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02 outubro 2014

Mil amigos



Saber é lembrar. Quando Caetano Veloso canta "Eu, você, nós dois / Já temos um passado, meu amor / Um violão guardado / Aquela flor / E outras mumunhas mais" está afirmando e elogiando a nossa genealogia cancional. Observo o mesmo gesto crítico no modo geográfico com o qual a Filarmônica de Pasárgada organiza suas letras, melodias e vocalizações.
Antes de entrar nessa questão, importa lembrar que, se por um lado, a escrita simula fazer lembrar, posto que eterniza o passado ao escrevê-lo, afinal, de acordo com Platão, conhecer é ver, por outro lado, a escrita obriga o esquecimento, já que nos conformamos com o fato registrado. Confortar-se é esquecer. Para lembrar é preciso o atrito entre o sujeito e a "coisa" a ser lembrada.
A palavra vocalizada, ao contrário, mostra um ser a priori existindo e morrendo em cada ato de fala/canto. No entanto, sendo a palavra também registrável (como sugere Walter Benjamin), não estaria ela repetindo o gesto da escrita? A profusão de registros sonoros – da mensagem de celular às canções feitas em casa – força o esquecimento do registrado? Lembrar é saber. Ou seja, só lembramos daquilo que não foi codificado, assentado, mas, sim, que permanece na memória, dando nós na orelha.
O labirinto de versos, citações e referências utilizado pela Filarmônica de Pasárgada é esse nó, essa exigência de conhecimento do passado cancional. Labirinto auditivo, do ouvido: órgão da audição e gesto de ouvir. Esse gesto artístico é político na medida em que trabalha com fragmentos de uma cultura taxada de "sem memória". A seleção feita nos ajuda a entender o ser canção no Brasil. A aprender consigo mesmo. "Já temos um passado".
Na vitrola da Filarmônica de Pasárgada (Rádio lixão, 2014) giram João, Noel, Tom, Caetano, Djavan, Chico, Tatit. Tudo a fim de inventar um mundo. "Nós dois" da canção de Caetano Veloso citada aqui são: eu-cancionista e você-canção. A organização interna das canções e a relação entre elas, derrubando a tradição para se colocar de pé (Platão fez isso com Homero, por exemplo), criam um campo de escuta para aquilo que se acredita ser o justo, o bem com o passado: arrumar, harmonizar (logro apaziguador da indiferença orgânica), tornar próprio aquilo que é coletivo, ou melhor, do universo compartilhado, passando do individualismo (da massa) para o indivíduo (singular).
"Você / Eu sei / Precisa se lembrar / Precisa saber", canta o sujeito de "Mil amigos", de Paula Mirhan e Marcelo Segreto. Canção, aliás, dedicada a Caetano Veloso e Gal Costa. A canção "Baby" se presentifica. Mais adiante o sujeito diz que "Você / Eu sei / Precisa respirar / Precisa esquecer". Ora, ele sabe porque é cantor e é sujeito cancional e, desse modo, é também o "lembrar" e o "esquecer", além de ser o "respirar" do ouvinte. Ele dura enquanto dura a canção. Ele é uma lembrança ativada pelo gesto de cantar e um esquecimento a priori. Expiração.
Ao mesmo tempo, diz: "Não sei / Não sei / Cidade medo mais de mil amigos / E um refrão a palpitar". Em tempos cíbridos, ouvir canção é ouvi-la aos pedaços e atravessada por interferências. Mas fica um refrão "Na minha camisa / No vento, no anular / No fone de ouvido / Na foto, no toque do seu celular". E é no procedimento de condensar horizontalmente refrões que reside a potência do trabalho da Filarmônica de Pasárgada.
O procedimento da banda nos cura da amnésia crônica, saneia nossa memória cancional e, quiçá, para quem tiver ouvidos de ouvir, cultural. E se qualquer ato de arte é um ato valorativo, a banda imprime valor à tradição no gesto poético de montar, colar, colecionar versos e temas. A pergunta que a banda nos faz é: reconhecemos os signos da malfadada brasilidade nas canções que ouvimos? Sendo a canção popular talvez a nossa linguagem artística mais difundida, mesmo colada ao entretenimento, quando ouvimos canção desvelamos o Brasil? Há uma clara intenção de arrumar os ouvidos dos ouvintes. Isso fica evidente quando a derradeira canção "recolhe", condensa versos das canções anteriormente apresentadas.
Como sabemos, no Livro III de sua República, Platão cria o limite do audível. Ele atesta que o audível deve ser submetido ao visível (ao teórico) e que o artista é mau artesão porque pode simular ser tudo sendo nada, não tendo aptidão para nenhuma arte, tais como a medicina, a carpintaria. A Filarmônica de Pasárgada, ao simular ser João, Noel, Carmen, Djavan, nos sugere: a) que há extraordinariedade no chamado lixo cultural; b) que a relação do presente com o passado não deve ser de submissão, mas de dessacralização, valoração, deslocamento e apropriação. Afinal, a canção "Que ninguém memoriza / Que você não precisa / [] não pode parar".

***

Mil amigos
(Paula Mirhan / Marcelo Segreto)

Você
Eu sei
Precisa se lembrar
Precisa saber

De quem?
O que?
Que vai avante ante anteontem
Pelé guerrilha iê iê iê

Você
Eu sei
Precisa respirar
Precisa esquecer

Não sei
Não sei
Cidade medo mais de mil amigos
E um refrão a palpitar

Na minha camisa
No vento, no anular
No fone de ouvido
Na foto, no toque do seu celular
Que ninguém memoriza
Que você não precisa
Mas não pode parar
 

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