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06 abril 2017

Cancioneiro - Ferreira Gullar



A “letra de música”, sem a música, sem a voz, publicada num livro impresso, constitui um poema escrito? Essa questão amplia outra, mais ingênua, porém não menos marcada por aspectos e preconceitos estéticos, culturais e políticos, a saber: “letra de música é poesia?” 
Penso que o uso do termo “letra”, carregado do sentido impresso que ele tomou, anula a questão e interdita a resposta reflexiva, pois define de antemão o lugar que a poesia deve ocupar. Além de impor uma hierarquia entre as linguagens.
A aliança entre Música e Poesia remonta à origem da linguagem, ou seja, quando o canto está indissociável da poesia: dos aedos gregos à lírica trovadoresca; dos encantamentos indígenas aos orikis nagô-ioruba. O fato é que mesmo no império grafocêntrico, com a tipografia e o prestígio da palavra escrita, o verbo poético não renuncia a voz (ritmo, timbre, dicção) humana. Basta ler o clássico texto de T. S. Eliot – “As três vozes da poesia” – para perceber como poetas e críticos vêm tentando perceber essa relação. Aliás, a bibliografia neste campo é extensão.
Por outro lado, se a princípio todo poema pode ser musicado, a musicalização precisa atender a estruturas específicas ao acabamento da canção. Os procedimentos são outros. Por exemplo, caberá ao melodista buscar a "entoação embrionária" (expressão de Luiz Tatit) dos versos para, entendendo o ser e o tempo poético, criar a canção.
Seja como for, lido em concomitância à escuta das canções, o livro das letras de um cancionista é um bom exercício estético para profissionais da palavra escrita e da palavra cantada.
Tendo uma Canção Popular tão forte, a parceria entre letristas e poetas é marca de nossa cultura brasileira. Mesmo à margem de algumas resistências. É o caso do poeta Ferreira Gullar, autor da célebre letra (1976) de "Trenzinho do caipira”, parte integrante da peça Bachianas Brasileiras nº 2 (1933) de Heitor Villa-Lobos. Mas Gullar também assina outras peças de poemas musicados e de letras de canção.
Na esteira de alguns cancionistas que têm publicado suas letras para a leitura em livro impresso (ainda hoje suporte preferencial da poesia), a editora Topbooks lançou Cancioneiro – Ferreira Gullar (2015). A coleção das 13 letras ficou a cargo do professor Antonio Carlos Secchin e revela um Gullar talvez pouco conhecido no ambiente acadêmico que lhe é de costume. O próprio Secchin anota que “quando me predispus a reunir o cancioneiro de Ferreira Gullar, julgava que encontraria no máximo meia dúzia de letras. Para minha agradável surpresa, e contando com a prestimosa colaboração do gullariano Augusto Sérgio Bastos, foi possível chegar a treze”.
Cantados por Nara Leão, Edu Lobo, Chico Buarque, Maria Bethânia, Adriana Calcanhoto e Zé Ramalho, os versos do poeta Ferreira Gullar, parceiro de cancionistas como Sueli Costa, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Milton Nascimento e Fagner, são apresentados em versão manuscrita e digitada. Tal e qual as boas edições do cancioneiro da antiga poesia lírica provençal, por exemplo.
O critério de registrar unicamente “letras”, não “poemas musicados”, deixa de fora peças importantes – "Traduzir-se" (Fagner e Ferreira Gullar), "Bela bela" (Milton Nascimento e Ferreira Gullar) e "Poema Obsceno" (Ferreira Gullar e Moacyr Luz), entre outras. Ao mesmo tempo em que ilumina obras menos conhecidas como "Promessa de vida", com música de Murilo Alvarenga e interpretação de Gilliard (1986). Além das inéditas "Diferença" e "Menina passarinho", com música de Sueli Costa.
Nesse movimento de colocar em livro o que foi feito para a voz, a parceria entre Ferreira Gullar e Raimundo Fagner é reafirmada em quantidade. E fica evidente também que seja para a escuta, seja para a leitura, o rigor gullariano – sofisticação verbal e pesquisa rítmica – está presente. Ornado por 14 xilogravuras de Ciro Fernandes, o livro é objeto de arte importante para o acervo do colecionador, leitor, ouvinte de canção e de poesia.

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As letras

1. “Borbulhas de amor”. Vinil Pedras que cantam (1991). Música e letra: Juan Luis Guerra (“Burbujas de amor”), versão de Ferreira Gullar. Intérprete: Fagner.
2. “Canção do bicho”. Vinil Manhã de liberdade (1966). Música: Geni Marcondes e Denoy de Oliveira. Intérprete: Nara Leão.
3. “Contigo”. Vinil Palavra de amor (1983). Música: Fagner. Intérpretes: Fagner e Chico Buarque.
4. “Diferença”. Inédita. Música: Sueli Costa.
5. “Escuta, moça”. Vinil Íntimo (1984). Música e interpretação: Sueli Costa.
6. “Menina passarinho”. Inédita. Música: Sueli Costa.
7. “Menos a mim”. Vinil Pedras que cantam (1992). Música e interpretação: Fagner.
8. “Meu veneno”. Vinil Angelus (1993). Música e interpretação: Milton Nascimento.
9. “Onde andarás”. Vinil Caetano Veloso (1967). Música e interpretação: Caetano Veloso.
10. “Promessa de vida”. Vinil Gilliard (1986). Música: Murilo Alvarenga. Intérprete: Gilliard.
11. “Solução de vida”. CD Bebadosamba (1996). Música e interpretação: Paulinho da Viola.
12. “Te procuro lá”. Vinil Paralelo 30 (1978). Música e interpretação: Raul Ellwanger.
13. “Trenzinho do caipira”. Vinil Camaleão (1978). Música: Heitor Villa-Lobos. Intérprete: Edu Lobo. Letra publicada inicialmente no livro Poema sujo (1976).
 

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