"Uma
esperança morta", "uma ferida aberta", "um carnaval
onírico". Elementos da alquimia (instalação) sonora engendrada pelos três
amigos (para matar): Juçara Marçal, Thiago França e Kiko Dinucci - a alma
tríplice do Metá Metá: "um carmim, um fim, um dó / um agogô, um pus, um
som".
Esses
e outros versos do disco MM3 (2016)
refazem os caminhos do trio, de "um canto perdido na voz incomum",
canto que é "marca da felina sonsa que tem asa". Felina que é orixá
sirênico urbano, é "escultura quebrada, falo partido, presságio
infeliz". A intertextualidade entre as letras das canções - nos versos,
expressões e temas des-dobrados - afirma esse canto trágico e lírico da vida
nua, crua, épica singular. "Meu amor, eu acho que se a gente for pensar /
de repente nem dá tempo de se imaginar", canta a tríade.
Nesse
sentido, pensar MM3 como uma
instalação não será um erro grave. A autonomia da obra é estabelecida nas
dobras dos elementos que retornam. Esses retornos não deixam o pensamento
travar e fazem o ouvinte pensar a obra a partir da obra. Além de permitirem a
experiência de um mundo criado, inventado, cantado. Ou seja, esse re-tornar
(sinônimo de sonar, tonar e ecoar) restaura o desconhecimento de mundo do ouvinte.
E presentifica um mundo novo, cujo saber vem do embate com a obra-tribo de
"uma beleza disforme, sem rosto, sem nome, sem moderação".
Parêntese:
a letra da canção "A imagem do amor", de Kiko Dinucci e Rodrigo
Campos, oferece matéria para a reflexão sobre a questão trans: trans-sexual,
trans-e, trans-formar, trans-piração. O canto do nascimento de "uma menina
tardia dos guias de luz" é ambíguo e metafórico (como toda linguagem
artística deveria ser) e tematiza um corpo trans-formado, uma "escultura
quebrada" a ferir os "olhos desleais". Fim do parêntese.
Se
"de repente nem dá tempo de imaginar", o disco MM3 é "circular dentro de si". Ou seja, esculturaliza o
corpo vão, faz o certo virar errado e o vazio virar semente, pó. Assim, engolir
o mundo e regurgitar é gesto próprio dessa "boca funil" que "faz
o torto voltar a ser regra". Boca cujo som é a amálgama da voz, da
guitarra e do sax da trindade artística.
Sendo
a dissonância a única possibilidade de acesso à verdade, o som do Metá Metá se
rebela contra as aparências da arte que se declara insuficiente para si mesma.
Daí que, se a obra é autônoma, ela não é independente e contem o histórico. No
caso, os arquétipos e seus ensinamentos ancestrais - a afirmação da
desterritorialidade (antropofágica?) da potência afro. O mito da democracia
racial aparece em contraponto à histórica distorção domesticadora da
ancestralidade. A razão canônica versus a filosofia orecular.
A
antropofagia é anterior ao conceito. Daí o pedido-motriz: "Me diz de onde
é que vem a sede de cantar, a seiva da canção no sangue tom carmim?", da
canção "Angolana", assinada pelo trio. Todo o trabalho da voz de
Juçara Marçal, da voz e da guitarra de Kiko Dinucci, do sax de Thiago França,
do baixo de Marcelo Cabral e da bateria de Sergio Machado é uma investigação
disso.
A
Angolana do título é musa evocada e cujo canto tríplice é traduzido no som
produzido e dado ao público no disco. A Angolana é anterior à antropofagia.
"Só podemos atender ao mundo orecular", anota Oswald de Andrade no
Manifesto Antropófago. Orecular é fazer do ouvido oráculo, é estar e ser à
escuta. E aqui a Angolana é o oráculo a ser consultado, é "Angoulême"
- bússola e desorientação, que "grita um verso a quem passar".
O
enigma é mantido, pois os caracteres enigmáticos da Angolana provem do gesto de
produzi-la na efemeridade do canto, da canção. Contra o messianismo sem messias
do capitalismo, a Angolana está preservada em sua indeterminação matriarcal, no
esforço artificialmente frustrado de cantar sua forma. Assim, a Angolana fala
como as sereias nas mitologias: uma fala em ruidoso silêncio e que se aproxima
do ouvinte através da circularidade do ordinário: "Pra o onde quer que eu
vá / vou ao redor de mim", diz o sujeito.
Tomemos
como exemplo desses retornos internos que miram "a sina de correr ao redor
de mim (de si)" a cor vermelha, o encarnado, a carnação da canção que a
Angolana é, o carmim espraiado em todo o disco. "Tem um carmim, um fim, um
dó"; "pele tatuada, carne mutilada, o seu dente sangra", "o
bisturi, a toalha"; "no sangue tom carmim"; "o vermelho do
vinho"; "o be ri omon".
Lembremos
que "a cor do pecado é rouge carmim", no canto de Alceu Valença;
"eu não consigo evitar / desejo esse seu corpo / cheiro de carmim",
canta Benito di Paula; "me suja de carmim / me põe na boca o mel",
pede Wando; "uma ponta de cigarro / manchada de carmim / foi a única
lembrança / que ficou pra mim", canta Ary Barroso; "guardo o lencinho
branco / que esqueceste ao me abandonar / manchado assim pelo carmim que /
tirei dos meus lábios quando te beijei", canta Dalva de Oliveira; "Eu
quero, quero, quero, é claro que sim / iluminar o escuro com meu bustiê carmim
/ mesmo quando choro e adivinho que é esse o meu fim", afirma Maria
Bethânia; "mamã mamãe, eu quero sim / quero ser mandarim / cheirando
gasolina / na fina flor do meu jardim / assim como carmim / da boca das meninas
/ que a vida arrasa e contamina / o gás que embala o balancê" canta Moraes
Moreira. E os exemplos continuam e se condensam no tom da "esperança
morta", da "ferida aberta", do "carnaval onírico" do
Metá Metá.
Vermelho,
vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão. Se, como diz Riobaldo, "o
sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente, levo o sertão dentro
de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão", a cor vermelha [o
encarnado] tinge a escultura sonora erguida no tripé Metá Metá. E evoca os
sertões narradores, da “barra do dia foi avermelhando o céu” (O quinze, de Rachel de Queiroz), à
“catinga [que] estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas
brancas que eram ossadas” (Vidas secas,
de Graciliano Ramos).
"(Quem
dera) respirar / no peito um novo ar / me perder por um caminho enfim",
canta o sujeito de "Angolana". Localizamo-nos na platibanda de onde o
sentinela Mano Légua mira e nos ensina a caminhar na trinca e pede: vamos lá,
meu bem, experimente a terceira margem. Desse modo, os versos "a imagem do
amor / não é pra qualquer / fere os olhos desleais / impele os imortais"
são a síntese dos tempos de hoje, quando experimentar ainda é a única
trans-perspectiva possível para quem deseja o axé das folhas ("l'ase ewe
o"). E "se embrenhar no oco do vulcão / e acender o fogo do estopim:
explodir, cantarolar".
***
(Thiago
França, Kiko Dinucci, Juçara Marçal)
Me
diz de onde é que vem a gana de voar
A
fome de mirar o horizonte, o fim
Me
diz de onde é que vem
A
sina de correr
Pra
o onde quer que eu vá
Vou
ao redor de mim
(Quem
dera) respirar
No
peito um novo ar
Me
perder por um caminho enfim
Me
diz de onde é que vem
A
sede de cantar
A
seiva da canção
No
sangue tom carmim
Se
embrenhar no oco do vulcão
E
acender o fogo do estopim
Explodir,
cantarolar
Malabares,
bicho, cão
No
vermelho do vinho
Na
flecha partida
No
chão
Querubim
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