A
“letra de música”, sem a música, sem a voz, publicada num livro impresso,
constitui um poema escrito? Essa questão amplia outra, mais ingênua, porém não
menos marcada por aspectos e preconceitos estéticos, culturais e políticos, a saber:
“letra de música é poesia?”
Penso que o uso do termo “letra”, carregado do
sentido impresso que ele tomou, anula a questão e interdita a resposta
reflexiva, pois define de antemão o lugar que a poesia deve ocupar. Além de
impor uma hierarquia entre as linguagens.
A
aliança entre Música e Poesia remonta à origem da linguagem, ou seja, quando o
canto está indissociável da poesia: dos aedos
gregos à lírica trovadoresca; dos encantamentos indígenas aos orikis
nagô-ioruba. O fato é que mesmo no império grafocêntrico, com a tipografia e o prestígio
da palavra escrita, o verbo poético não renuncia a voz (ritmo, timbre, dicção) humana.
Basta ler o clássico texto de T. S. Eliot – “As três vozes da poesia” – para
perceber como poetas e críticos vêm tentando perceber essa relação. Aliás, a
bibliografia neste campo é extensão.
Por
outro lado, se a princípio todo poema pode ser musicado, a musicalização
precisa atender a estruturas específicas ao acabamento da canção. Os
procedimentos são outros. Por exemplo, caberá ao melodista buscar a
"entoação embrionária" (expressão de Luiz Tatit) dos versos para,
entendendo o ser e o tempo poético, criar a canção.
Seja
como for, lido em concomitância à escuta das canções, o livro das letras de um cancionista é um bom exercício
estético para profissionais da palavra escrita e da palavra cantada.
Tendo
uma Canção Popular tão forte, a parceria entre letristas e poetas é marca de
nossa cultura brasileira. Mesmo à margem de algumas resistências. É o caso do
poeta Ferreira Gullar, autor da célebre letra (1976) de "Trenzinho do
caipira”, parte integrante da peça Bachianas
Brasileiras nº 2 (1933) de Heitor Villa-Lobos. Mas Gullar também assina
outras peças de poemas musicados e de letras de canção.
Na
esteira de alguns cancionistas que têm publicado suas letras para a leitura em
livro impresso (ainda hoje suporte preferencial da poesia), a editora Topbooks
lançou Cancioneiro – Ferreira Gullar (2015).
A coleção das 13 letras ficou a cargo do professor Antonio Carlos Secchin e
revela um Gullar talvez pouco conhecido no ambiente acadêmico que lhe é de
costume. O próprio Secchin anota que “quando
me predispus a reunir o cancioneiro de Ferreira Gullar, julgava que encontraria
no máximo meia dúzia de letras. Para minha agradável surpresa, e contando com a
prestimosa colaboração do gullariano Augusto Sérgio Bastos, foi possível chegar
a treze”.
Cantados
por Nara Leão, Edu Lobo, Chico Buarque, Maria Bethânia, Adriana Calcanhoto e Zé
Ramalho, os versos do poeta Ferreira Gullar, parceiro de cancionistas como
Sueli Costa, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Milton Nascimento e Fagner, são
apresentados em versão manuscrita e digitada. Tal e qual as boas edições do cancioneiro da antiga poesia lírica provençal, por exemplo.
O
critério de registrar unicamente “letras”, não “poemas musicados”, deixa de
fora peças importantes – "Traduzir-se" (Fagner e Ferreira Gullar),
"Bela bela" (Milton Nascimento e Ferreira Gullar) e "Poema
Obsceno" (Ferreira Gullar e Moacyr Luz), entre outras. Ao mesmo tempo em
que ilumina obras menos conhecidas como "Promessa de vida", com
música de Murilo Alvarenga e interpretação de Gilliard (1986). Além das
inéditas "Diferença" e "Menina passarinho", com música de
Sueli Costa.
Nesse
movimento de colocar em livro o que foi feito para a voz, a parceria entre Ferreira
Gullar e Raimundo Fagner é reafirmada em quantidade. E fica evidente também que seja
para a escuta, seja para a leitura, o rigor gullariano – sofisticação verbal e
pesquisa rítmica – está presente. Ornado por 14 xilogravuras de Ciro Fernandes,
o livro é objeto de arte importante para o acervo do colecionador, leitor, ouvinte de canção e
de poesia.
***
As letras
1. “Borbulhas de amor”. Vinil Pedras que cantam (1991). Música e letra: Juan Luis Guerra (“Burbujas de amor”), versão de Ferreira Gullar. Intérprete: Fagner.
2. “Canção do bicho”. Vinil Manhã de liberdade (1966). Música: Geni Marcondes e Denoy de Oliveira. Intérprete: Nara Leão.
3. “Contigo”. Vinil Palavra de amor (1983). Música: Fagner. Intérpretes: Fagner e Chico Buarque.
4. “Diferença”. Inédita. Música: Sueli Costa.
5. “Escuta, moça”. Vinil Íntimo (1984). Música e interpretação: Sueli Costa.
6. “Menina passarinho”. Inédita. Música: Sueli Costa.
7. “Menos a mim”. Vinil Pedras que cantam (1992). Música e interpretação: Fagner.
8. “Meu veneno”. Vinil Angelus (1993). Música e interpretação: Milton Nascimento.
9. “Onde andarás”. Vinil Caetano Veloso (1967). Música e interpretação: Caetano Veloso.
10. “Promessa de vida”. Vinil Gilliard (1986). Música: Murilo Alvarenga. Intérprete: Gilliard.
11. “Solução de vida”. CD Bebadosamba (1996). Música e interpretação: Paulinho da Viola.
12. “Te procuro lá”. Vinil Paralelo 30 (1978). Música e interpretação: Raul Ellwanger.
13. “Trenzinho do caipira”. Vinil Camaleão (1978). Música: Heitor Villa-Lobos. Intérprete: Edu Lobo. Letra publicada inicialmente no livro Poema sujo (1976).
1. “Borbulhas de amor”. Vinil Pedras que cantam (1991). Música e letra: Juan Luis Guerra (“Burbujas de amor”), versão de Ferreira Gullar. Intérprete: Fagner.
2. “Canção do bicho”. Vinil Manhã de liberdade (1966). Música: Geni Marcondes e Denoy de Oliveira. Intérprete: Nara Leão.
3. “Contigo”. Vinil Palavra de amor (1983). Música: Fagner. Intérpretes: Fagner e Chico Buarque.
4. “Diferença”. Inédita. Música: Sueli Costa.
5. “Escuta, moça”. Vinil Íntimo (1984). Música e interpretação: Sueli Costa.
6. “Menina passarinho”. Inédita. Música: Sueli Costa.
7. “Menos a mim”. Vinil Pedras que cantam (1992). Música e interpretação: Fagner.
8. “Meu veneno”. Vinil Angelus (1993). Música e interpretação: Milton Nascimento.
9. “Onde andarás”. Vinil Caetano Veloso (1967). Música e interpretação: Caetano Veloso.
10. “Promessa de vida”. Vinil Gilliard (1986). Música: Murilo Alvarenga. Intérprete: Gilliard.
11. “Solução de vida”. CD Bebadosamba (1996). Música e interpretação: Paulinho da Viola.
12. “Te procuro lá”. Vinil Paralelo 30 (1978). Música e interpretação: Raul Ellwanger.
13. “Trenzinho do caipira”. Vinil Camaleão (1978). Música: Heitor Villa-Lobos. Intérprete: Edu Lobo. Letra publicada inicialmente no livro Poema sujo (1976).
Nenhum comentário:
Postar um comentário