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20 fevereiro 2014

Ciranda do aborto

O horror fisiológico de um filho abortado tem muito em comum com o risco de viver, de "experimentar o experimental" (Oiticica), a vida. Seja a vida urbana, ou a do interior de nossa sociedade feia e desencantada. Parto dessa afirmação radical para pensar o plano interditado, a esperança morta, a violência de estar vivo e ser obrigado a se defender sorrindo de nossas frustradas revoluções individuais e coletivas presentes em imanência no disco Encarnado (2014), de Juçara Marçal. 
Encarnar é tirar sarro, é avermelhar (sangrar - vermelho de Matisse), é ter um corpo, é ser no mundo. Dos primeiros versos - "Não diga que estamos morrendo / Hoje não / Pois tenho essa chaga comendo a razão" - até os derradeiros - "E o que era belo / Agora espanta / E nome dele hoje é João Carranca", a performance vocal de Juçara Marçal me confirma que Encarnado é um disco fundador, que rompe com o conforto dominical, que diz ao ouvinte que este não tem mais o direito de ser ingênuo num mundo violado e violento.
A tudo isso, uma cama sonora composta de rock sujo, ruídos, zumbidos de um mundo interno dilacerado conjuga conteúdo de verdade. Não é à toa que "Ciranda do aborto" (Kiko Dinucci) aparece plugada sonoramente à anterior "Odoya" (Juçara Marçal). A tópica do materno conecta as duas canções. Se nesta o sujeito da canção pede a bença à "mãe cujos filhos são peixes", naquela temos a mãe cobrindo o amor na mortalha. O sujeito cancional passa de filho à mãe. "A ferida se abriu / Nunca mais estancou / Pra vc se espalhar / Laceado", canta ninando o agouro da morte.
Após "Ciranda do aborto" temos "Canção pra ninar Oxum" (Douglas Germano), afinal, depois da tragédia narrada, só resta ao sujeito cancional criado por Juçara cantar: "Chora não, Oxum / De que chorar? / Sonha viu, Oxum / Sem lágrima". Este percurso - de filha à mãe, de mãe à cantora da mãe - é singularmente percebido nas gestualidades vocais - sangue, água e sal - encarnadas e deslocadas por Juçara. Ou seja, cada sujeito-personagem tem alma própria, almas vindas de uma mesma voz urdida na experiência de quem tem uma carreira de mais de vinte anos, desde o grupo Vésper até o Metá Metá, passando pelo grupo A BARCA. Em todos, desenvolvendo trabalhos de pesquisa e experimentação no campo vocal, investigando formas de interditar a violência via arte.
A performance vocal de Juçara restitui certa fealdade arcaica. Recriam-se as máscaras mítico-canibalísticas que foram despotencializadas no despertar do sujeito romântico. O sujeito cancional em Juçara canta aquilo que Adorno chamou de "excedente grosseiro da materialidade", ao defender que o belo vem do feio. No feio encarnado no belo, Juçara denuncia o mundo. É também Adorno que escreve que "a dialética do feio absorve também a categoria do belo em si". Essa contradição é posta sem filtros na canção "Ciranda do aborto". O belo guarda e expõe o feio. Cabe ao ouvinte desembaraçar a memória historiográfica individual e coletiva para fruir e entender a cantada, girar na ciranda.
Poderíamos ouvir "Ciranda do aborto" como uma "Canção desnaturada n.º 2". Aquilo que na canção de Chico Buarque aparece como recusa - "Tornar azeite o leite do peito que mirraste / No chão que engatinhaste, salpicar mil cacos de vidro" -, na canção de Dinucci cantada por Juçara aparece como afirmação: "Vem despedaçado / Vem, meu bem querer / Vem aqui pra fora / Vem me conhecer". Nas duas canções identificamos a renuncia ao conhecimento racional e um elogio ao canto da dor. E a ênfase na objetividade das emoções psicológicas do instante abortivo confere a "Ciranda do aborto" uma outra zona sociologicamente crítica: o compadecimento do ouvinte. Não mais a mãe tirana, e sim a mãe saudosa daquilo que ainda não veio.
"Ciranda do aborto" gera um sentimento não excitado. Pelo contrário. E vem daí a sua beleza: espantamo-nos diante daquilo que até então intuíamos como sendo belo. A aparição plasmada do abortado que conhece a não-mãe promove uma ciranda de sensações (todas) torturantes. "Assim / saudades sim / simples / como um brinco tupiniquim / um coco de roda / cirandas voltas de tu em mim", como aparece no poema "Saudades", de Amador Ribeiro Neto. No caso do sujeito cancional criado por Juçara, saudades de um não-filho: "O agouro da morte / A se revelar / A vida sem endereço / E sem lugar pra ficar".

***

Ciranda do aborto
(Kiko Dinucci)

Passa na carne a navalha
Se banha de sangue
Sorri ao chorar
Cobre o amor na mortalha
Pra ele não acordar
Sente no fel deste beijo
O agouro da morte
A se revelar
A vida sem endereço
E sem lugar pra ficar

Vem despedaçado
Vem, meu bem querer
Vem aqui pra fora
Vem me conhecer

A ferida se abriu
Nunca mais estancou
Pra vc se espalhar
Laceado
Mas o chão te engoliu
Toda a lida findou
Pra vc descansar no meu braço
No meu braço
Aos pedaços

Um comentário:

yasmin disse...

leonardo, acompanhava - no horizonte do meu possível - o 365 canções, e agora, este aqui: tão perseverante e maravilhoso quanto. encomendei seu livro pela travessa, aguardo ansiosa por ele. tb comprei o "caetano e a filosofia". e gostaria de completar a tríade, promovida por vc aqui no blog, com o "muitos...". contatei a editora (única opção p/ compra) mas não obtive resposta. vc sugere alguma solução? (invadi este espaço, neh, com licença)