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02 julho 2015

O mergulho



No texto “Experiência e pobreza” (1933), Walter Benjamin questiona “qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural (e da riqueza sufocante de ideias) quando a experiência já não o vincula a nós?”. É do lugar dessa barbárie que surge a voz de Lira. Sem crença em redenção messiânica, essa voz interrompe o curso do mundo mercantil individualista, solitário e mimado pelo fetiche de inovação.
Desde sempre, essa voz assumiu o papel de mediador entre a lama e o beat (bit), entre o cantador (rural) e o cantor (urbano), entre o passado (tradição) e o contemporâneo (tradução). Lira enfrenta com coragem de verdade o processo de depauperação (empobrecimento) da experiência, ao fazer emergir de dentro da produção industrial de música, ecos de sonoridades que resistem ao tempo. Nega-se a pobreza, afirmando a experiência dessa existência sequestrada da cultura.
A palavra cantada em Lira sempre roçou a entonação da voz dos cantadores de feiras livres, repentistas, cordelistas. A palavra cantada em Lira é palavra forjada numa cena que (re)vitalizou uma cultura, apresentando essa cultura essencialmente oral a uma geração que, essencialmente video-cêntrica, na certa não atentaria para essa beleza. Mas aqui não há uma “sobrevalorização do arcaico”, como denunciou Adorno leitor de Benjamin a respeito das rememorizações na Modernidade. Há, sim, uma devoração do arcaico, em Lira.
A voz de Lira – palavra falada em ritmo de canto-declamação, nunca um canto educado no gosto do mercado – avança contra o movimento domesticador dos corpos. A voz de Lira não se adaptou aos procedimentos autômatos da indústria, apontando para uns brasis que existem e merecem escuta, com seus sotaques distintivos, seus jeitos de corpos agregadores. E, o mais importante, o olhar lançado por Lira para esse interior não é de piedade (pelas perdas), e sim de devoração, de incorporação dessas experiências em processo de perdas. Vem daí o vigor de suas apresentações ao vivo: da coragem de enfrentar esse patrimônio silenciado pela cultura escrita, ora estigmatizadas como inferiores, ora folclorizadas como objeto exótico de antigo museu. “Nós vamos pela margem da cidade / A linha de montagem desligada / Silêncio”, canta.
A carnavalização bakhtiniana que Lira promove nos extratos sonoros que ele manipula revela sua intenção de apropriação da experiência como integração do “novo” com a “tradição”: tudo fica suspenso. Isso está sugerido na letra de “O Mergulho” (Lira): “Andar nos fios que ligam as estrelas / Capacidade de mudar as coisas / Ouvir do velho como faz o novo / e cantar”. Eis a síntese do trabalho que Lira vem desempenhando na canção brasileira.
Nesse sentido, o disco O labirinto e o desmantelo (2015) surge como ápice de um projeto estético gestado e desenvolvido desde sempre. Equilibrando a potência da poesia falada com as experimentações melódicas dos instrumentos, Lira reforça sua verve de declamador vigoroso de paixões. A maioria das letras canta um querer urgente baseado em memórias coletivas (“Afinal chega o tempo de atacar a paz”) e privadas (“Agora o plano é te fazer feliz / Correr nos tubos do teu coração”). Em Lira, a primeira pessoa do singular é, na maioria das vezes, primeira pessoa do plural. O eu é nós. A lírica de Lira evoca sentimentos comuns, gera comunidade: “a forma secreta vibra como o mar / em ondas caladas”.
Lira é um ouvidor dessas ondas. E um leitor de poesia: os versos “Eu moro dentro de um relógio / Na torre no alto / Movendo o ponteiro das horas” estabelecem diálogo com “Sem ti é como olhar para um relógio / Só com o ponteiro dos minutos”, do “Monólogo de Orfeu”, de Vinicius de Moraes. Orfeu e Lira. Lira de Orfeu. Lira como um Orfeu que encanta as montanhas do Jabitacá.
O artista avança, pesquisa. A contenção no uso do verbo, o lapidar das palavras é característica que diferencia o Lira de O labirinto e o desmantelo do Lirinha que pinçou da poesia cerebral de João Cabral de Melo Neto a profusão verbal de “Os três mal-amados”: “(...) O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato (...)”.
Por outro lado, é esse amor à palavra que faz Lira declamar “A fábrica do poema” (outrora musicado por Adriana Calcanhotto), de Waly Salomão, nos espetáculos da turnê do disco: “Sonho o poema de arquitetura ideal / Cuja própria nata de cimento / Encaixa palavra por palavra (...) Acordo / E o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo”. Em harmonia com essa imagem, Lira cantará: “Eu sou o homem que te conheceu / e nesse dia mergulhou num sonho (...) verdade, eu nunca acordei”.
“Eu voltei pra replantar a tua memória”, Lira já cantou. Tenho cá pra mim a impressão de que Benjamin aqueceria as ideias ouvindo Lira cantar esses sujeitos líricos repletos de “lembranças desiguais”, vindas de um recanto íntimo e público: “Faço uma nova lembrança no mesmo lugar”.
As memórias que a voz de Lira carrega filtram saberes. E “todo filtro é santo”, assim como o canto de Lira é ritual de imersão num tempo preservado na memória (“cercada de poeira”) do canto do povo de um lugar: mesmo retirante – transplantado do rural para o urbano. “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”, anotou Benjamin (“O narrador”, 1936). Creio que é isso que Lira reafirma ao cantar que “quem sabe é pra sempre”.

***

O Mergulho
(Lira)

Eu quero
Eu quero você

Eu sou o homem que te conheceu
e nesse dia mergulhou num sonho
Nadava, passava em você
Paisagem clara que se desmontava
Passagem rara por canais brilhantes
Verdade, eu nunca acordei

Quero soprar teu calor

Agora o plano é te fazer feliz
Correr os tubos do teu coração
Tocar além, cicatrizar o chão
e sonhar

Andar nos fios que ligam as estrelas
Capacidade de mudar as coisas
Ouvir do velho como faz o novo
e cantar

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