Diante da falta do pré conhecimento do ouvinte, o rádio age com a imprevisibilidade. Em geral, salvo quando o apresentador adianta, não sabemos qual canção será executada no momento seguinte. Outras técnicas de reprodução tentam repetir isso. Mas, por exemplo, o modo aleatório de nossos equipamentos trabalha com canções previamente escolhidas por nós, faz a procura "aleatória" em arquivos pré montados. Tudo está previsto, tudo é des-surpresa. Ou seja, tais recursos inibem o risco e a graça que o rádio nos proporciona.
E é uma destas armadilhas do imprevisível radiofônico que captura o sujeito de "Maldito rádio", de Adriana Calcanhotto (Micróbio vivo 2012). Sem esperar, já em pretensa profícua recuperação das dores do termino do amor, o rádio toca a canção que detona memórias e esquecimentos. "Maldito rádio / Agora que parecia que eu ia / Deixar o falso amor lá na memória / Agora que parecia que eu ia ser agora", canta praguejando: "Volte pros anúncios / Para para o hit da nova novela".
Amamos a vida pela sua imprevisibilidade. É a vontade livre das coisas o que nos oferece a sensação de liberdade, mesmo quando elas nos parecem fazer mal, como no caso do sujeito da canção. Ferido, ele não percebe isso: quer esquecer aquilo que o rádio teimou em lembrar. O excesso de segurança, vigília e (falso) bem-estar parecem caracterizar a contemporaneidade.
Uso o termo vontade tal e qual Nietzsche definia. Ou seja, como a unificação de toda a multiplicidade dos nossos afetos. Como o querer só se constitui como palavra, é o reconhecimento do domínio que dá a sensação de liberdade. Mas este domínio não pode ser confundido com comodismo, máscara, aparência, ilusão.
Na verdade, é neste imbróglio que o sujeito da canção está enredado. Ele acha que tem o domínio, mas a canção tocada naquele momento pelo rádio vem e desvela tudo. O sujeito pensa comandar os afetos, mas reconhece que não os obedece e culpa - porque ainda carregamos a necessidade de apontar culpados - o rádio por isso.
É a negação da vontade o que move o sujeito da canção "Maldito rádio". Iludido na crença de que teria o domínio-de-si - Agora que parecia que eu ia / Mudar de vez o curso dessa história (...) Não é momento / De revisar emoções que são só minhas" -, ele se defronta consigo mesmo, com situações que não se resolvem no nada, mas, ao contrário, na afirmação dos afetos que ele tenta negar.
De viés, ele descobre que não é independente de outros sujeitos, de outros corpos, muito menos do "falso amor" (ela), nem da história pulsional e cultural que lhe constitui hoje. A canção que lhe rouba a pseuda harmonia, convida o sujeito à vida, ao enfrentamento, ao risco. Ela Indica que ele não está apartado do todo.
Em sua valorização do esquecimento e de sua consequente força plástica fundamental à felicidade, o sujeito esqueceu que a vida é um lance de olhos, um relance, um instante. E é isso que a canção - com melodias que machucam o coração - quer apontar, surgida assim, do inesperado. Não à toa, "Maldito rádio" é dedicada a Ângela Maria, "como representante dessas vozes que amamos escutar no rádio, mas que às vezes podem machucar", como escreve Calcanhotto no encarte.
Podemos entrar ainda em uma rápida, mas pertinente, reflexão sobre o tempo. Como diz outra canção, "o tempo voa mais do que a canção". "Maldito rádio" confirma que o tempo da canção não é o tempo do sujeito. Com sua capacidade de cristalizar momentos, a canção parece estar no eterno presente. "Ficaram as canções e você não ficou", dirá outro sujeito cancional. Enquanto isso o sujeito não está apartado do todo temporal.
O tempo não é espacializável. E é do centro desta constatação dolorosa que surge o canto do sujeito de "Maldito rádio". Adultos, não somos como a criança que esquece no instante imediato a briga com o coleguinha e caímos na interpretação rancorosa do passar do tempo. É nisso que o sujeito se debate. Tudo motivado pela canção que desperta memórias não agradáveis, histórias "mal acabadas".
Voltando a Nietzsche, podemos dizer que o sujeito de "Maldito rádio" está na afirmação do "foi assim", ao invés do "assim eu quis", "assim eu vou querer". Esta mudança na mirada das coisas que somos ainda não atingiu o sujeito e ele sofre. É este "querer para trás" a cura do ressentimento proposta por Zaratustra.
Ou seja, esquecimento não é inércia, acomodação, resignação. É trabalho contínuo, é uma benção laica daquilo que somos e continuamos a experimentar ser. Esquecer é lembrar que somos um todo de afetos em que não há distinção entre corpo e alma, mas um continuar querendo o que foi/é querido, e não maldito.
"O esquecimento, em Nietzsche, remetido à digestão, sugere uma visão do corpo e da relação com a vida radicalmente distintas daquela estabelecida pela lógica da descartabilidade e da obsolescência imediata de tudo (tanto de produtos quanto de relações interpessoais), cara aos modos de vida atualmente valorizados, atrelados à lógica empresarial", destaca a doutora Maria Cristina Franco Ferraz, em palestra intitulada "Atualidade do pensamento de Nietzsche".
Obviamente, é preciso haver uma "paciência do tempo", um dobrar-se ao tempo do luto, da doença, do fim de uma relação amorosa, por exemplos. Mas é do horror contemporâneo ao risco que trato aqui. O sujeito de "Maldito rádio" mostra que a prevenção e a adaptação não deram conta daquilo que ele suponha ter "superado". Esquecer não é negar, isso ele descobre com o retorno da dor, ao ouvir aquela canção inesperada que, entre um hit da novela e um anúncio, lhe arrebata e arrebenta.
E é uma destas armadilhas do imprevisível radiofônico que captura o sujeito de "Maldito rádio", de Adriana Calcanhotto (Micróbio vivo 2012). Sem esperar, já em pretensa profícua recuperação das dores do termino do amor, o rádio toca a canção que detona memórias e esquecimentos. "Maldito rádio / Agora que parecia que eu ia / Deixar o falso amor lá na memória / Agora que parecia que eu ia ser agora", canta praguejando: "Volte pros anúncios / Para para o hit da nova novela".
Amamos a vida pela sua imprevisibilidade. É a vontade livre das coisas o que nos oferece a sensação de liberdade, mesmo quando elas nos parecem fazer mal, como no caso do sujeito da canção. Ferido, ele não percebe isso: quer esquecer aquilo que o rádio teimou em lembrar. O excesso de segurança, vigília e (falso) bem-estar parecem caracterizar a contemporaneidade.
Uso o termo vontade tal e qual Nietzsche definia. Ou seja, como a unificação de toda a multiplicidade dos nossos afetos. Como o querer só se constitui como palavra, é o reconhecimento do domínio que dá a sensação de liberdade. Mas este domínio não pode ser confundido com comodismo, máscara, aparência, ilusão.
Na verdade, é neste imbróglio que o sujeito da canção está enredado. Ele acha que tem o domínio, mas a canção tocada naquele momento pelo rádio vem e desvela tudo. O sujeito pensa comandar os afetos, mas reconhece que não os obedece e culpa - porque ainda carregamos a necessidade de apontar culpados - o rádio por isso.
É a negação da vontade o que move o sujeito da canção "Maldito rádio". Iludido na crença de que teria o domínio-de-si - Agora que parecia que eu ia / Mudar de vez o curso dessa história (...) Não é momento / De revisar emoções que são só minhas" -, ele se defronta consigo mesmo, com situações que não se resolvem no nada, mas, ao contrário, na afirmação dos afetos que ele tenta negar.
De viés, ele descobre que não é independente de outros sujeitos, de outros corpos, muito menos do "falso amor" (ela), nem da história pulsional e cultural que lhe constitui hoje. A canção que lhe rouba a pseuda harmonia, convida o sujeito à vida, ao enfrentamento, ao risco. Ela Indica que ele não está apartado do todo.
Em sua valorização do esquecimento e de sua consequente força plástica fundamental à felicidade, o sujeito esqueceu que a vida é um lance de olhos, um relance, um instante. E é isso que a canção - com melodias que machucam o coração - quer apontar, surgida assim, do inesperado. Não à toa, "Maldito rádio" é dedicada a Ângela Maria, "como representante dessas vozes que amamos escutar no rádio, mas que às vezes podem machucar", como escreve Calcanhotto no encarte.
Podemos entrar ainda em uma rápida, mas pertinente, reflexão sobre o tempo. Como diz outra canção, "o tempo voa mais do que a canção". "Maldito rádio" confirma que o tempo da canção não é o tempo do sujeito. Com sua capacidade de cristalizar momentos, a canção parece estar no eterno presente. "Ficaram as canções e você não ficou", dirá outro sujeito cancional. Enquanto isso o sujeito não está apartado do todo temporal.
O tempo não é espacializável. E é do centro desta constatação dolorosa que surge o canto do sujeito de "Maldito rádio". Adultos, não somos como a criança que esquece no instante imediato a briga com o coleguinha e caímos na interpretação rancorosa do passar do tempo. É nisso que o sujeito se debate. Tudo motivado pela canção que desperta memórias não agradáveis, histórias "mal acabadas".
Voltando a Nietzsche, podemos dizer que o sujeito de "Maldito rádio" está na afirmação do "foi assim", ao invés do "assim eu quis", "assim eu vou querer". Esta mudança na mirada das coisas que somos ainda não atingiu o sujeito e ele sofre. É este "querer para trás" a cura do ressentimento proposta por Zaratustra.
Ou seja, esquecimento não é inércia, acomodação, resignação. É trabalho contínuo, é uma benção laica daquilo que somos e continuamos a experimentar ser. Esquecer é lembrar que somos um todo de afetos em que não há distinção entre corpo e alma, mas um continuar querendo o que foi/é querido, e não maldito.
"O esquecimento, em Nietzsche, remetido à digestão, sugere uma visão do corpo e da relação com a vida radicalmente distintas daquela estabelecida pela lógica da descartabilidade e da obsolescência imediata de tudo (tanto de produtos quanto de relações interpessoais), cara aos modos de vida atualmente valorizados, atrelados à lógica empresarial", destaca a doutora Maria Cristina Franco Ferraz, em palestra intitulada "Atualidade do pensamento de Nietzsche".
Obviamente, é preciso haver uma "paciência do tempo", um dobrar-se ao tempo do luto, da doença, do fim de uma relação amorosa, por exemplos. Mas é do horror contemporâneo ao risco que trato aqui. O sujeito de "Maldito rádio" mostra que a prevenção e a adaptação não deram conta daquilo que ele suponha ter "superado". Esquecer não é negar, isso ele descobre com o retorno da dor, ao ouvir aquela canção inesperada que, entre um hit da novela e um anúncio, lhe arrebata e arrebenta.
***
Maldito rádio
(Adriana Calcanhotto)
Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não
Maldito rádio
Agora que parecia que eu ia
Deixar o falso amor lá na memória
Agora que parecia que eu ia ser agora
Não é momento
De machucar meu coração com melodias
Maldito radio não me faça pensar nela
Volte pras notícias
Para o hit da nova novela
Maldito rádio
Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não
Maldito rádio
Agora que parecia que eu ia
Mudar de vez o curso dessa história
Agora que parecia que eu ia ser agora
Não é momento
De revisar emoções que são só minhas
Maldito radio não me faça pensar nela
Volte pros anúncios
Para para o hit da nova novela
Maldito rádio
Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não
(Adriana Calcanhotto)
Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não
Maldito rádio
Agora que parecia que eu ia
Deixar o falso amor lá na memória
Agora que parecia que eu ia ser agora
Não é momento
De machucar meu coração com melodias
Maldito radio não me faça pensar nela
Volte pras notícias
Para o hit da nova novela
Maldito rádio
Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não
Maldito rádio
Agora que parecia que eu ia
Mudar de vez o curso dessa história
Agora que parecia que eu ia ser agora
Não é momento
De revisar emoções que são só minhas
Maldito radio não me faça pensar nela
Volte pros anúncios
Para para o hit da nova novela
Maldito rádio
Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não
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