Entre outros objetivos, o que mais me interessa aqui é
(re)conhecer os "modos de pensar" (voz e escuta) embutidos na canção
brasileira. E iluminar o instante em que o cancionista se torna neo-sereia por
apontar/cantar a "gaia ciência", como José Miguel Wisnik intuiu e
chamou atenção no texto seminal "A gaia ciência: literatura e música
popular no Brasil" (2001).
A eficácia do cancionista brasileiro se verifica na
competência demonstrada no amalgamar "alta cultura",
"folclore" e informação massificada e no disseminar do resultado
através dos meios de mediação. Mas sempre volta a pergunta: como diferenciar
canção "popular" e canção "folclórica" para além da relação
preconceituosa e reducionista que as distingue ao defender que esta é "pura"
(do interior) e aquela é menor porque industrial (urbana)?
Recordo aqui as palavras de Antonio Cícero e Marina Lima
para o texto de apresentação do disco Fullgas
(1984): "Somos brasileiros e estrangeiros. Somos estrangeiros porque a
nossa verdadeira casa e a casa da nossa música não têm paredes, nem teto, nem
cerca, nem fronteiras. Não vegetamos nem precisamos de raízes. / Mas nascemos
aqui, aqui trabalhamos e escolhemos ser brasileiros. Por quê? Porque este país
é a nossa casa. A força dele, como a nossa, não pode vir de nenhuma fonte pura.
Fontes puras não existem. O Brasil vem da fusão de todas as águas, de todas as
correntes culturais, da miscigenação. Por isso ele realmente mete medo em todos
que sofrem de agorafobia. (...) Melhor para nós são a descoberta e a liberação
dos desejos e gostos autênticos de cada um. / Nossa música é simples,
deliberadamente simples e direta. Por isso mesmo ela é mais difícil para aqueles
que se viciaram às velhas fórmulas. Sabemos que somos profundos demais e
superficiais demais para essa gente. / Não há CAMINHO REAL para fazer algo que
enriqueça o mundo. Por mais que certos setores da “vanguarda” sugiram uma
evolução linear da Música, a verdade é que às vezes é do mais “vulgar” que vem
o toque mais sutil."
Entende-se, embora não se justifique, haja vista o engenho
transcriativo de Macunaíma, de Mário
de Andrade, de Grande sertão: veredas,
de Guimarães Rosa, e de Galáxias, de
Haroldo de Campos, por exemplos, que, diante da supremacia da escrita, o
argumento de que o registro escritural daquilo que é (em origem) oral promove
inúmeras perdas para este. Mas e o registro sonoro-visual?
O fato de os cantos sagrados do ritual feminino do
Jamurikumalu (Alto Xingu, MT) serem registrados por Carlos Fausto, Leonardo
Sette e Takumã Kuikuro para o filme As
hiper mulheres (2013) tornam os cantos das índias menos "puros" e
desprovidos de força ilocucionária sui
generis? Ou esta "traição" à tradição oral torna esta mais
sacralizada pela expansão de acesso ao conhecimento de sua existência?
"Conhecemos o longo e continuado esforço dos
folcloristas (no Brasil como na Europa) de demarcação da fronteira entra música
'folclórica' e 'popular'. O campo do folclore musical instituiu um objeto em
risco permanente de desaparecimento: 'poesia popular' e 'canção popular'
definiram-se por uma dupla oposição às congêneres eruditas e aos produtos da
nascente indústria cultural. A música popular nasce como objeto de estudo
dentro do arco da pesquisa folclórica e foi o vínculo com os campos
inter-relacionados dos estudos de folclore e da música erudita nacionalista que
a tornou digna de atenção. Portanto, é impossível sondar os discursos sobre a
música popular no Brasil sem recuar ao campo dos estudos de folclore",
anota com precisão a professora Elizabeth Travassos, em "Pontos de escuta
da música popular no Brasil" (in: ULHÔA, Martha. Música popular na América Latina. 2005, p. 96-97).
Se a partitura fortaleceu a ideia de autoria e revolucionou
a fixação do fato musical, não resolveu a questão que sugere ser a voz de
alguém cantando o signo da unicidade e da autenticação da existência deste
alguém. Ou seja, mediatização e mercado, borrando os limites entre folclórico e
massivo, também contribuem para o pensamento do tema.
Neste ponto, como não se lembrar do conto "Um Homem
Célebre", de Machado de Assis, tão bem comentado por José Miguel Wisnik em
Machado maxixe: o caso Pestana
(2008)? "À primeira leitura, "Um Homem Célebre" expõe o suplício
do músico popular que busca atingir a sublimidade da obra-prima clássica, e com
ela a galeria dos imortais, mas que é traído por uma disposição interior
incontrolável que o empurra implacavelmente na direção oposta" (p. 7).
A crise de ser/estar no cruzamento entre a polca (folclórico
e popular) e "a grande música europeia" parece estar no cerne da
formação da cultura nacional brasileira. O "complexo de Pestana" nos
constitui, embora não queiramos admitir. "Como sabemos, o maxixe recalcado,
virado samba, torna-se o paradigma musical de um Brasil mulato, nas primeiras
décadas do século 20, num vasto processo de desrecalque, agora apologético, que
constitui a imagem do país moderno sobre os escombros da escravidão, e que tem
em Casa-Grande & Senzala um
marco" (idem, p.92). Caetano Veloso joga com a questão ao encartar na
contracapa do disco Circuladô (1991)
a frase nuclear do conto de Machado: "Mas as polcas não quiseram ir tão
longe".
"Vamos acabar com o samba / Madame não gosta que ninguém
sambe / Vive dizendo que samba é vexame", canta João Gilberto. "E
quem se julga a nata cuidado pra não quaiar (...) Pois o mundo real não é o
Rancho da Pamonha", canta Criolo. "Eu bem sei que tu condenas / O
estilo popular / Sendo as notas sete apenas / Mais eu não posso inventar // Por
motivos bem diversos / Escrevi meu samba assim / Fiz o coro após os versos / E
a introdução eu fiz no fim", cantou Noel Rosa no Coliseu dos Recreios
(Lisboa).
Tendo sido cantado também por ninguém menos que Grande Otelo,
o samba "Mais um samba popular" (1934), de Noel Rosa e Vadico,
registrado por Ivan Lins no CD 3 do Tributo
a Noel Rosa (1997), Ana de Hollanda, em Um filme (2001) e Arto Lindsay, em Noel Poeta da Vila (2009), entre outros, com suas torções temporais
- "Fiz o coro após os versos / E a introdução eu fiz no fim" -,
guarda também os gestos significantes da montagem da triangulação
"amorosa, política e musical" (WISNIK, idem, p. 74) que ronda o
Brasil.
A sala de cinema não é o contato com os índios Kuikuro,
embora, sendo arte, queira mimetizar a experiência. Nem o registro sonoro da
performance de um grupo folclórico, nem o CD, essa superpartitura, da
performance vocal de um cantor em estúdio, ou "ao vivo", são o
"momento sagrado" da emissão vocal. Mas, sim, signos da existência de
seres viventes/presentes emissores/destinadores daquelas vozes. "A voz
amada vem de trás do monte / Etérea ponte, cruza o oceano e o mar // Estrela
Dalva surge no horizonte / tão perto e longe em mim o seu cantar", canta
Caetano Veloso em "A voz amada".
Deste modo, "cantométrica, fonética, fisiologia e
acústica musical, etnografias da fala e da música estão entre os passos na
direção de uma abordagem que tome a voz como fenômeno biopsicossocial e integre
som e sentido, interno e externo, nature
e nurture", como também anota
Elizabeth Travassos agora em "Um objeto fugidio: voz e
'musicologias'" (2008).
***
(Noel Rosa / Vadico)
Fiz um poema pra te dar
Cheio de rimas que acabei de musicar
Se por capricho
Não quiseres aceitar
Tenho que jogar no lixo
Mais um samba popular
Eu bem sei que tu condenas
O estilo popular
Sendo as notas sete apenas
Mais eu não posso inventar
Se acaso não gostares
Eu me mato de paixão
Apesar de teus pesares
Meu samba merece aprovação
Por motivos bem diversos
Escrevi meu samba assim
Fiz o coro após os versos
E a introdução eu fiz no fim
Fiz um poema pra te dar
Cheio de rimas que acabei de musicar
Se por capricho
Não quiseres aceitar
Tenho que jogar no lixo
Mais um samba popular
Eu bem sei que tu condenas
O estilo popular
Sendo as notas sete apenas
Mais eu não posso inventar
Se acaso não gostares
Eu me mato de paixão
Apesar de teus pesares
Meu samba merece aprovação
Por motivos bem diversos
Escrevi meu samba assim
Fiz o coro após os versos
E a introdução eu fiz no fim
Um comentário:
Léo, seu texto me fez lembrar do pobre Major Quaresma metido na "malandragem" de aprender violão, um "escândalo". O que não faltava era censura, como a gente vê logo no primeiro capítulo do livro do Lima: "Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro, um quase capadócio, não é bonito!" O violão, protagonista da cultura popular brasileira foi levado 'na marra' pelo Villa para os salões de música erudita e as reações não foram brandas. O negócio é que os brasileiros se apropriaram das tradições europeias e fizeram a mistura que deu nessa nossa grande música. E o mais interessante é que essa música popular, apreciada pela sua sofisticação e originalidade, traz cada vez mais ao país gente dos quatro cantos do mundo interessadas em aprender os seus 'segredos'. E por falar em Noel Rosa, convém não esquecer de "Filosofia", sempre emblemática e representativa. Abraços. Carlos (Uerj).
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