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30 maio 2019

Desktop

De 1993 a 1996, Lenora de Barros fez da coluna "Umas" (Jornal da Tarde) um espaço de experimentação verbovisual, fotoperformática da palavra. Artista plástica, poeta e formada em linguística (FFLCH/USP), baseada nas ideias da Poesia Concreta, Lenora pesquisou e exercitou o espaço gráfico do jornal (perecível e arquivista) como agente estrutural da sua obra. A intermidialidade é marca da artista.
Alguns poemas visuais e vídeotextos de Lenora, antes de serem expostos em galerias, por exemplo, apareceram (foram testados?) primeiro em "Umas". É o caso de "Desktop". Antes de ser registrado no disco No lago do olho (2001) de Cid Campos, o poema visual figurou com o título "Amnésia 42 MP", no jornal.
O poema faz uso do "método de compor baseado na justaposição direta – analógica, não lógico-discursiva – de elementos", como prevê o "Plano piloto para poesia concreta" (1958), de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Ideograma e montagem (Eisenstein) estruturam forma e conteúdo do poema: "tensão de palavras-coisas no espaço-tempo".
Em "Amnésia 42 MP" o significado só se realiza se as palavras "a memória / da minha / memória / apagou-se / de si / para esquecer-se / de mim" forem vistas conjuntamente às imagens de pastas de arquivo de computador. Cada "verso" é um arquivo, é uma pasta. Forma é conteúdo, portanto, aquilo que se sugere apagado supõe-se guardado nas pastas, cujos nomes montam o esquema de execução do poema na voz.
A subjetividade é solapada entre "mim" e "si" da memória (auto)apagada. A lírica interrompida, o sujeito poemático sem vínculo com o passado e a estrutura em abismo (mise en abyme, diria André Gide) da mensagem potencializam o sujeito em busca de chão, de si. O corpo do poema é o corpo do sujeito: pastas, aparentemente vazias, já que, "para esquecer-se / de mim", ""a memória / da minha / memória / apagou-se / de si". Aliás, esta possibilidade de inversão da ordem de leitura das pastas-versos será explorada na canção feita sobre o poema.
No disco de Cid Campos o poema apresenta-se em sua qualidade verbivocovisual, conceito que o grupo Noigrandes retirou de Finnegans Wake, de James Joyce: amalgama de palavra, imagem e som. Se as pastas estão vazias de conteúdo, a voz da artista lendo cumpre o papel de arquivo da memória,
agora gravada no disco. Lenora e Cid investem neste jogo entre memória e apagamento, presença e esquecimento. As palavras pronunciadas sem encadeamento fraturam a memória e o ritmo (o pulso do sujeito), ou seja, apontam a estrutura menos temporístico-linear e mais espaciotemporal daquilo que é dito, guardado, arquivado na memória (artificial) do desktop, da área de trabalho, do tampo da mesa.
No texto lido/visto, o poema é um jogo de armar que exige do leitor a manipulação. Já no texto ouvido adensa-se a perda-de-si do sujeito. A voz de Lenora (depois acompanhada pela voz de Cid) evita a objetividade, afinal, não há sujeito possível a ser apresentado. Fundo e forma controlam o sentido composto pelos significantes (vazios) de cada verso. Quando a voz de Lenora soa pela primeira vez ela está sozinha. A voz diz "a memória" como quem ativa algo, como quem tenta lembrar o que deve dizer. Só depois da primeira oralização titubeante de "a memória" é que o som de um pandeiro vem à ajuda da voz marcar o ritmo e ressignificar a versão visual do poema. A voz não é a protagonista, é parte, juntamente com os ícones da tecnologia e os instrumentos.
Lenora de Barros realiza vocoperformance hesitante e fraturada - não convencional - do verbo em "Desktop". O ritmo advém da força relacional entre o dito e o modo de dizer. Lenora cria um sujeito cancional que tensiona a voz sobre a melodia de baixo, teclado e samplers (Cid Campos), guitarra mute, violões base e solo (Felipe Ávila) e bateria e percussão (Zé Eduardo Nazário).  
"Só em um talento genuíno, como o de Cid Campos (já há algum tempo atuando como instrumentista, compositor, arranjador e produtor), a música pode acontecer assim tão sutilmente universal e quase despercebidamente pessoal, misteriosa e precisa, antiga e atual, aquém e além das diferenças preliminares entre invenção e repetição, mestria e casualidade, arte e técnicas", escreveu Péricles Cavalcanti para a apresentação do disco No lago do olho.
O resultado é um samba-baião pop-vanguardista, uma poesia sonora. Entendendo poesia sonora como expressão "que designa hoje, genericamente e por todo o mundo, toda espécie de experimento com elementos passíveis de escuta numa obra poética", anota Philadelpho Menezes. E completa: "Poesia sonora se define mais precisamente não tanto por sua adjetivação que explicita a presença da sonoridade no poema, mas por outra adjetivação implícita: a de experimentação" (ver Poesia Sonora, p. 9-10).
Ainda para Philadelpho, "o experimentalismo poético sonoro se nutre de uma utopia da transformação estética que conduziria a uma modificação das sensibilidades" (p. 10-11). Eis o processo engendrado em "Desktop": "uma comunicação de formas, de uma estrutura-conteúdo, não da usual comunicação de mensagens" (ver "Plano Piloto para Poesia Concreta").
O (des)equilíbrio da unidade rítmico-formal entre declamação e canto tem núcleo no uso da palavra-título "desktop", que não está no poema visual, mas funciona na canção como refrão e eixo entre a poesia sonora e outras formas de oralidade.
Se musicar, ou seja, recompor a entoação embrionária da palavra grafada em livro, requer engenho do cancionista, melodizar um poema visual requer um trabalho de arte redobrado. Trabalho que Cid Campos - afinado com as potencialidades digitais - tem desempenhado com rigor e vigor, pelo menos, desde que produziu Poesia é risco (1995), em que melodizou poemas de Augusto de Campos; e Ouvindo Oswald (1999), quando deu tratamento sonoro às raras gravações da voz de Oswald de Andrade e às declamações de poemas oswaldianos feitas por, entre outros, Lenora de Barros.
De acordo com Cláudia Neiva de Matos, "o desenvolvimento das tecnologias de áudio e também de áudio-visual abriu possibilidades de criação e comunicação poética que só podem ser avaliadas por uma reflexão que problematize e ultrapasse a dicotomia entre oral e escrito, ainda que essa dicotomia tenha de ser mais uma vez evocada no momento em que a reflexão se instala" (Ver Vanguardas poéticas e tecnologias sonoras: poesia é risco, In: revista Matraga, nº 27, p. 95).
Se em "Amnésia 42 MP" Lenora de Barros chama atenção para o processo (individual) de montagem artificial da memória, Cid Campos faz de "Desktop" espaço de experimentação sonora e não de deleite, de conforto. O trânsito da poesia do jornal para a poesia do CD marca o caráter multifacetado da estética de invenção que ambos desenvolvem experimentado a soma do aspecto visual e o aspecto sonoro da palavra.
Além de apresentar trabalhos exclusivamente assinados por ele, no mesmo disco, Cid Campos melodiza poemas verbivisuais de Augusto de Campos ("Flor da boca", "Tempoespaço", "Viventes e vampiros"), Haroldo de Campos ("Crisantempo"), Décio Pignatari ("LIFE"), Walter Silveira ("Banheiro publyko", "Sairótsih"), Arnaldo Antunes ("Máximo fim"), Ronaldo Azeredo ("Velocidade") e José Lino Grünewald ("Apertar o cinto"). Além de poemas, digamos, discursivos, tais como de Péricles Cavalcanti ("Corredeira") e de Eurico de Campos ("Samba concreto"). O que faz de No lago do olho uma preciosidade experimental e inventiva. Estimulo à escuta e à pesquisa.

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Desktop
(Lenora de Barros / Cid Campos)

 

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