A
Tropicália está completando meio século. Suas propostas marcaram profundamente
o modo da Arte no Brasil. Sua "consciência de subdesenvolvimento"
afirmava a ruptura entre cool e popular, vanguarda e primitivismo, cultura de
massa e de elite economicamente privilegiada. Sua utopia inconfessa mirava na
queda do muro entre a senzala e a casa grande, diante de nossa histórica
condição de colônia e periferia do capitalismo.
Como
disse Caetano Veloso, a Tropicália negava "folclorizar o subdesenvolvimento
["se intimidar diante de si mesmo"] para compensar dificuldades
técnicas. Ora, sou baiano, mas a Bahia não é só folclore. E Salvador é uma
cidade grande. Lá não tem apenas acarajé, mas também lanchonetes e hot
dogs" (entrevista, 1967). E completou: "rechaço o que me parecem
tentativas ridículas de neutralizar as características esquisitas desse monstro
católico tropical, feitas em nome da busca de migalhas de respeitabilidade
internacional mediana" (Verdade
tropical, 1997).
Essa
abertura à recepção e ao contato com o outro, estes lances de alteridade, esse
tornar-se outro, base de nossa "tradição da ruptura", faz-nos
destacar que a Tropicália pode ser interpretada como uma revisão crítica da
Antropofagia oswaldiana: "Só me interessa o que não é meu", anotou
Oswald de Andrade em seu "Manifesto Antropófago" (1928).
Aliás,
foi também Caetano Veloso quem escreveu que "a ideia do canibalismo
cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos
"comendo" os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a
atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e
exaustiva." (Verdade tropical).
Para Caetano, a Antropofagia "é antes uma decisão de rigor do que uma
panaceia para resolver o problema de identidade do Brasil. (...) A
antropofagia, vista em seus termos precisos, é um modo de radicalizar a exigência
de identidade (e de excelência na fatura), não um drible na questão."
(idem).
Para
o professor Benedito Nunes, "como símbolo da devoração, a Antropofagia é,
a um tempo, metáfora, diagnóstico e terapêutica: metáfora orgânica, inspirada
na cerimônia guerreira da imolação pelos tupis do inimigo valente apressado em
combate, englobando tudo quanto devemos repudiar, assimilar e superar para a
conquista da nossa autonomia intelectual; diagnóstico da sociedade brasileira
como sociedade traumatizada pela repressão colonizadora que lhe condicionou o
crescimento, e cujo modelo terá sido a repressão da própria antropofagia ritual
pelos Jesuítas, e terapêutica, por meio dessa reação violenta e sistemática,
contra os mecanismos sociais e políticos, os hábitos intelectuais, as
manifestações literárias e artísticas, que, até à primeira década do século XX,
fizeram do trauma repressivo, de que a Catequese constituiria a causa exemplar,
uma instância censora, um Superego coletivo". ("A antropofagia ao
alcance de todos").
Parece-nos
que o movimento orientado por Caetano compreendia bem isso. Seja no gesto
dessacralizador e demolidor (satírico), bem como nos comportamentos criativos
sobre a tênue linha entre o óbvio e o exótico, a Tropicália devolveu a poesia
ao corpo. Recalcados por anos de imposição grafocêntrica e patriarcal, a poesia
e o corpo foram liberados numa catarse terapêutica tonificante e, portanto, perigosa. Ao causar pane no sistema,
armada sobre o ser e não ser, na ambiguidade, na indefinição, na transvaloração
dos gêneros, dos sexos, das etnias, a Tropicália incomodou. Nossa convalescença
intelectual não soube lidar com tamanha ousadia. A rebelião estava - como
sempre está - na linguagem, no modo de usar, na transformação permanente do
tabu em totem.
Vale
lembrar o causo narrado por Ney Matogrosso: "Eu fui na única sorveteria de
Brasília, dentro do único hotel de Brasília, e quando estou na sorveteria, o
Caetano sai inteiro vestido de cor de rosa. Rosa era uma cor que jamais um
homem colocaria na viradinha da meia do pé esquerdo. Ele estava de rosa do
pescoço ao pé, porque ele saiu com o figurino do show. Eu nunca tinha visto.
Era uma afronta! Mas o impacto que ele provocou dentro de mim foi positivo,
então o que eu pensei foi "poxa, se eu fosse artista, queria provocar
isso". Fiquei todo tocado, mexido, estimulado. Se eu fosse artista, queria
provocar algo assim. Eu não queria copiar aquilo, mas fui aceso por aquilo".
O ano era 1964, ditadura militar. O que aconteceu desde então, todos sabemos:
verdade e ação contra o messianismo patriarcal fascista.
Faço
essas considerações prévias para comentar a canção intitulada "Caetano
Veloso" de Johnny Hooker (Coração,
2017). Não é preciso muito esforço para perceber que se trata de uma homenagem
ao organizador da Tropicália. A pergunta "Você já foi a Bahia?"
glosada por Dorival Caymmi é respondida por Hooker já na abertura da letra:
"Eu nunca fui a Bahia / Eu nunca fui a Salvador". O sujeito da canção
de Hooker não precisa ir a Bahia, Caetano Veloso é a síntese da Bahia que
interessa.
Se
em "Vamo comer Caetano", pela ambiguidade dos versos e mistura de
ritmos, Adriana Calcanhotto resgatava o tom erótico, jocoso e corrosivo da
Tropicália - "Vamos comer Caetano / Pela frente / Pelo verso / Vamos
comê-lo cru" -, em "Caetano Veloso" a mensagem direta e laudatória - pouco antropófaga, nada canibal - não exige a imaginação do
ouvinte. Talvez a agoridade exaltada da Tropicália esteja presente em versos
como "Dançar contigo me dá Caetano / Amanhã cedo a gente pode
esquecer". Vê-se que, diferente de Calcanhotto, que se apropria da
vitalidade criativa de Caetano, Hooker mantem o cânone caetânico sagrado, intocável,
tabu.
Com
um pouco mais de atenção (e boa vontade) até poderíamos relacionar os versos de
Hooker - “Mas um dia que a gente não troca calor / Não me preocupa / Alguém por
aqui me mostrou / Caetano Veloso” - com os versos do sujeito exilado em
“Itapuã” (1991): "Itapuã, quando tu me faltas, tuas palmas altas / Mandam
um vento a mim, assim: Caymmi". Portanto, Caymmi seria para Hooker o que
Caymmi é para Caetano: calor, presença, pertencimento. Porém, sem outros
elementos de uma canção do exílio, tal interpretação soa forçada.
Se
para Caetano Veloso "o tropicalismo começou dolorosamente". E foi
"o desenvolvimento de uma consciência social, depois política e econômica,
combinada com exigências existenciais, estéticas e morais que tendiam a pôr
tudo em questão" (Verdade tropical),
para o sujeito da canção de Hooker o banzo - esse "sentimento de
melancolia em relação à terra natal e de aversão à privação da liberdade
praticada contra a população negra no Brasil na época da diáspora
africana", como diz Wikipedia - é enfrentado com toques de ijexá.
De
fato, a canção "Caetano Veloso", o personalismo que o título sugere,
insere-se no projeto “narciso pintado em ouro” de Hooker. Sua fossa solar, tão
bem apresentada no disco anterior - Eu vou
fazer uma macumba pra te amarrar, maldito! (2015) -, cheia de pragas, juras
e ex-votos do amor romântico em primeira pessoa do singular, finda espelhar
demais. Sem refração crítica tropicalista e caetânica.
Nesse
sentido, Hooker é mais eficaz antropofagicamente na derradeira canção do disco.
"Escandalizar", assim como "Desbunde geral", do disco
anterior, é uma ode à felicidade urgente e devora "Chuva, suor e cerveja"
(1977), de Caetano Veloso. Além de evocar a “bruta flor do querer”, citação de “O
quereres” (1984).
Ao
escrever aqui sobre "Desbunde geral", observei que
"no Brasil, desbundar é resistir, é engendrar gestos antiprovincianos e
ser contra a mentalidade conservadora e domesticadora dos corpos. É ainda a
recusa dos discursos populistas, é criticar os projetos de tomada de poder,
diante da certeza da falência do sistema. O desbundado faz do desbunde a
crítica como resistência, a resistência como desvio, o desvio como
enfrentamento". É aqui que Hooker consegue dá o salto crítico
carnavalizante (o exótico óbvio) que a Tropicália impulsionou.
***
(Johnny Hooker)
Eu nunca fui a Bahia
Eu nunca fui a Salvador
Mas um dia que a gente não troca calor
Não me preocupa
Alguém por aqui me mostrou
Caetano Veloso
Eu tô chegando
Tira aquele pé de trás
Bate aquele banzo
Que eu já vou me levantar
Que eu já tô me levantando
Dançar contigo me dá Caetano
Amanhã cedo a gente pode esquecer
Eu nunca fui a Salvador
Mas um dia que a gente não troca calor
Não me preocupa
Alguém por aqui me mostrou
Caetano Veloso
Eu tô chegando
Tira aquele pé de trás
Bate aquele banzo
Que eu já vou me levantar
Que eu já tô me levantando
Dançar contigo me dá Caetano
Amanhã cedo a gente pode esquecer
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