras das Rosas" - promovida pela emergência da mulher que escreve (da escrita de autoria feminina) no século XVIII inglês. 
No nosso caso, o que pensar do exemplo da maranhense Maria Firmina dos Reis (1825–1917)? Escritora, negra, com o livro Úrsula (1859) Maria antecedeu o Navio Negreiro (1869) de Castro Alves na discussão antiescravista no Brasil. Além de tematizar a opressão imposta às mulheres. Mas, diferentemente do poeta baiano, só recentemente a professora, romancista, poeta, cronista e jornalista Maria Firmina dos Reis tem recebido o merecido destaque da crítica e das editoras. Reconhecimento advindo muito por causa do trabalho de pesquisadores como os do Grupo Literafro (UFMG), entre outros. No centenário de sua morte, em 2017, Maria foi homenageada no Mulherio das Letras, movimento liderado por Maria Valéria Rezende e Susana Ventura e que revisita e valoriza escritoras silenciadas pela historiografia literária.
Autodidata, Maria Firmina lia e escrevia em Francês, recebeu o título de mestra régia e fundou a primeira escola mista e gratuita do país, causando desconforto na sociedade de Maçarico (MA). A escola foi fechada alguns anos depois e isso dá a proporção do contexto da vida e da obra de Maria Firmina, autora que ousou apresentar em pleno Romantismo brasileiro um "ecrã para a apreensão do sujeito, da sua vida e das condições de produção" (ler Crítica da razão negra de Achille Mbembe). E fez isso utilizando-se das regras de composição nacionalistas da época.
Tomemos como exemplos, além do já citado Úrsula, o conto "A escrava" (1887), o conto indianista "Gupeva" (1861) e o livro de poemas Cantos à beira-mar (1871). Neste livro - publicado pela Typografia do Paiz - Maria Firmina dedica à memória da mãe cinquenta e seis poesias. A praia é o tempo-espaço de meditação e melancolia, alegrias e cismas. "Aqui minh'alma expande-se, e de amor / Eu sinto transportado o peito meu; / Aqui murmura o vento apaixonado, / Ali sobre uma rocha o mar gemeu. // (...) // Quanta doce poesia, que me inspira / O mago encanto destas praias nuas! / Esta brisa, que afaga os meus cabelos, / Semelha o acento dessas frases tuas", diz em "Uma tarde no Cuman". E convida "Vem comigo gozar destas delícias, / Deste amor, que me inspira poesia; / Vem provar-me a ternura de tu'alma, / Ao som desta poética harmonia".
Assim como em Castro Alves ("Como Agar sofrendo tanto, / Que nem o leite de pranto / Têm que dar para Ismael"), Maria Firmina dos Reis usa o conhecimento bíblico para sensibilizar: "Canta o Cordeiro, que gemeu na Cruz, / Raio infinito de esplendente luz", diz no seu poema "O meu desejo". Afinal, como dizer-se cristão, reconhecer o poder do nazareno torturado e morto e mesmo assim fechar os olhos para o horror da escravidão?
Por ocasião do Mulherio das Letras, a cancionista Socorro Lira musicou poemas de Maria Firmina dos Reis. O projeto se desenvolveu em disco com o mesmo nome do livro Cantos à beira-mar (2019) e tem direção e arranjos de Jorge Ribas. Dentre os dez poemas cantados, destaco "O meu desejo". O poema é composto de nove partes: oito sextilhas e uma nona parte composta de uma quadra (em que o eu-lírico se apresenta) mais um terceto (em que o desejo é pronunciado). 
Depois de declamar (falar, oralizar) todo "O meu desejo" Socorro Lira canta o nono trecho: "Eu não te ordeno, te peço, / Não é querer, é desejo; / São estes meus votos - sim. / Nem outra cousa eu almejo. // E que mais posso eu querer? / Ver-te Camões, Dante ou Milton, / Ver-te poeta - e morrer". Para o canto, Socorro altera os versos "são estes sim os meus votos", "te ver Camões, Dante ou Milton" e "te ver poeta - e morrer". Estas alterações em direção à prosódia cotidiana da língua falada aproximam o desejo do sujeito cancional do ouvinte. "Tudo que a letra desconecta da enunciação, a melodia se encarrega de reconectar", anota o professor Luiz Tatit (ler "Ilusão enunciativa da canção").
Musicalmente, Socorro Lira investe "do Espanhol as cantilenas / requebradas de langor" sugeridas pelo Navio Negreiro de Castro Alves; e no ritmo das redondilhas do texto de Maria. Texto que, por isso, pelo uso das regras métricas, se insere no uso da tradição assentada por Camões, Dante, Milton. Há uma nostalgia da palavra encarnada em cada alongamento da última sílaba poética cantada por Socorro, dando conta de figurativizar o sujeito cancional à espera de ver o desejo - dito na letra - realizado.
A primeira estrofe do poema releva a corda merencória utilizada como mote sonoro por Socorro Lira: "Na hora em que vibrou a mais sensível / Corda de tu'alma - a da saudade, / Deus mandou-te, poeta, um alaúde, / E disse: Canta amor na soledade. / Escuta a voz do céu, - eia, cantor, / Desfere um canto de infinito amor". O poeta é o alaúde que vibra a alma da saudade, a voz do céu.
Ao dobrar a própria voz no canto do verso "e que mais posso eu querer?", Socorro Lira tanto une o desejo de Maria Firmina ao seu, quanto reconhece Maria Firmina como poeta, por vê-la Camões, Dante, Milton. Ou seja, no canto de Socorro Lira, Maria Firmina dos Reis ativa a voz aédica que - transgredindo a tradição e o império da escrita - canta sua escrevivência, reconstrói a imagem de si. Por exemplo, em Úrsula, sem fabular a mulher negra escravizada, Maria Firmina problematiza as regras românticas de representação e autorrepresentação.
Vale a pena destacar o testemunho de Mãe Susana no livro: "Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes de nossas matas, que se levam para recreios dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos".
"No centro da épica, existe uma questão de voz. Homero não é simplesmente um contador de histórias. Recebendo-as da Musa, ele as coloca na voz humana e no canto", escreve Adriana Cavarero (ler Vozes plurais). Não é isso que Maria Firmina engendra ao fazer do epos de sua ancestralidade matéria para restituir a phoné (a voz de Mãe Susana) desta mesma ancestralidade (agora cantada na nação em formação)? O relato de Mãe Susana diz aquilo que o albatroz de Castro Alves não conseguiu dizer, por não ter estado nos porões. "Canta, poeta, a liberdade, - canta. / Que fora o mundo sem fanal tão grato... / Anjo baixado da celeste altura, / Que espanca as trevas deste mundo ingrato. / Oh! sim, poeta, liberdade, e glória / Toma por timbre, e viverás na história", diz o eu-lírico de "O meu desejo".
Aliás, tendo sido o livro Canto à beira-mar lançado após o Navio negreiro de Castro Alves, poderíamos pensar que Maria Firmina estaria exaltando os versos do poeta baiano, mas a dedicatória "a um jovem poeta guimaraense" não deixa dúvida sobre o endereçamento do eu-lírico: "E a liberdade, - oh! poeta, - canta, / Que fora o mundo a continuar nas trevas? / Sem ela as letras não teriam vida, / menos seriam que no chão as relvas: / Toma por timbre liberdade, e glória, / Teu nome um dia viverá na história".
Os versos acima registram a esperança que reverberia no "Hino à liberdade dos escravos", composição com letra e música de Maria Firmina dos Reis de 1888 - "Salve o sol que raiou hoje, / difundindo a liberdade, // Quebrou-se enfim a cadeia / da nefasta escravidão! / Aqueles que antes oprimias, / Hoje terás como irmão". Infelizmente, a história mostrou que o desejo - movido pelo contexto da Lei Imperial n.º 3.353, sancionada em 13 de maio de 1888 - não se realizou. O silenciamento perpetrado sobre a obra de Maria Firmina e de tantos intelectuais e artistas negros no Brasil é exemplo disso.
Cantar um poema é ler, interpretar, reanimar o logos da voz do poema. Voz que guarda o tempo histórico: a memória. De que modo cancionistas dos séculos XX/XXI estão lendo poemas de séculos anteriores e repensando o cânone literário? Neste caso, ao cantar os versos de Maria Firmina dos Reis, Socorro Lira ressignifica e ativa o desejo. Isto é, toma por timbre a liberdade e recoloca o nome Maria na história.


***

O meu desejo
(Maria Firmina dos Reis / Socorro Lira)

                         A um jovem poeta guimaraense

Na hora em que vibrou a mais sensível
Corda de tu'alma - a da saudade,
Deus mandou-te, poeta, um alaúde,
E disse: Canta amor na soledade.
Escuta a voz do céu, - eia, cantor,
Desfere um canto de infinito amor.

Canta os extremos duma mãe querida,
Que te idolatra, que te adora tanto!
Canta das meigas, das gentis irmãs,
O ledo riso de celeste encanto;
E ao velho pai, que tanto amor te deu,
Grato oferece-lhe o alaúde teu.

E a liberdade, - oh! poeta, - canta,
Que fora o mundo a continuar nas trevas?
Sem ela as letras não teriam vida,
menos seriam que no chão as relvas:
Toma por timbre liberdade, e glória,
Teu nome um dia viverá na história.

Canta, poeta, no alaúde teu,
Ternos suspiros da chorosa amante;
Canta teu berço de saudade infinda,
Funda lembrança de quem está distante:
Afina as cordas de gentis primores,
Dá-nos teus cantos trescalando odores.

Canta do exílio com melífluo acento,
Como Davi a recordar saudade;
Embora ao riso se misture o pranto;
Embora gemas em cruel soidade...
Canta, poeta, - teu cantar assim,
Há de ser belo enlevador enfim.

Nos teus harpejos juvenil poeta,
Canta as grandezas que se encerram em Deus,
Do sol o disco, - a merencória lua,
Mimosos astros a fulgir nos céus;
Canta o Cordeiro, que gemeu na Cruz,
Raio infinito de esplendente luz.

Canta, poeta, teu cantar singelo,
meigo, sereno com um riso d'anjos;
Canta a natura, a primavera, as flores,
Canta a mulher a semelhar arcanjos.
Que Deus envia à desolada terra,
Bálsamo santo, que em seu seio encerra.

Canta, poeta, a liberdade, - canta.
Que fora o mundo sem fanal tão grato...
Anjo baixado da celeste altura,
Que espanca as trevas deste mundo ingrato.
Oh! sim, poeta, liberdade, e glória
Toma por timbre, e viverás na história.

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Eu não te ordeno, te peço,
Não é querer, é desejo;
São estes meus votos - sim.
Nem outra cousa eu almejo.

E que mais posso eu querer?
Ver-te Camões, Dante ou Milton,
Ver-te poeta - e morrer.

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