Manipuladoras e manipuladas pelos mecanismos midiáticos, as performances vocais de Cazuza "estão também ligadas à industria cultural, em uma proposta de trabalho que traz imperativos decorrentes de expectativas de um mercado em que a arte oferecerá, ao público, o espetáculo que ele deseja e/ou que se pretende que ele queira e, ao mesmo tempo, captará lucros", como anota Jussara Bittencourt de Sá no livro Cazuza no vídeo o tempo não pára.
É desta zona de conflito entre alma e corpo que, por exemplo, emerge a voz do sujeito de "Quando eu estiver cantando", de Cazuza e João Rebouças. Aqui, o sujeito promove a própria nudez, revela receios e dialoga com sua natureza de cantor.
O sujeito de "Quando eu estiver cantando" sabe que não há solidão mais profunda do que a ausência de si. E no canto, vestindo-se e despindo-se de identidades diversas, ele se perde e se salva: "Porque o meu canto redime o meu lado mau", diz. No canto ele trai a canção: canta, mesmo desafinado. E traído ele se (re)descobre, continua o mesmo: um cantor. Mantem-se vivo.
É no bastidor-de-si que o cantor tem o direito de sofrer de verdade. Diante do público, no palco, o sofrimento precisa ser calculado, espetacularizado, como bem canta o sujeito de "Bastidores", de Chico Buarque na voz dramática e correta de Cauby Peixoto. Mas o ritmo da vida é diferente do ritmo estético? A canção leva a concluir que não. E é também do centro desta pergunta que sai a voz do sujeito de "Quando eu estiver cantando".
Guardada no disco Burguesia, "Quando eu estiver cantando" ganha de Cazuza uma interpretação passional, doída: entre sutis alturas e sussussos, calma e exasperação vocais. Diferente dos apelos agônicos do sujeito-boca-seca, voz rasgada pela exposição à luz cênica, da interpretação de Cazuza, mas não menos passional, a versão de Fafá de Belém (Piano e voz, 2002) investe na vocalização do sujeito-cantor e suas agonias diante do gesto de cantar.
Em "Quando eu estiver cantando", por sua vez, o sujeito trabalha a indefinição de sua função no mundo: nem musa (portadora do relato absoluto audível apenas ao poeta), nem sereia (portadora do relato verídico audível a qualquer marinheiro), o sujeito se deixa ver em sua humanidade (portadora da voz desafinada). Ele é a voz da voz da musa, da sereia, de si, de algo que se revela entre o palco e o camarim, onde ele se confessa a Deus.
Num registro passional pós-bossa nova a voz de Cazuza dispara: "eu sou assim / canto pra me mostrar / de besta". Ele sabe que seu gesto de autorevelação já nasce fadado ao fracasso. Entre a "gente que recebe Deus quando canta" e a que "canta procurando Deus", o sujeito da canção canta pra se mostrar, de besta: pelo sabor e dor do gesto - para manter-se vivo.
Não se aproximar, ficar em silêncio e não cantar junto são atitudes exigidas pelo sujeito àqueles que lhe ouvem. Afinal, como diria o sujeito de "Sangrando", de Gonzaguinha: "Quando eu soltar a minha voz / Por favor entenda / Que palavra por palavra / Eis aqui uma pessoa se entregando". As interferências do outro maculariam tamanho êxtase e crescimento. Ao mesmo tempo em que ele precisa do ouvido do outro para ser e estar no mundo.
"O ouvinte 'faz parte' da performance. O papel que ele ocupa, na sua constituição, é tão importante quanto o do intérprete. (...) A componente fundamental da 'recepção' é a ação do ouvinte, recriando, de acordo com seu próprio uso e suas próprias configurações interiores, o universo significante que lhe é transmitido", anota Paul Zumthor, no livro Introdução à poesia oral.
"Porque eu só canto só", diz o sujeito cancional criado por Cazuza e João Rebouças. De fato, manter a tensão entre a necessidade de cantar (ser cantor de si) e a consciência de ter voz desafinada (traição à canção) é condição singular e intransferível. Cabe ao ouvinte cumprir sua função: ouvir o sangramento.
Citando novamente "Sangrando", podemos recuperar os versos que dizem: "Quando eu soltar a minha voz / Por favor, entenda / É apenas o meu jeito de viver / O que é amar". Completando tal pensamento, diria o sujeito de "Quando eu estiver cantando": "Porque o meu canto é o que me mantém vivo (e) o meu canto é pra quem me ama".
Ao cantar desafinada, e anotar isso no próprio canto, a voz de Cazuza - sem os alongamentos vocálicos típicos de uma canção passional - reitera a potência transgressora da alma a fim de manter-se viva. Enquanto que a voz de Fafá de Belém foca no gesto mesmo de cantar, deixando se envolver por excessos de uma extensão vocal correta e que imprimem novos contornos ao sujeito da canção.
A luta entre alma (imoral: transgressora, traidora) e corpo (moral: condicionado, tradicional) é compreendida por Fafá de Belém que, acompanhada pelo arranjo instrumental de João Rebouças ("sem os instrumentistas canário não canta", diz Fafá antes de começar a cantar), não tenta recuperar a interpretação de Cazuza.
Dito de outro modo, em Cazuza, o sujeito é amor do cóccix até o pescoço, enquanto que em Fafá de Belém (ouvinte de Cazuza) o sujeito é "amor da cabeça aos pés". E ambos se completam.
O sujeito de "Quando eu estiver cantando" sabe que não há solidão mais profunda do que a ausência de si. E no canto, vestindo-se e despindo-se de identidades diversas, ele se perde e se salva: "Porque o meu canto redime o meu lado mau", diz. No canto ele trai a canção: canta, mesmo desafinado. E traído ele se (re)descobre, continua o mesmo: um cantor. Mantem-se vivo.
É no bastidor-de-si que o cantor tem o direito de sofrer de verdade. Diante do público, no palco, o sofrimento precisa ser calculado, espetacularizado, como bem canta o sujeito de "Bastidores", de Chico Buarque na voz dramática e correta de Cauby Peixoto. Mas o ritmo da vida é diferente do ritmo estético? A canção leva a concluir que não. E é também do centro desta pergunta que sai a voz do sujeito de "Quando eu estiver cantando".
Guardada no disco Burguesia, "Quando eu estiver cantando" ganha de Cazuza uma interpretação passional, doída: entre sutis alturas e sussussos, calma e exasperação vocais. Diferente dos apelos agônicos do sujeito-boca-seca, voz rasgada pela exposição à luz cênica, da interpretação de Cazuza, mas não menos passional, a versão de Fafá de Belém (Piano e voz, 2002) investe na vocalização do sujeito-cantor e suas agonias diante do gesto de cantar.
Em "Quando eu estiver cantando", por sua vez, o sujeito trabalha a indefinição de sua função no mundo: nem musa (portadora do relato absoluto audível apenas ao poeta), nem sereia (portadora do relato verídico audível a qualquer marinheiro), o sujeito se deixa ver em sua humanidade (portadora da voz desafinada). Ele é a voz da voz da musa, da sereia, de si, de algo que se revela entre o palco e o camarim, onde ele se confessa a Deus.
Num registro passional pós-bossa nova a voz de Cazuza dispara: "eu sou assim / canto pra me mostrar / de besta". Ele sabe que seu gesto de autorevelação já nasce fadado ao fracasso. Entre a "gente que recebe Deus quando canta" e a que "canta procurando Deus", o sujeito da canção canta pra se mostrar, de besta: pelo sabor e dor do gesto - para manter-se vivo.
Não se aproximar, ficar em silêncio e não cantar junto são atitudes exigidas pelo sujeito àqueles que lhe ouvem. Afinal, como diria o sujeito de "Sangrando", de Gonzaguinha: "Quando eu soltar a minha voz / Por favor entenda / Que palavra por palavra / Eis aqui uma pessoa se entregando". As interferências do outro maculariam tamanho êxtase e crescimento. Ao mesmo tempo em que ele precisa do ouvido do outro para ser e estar no mundo.
"O ouvinte 'faz parte' da performance. O papel que ele ocupa, na sua constituição, é tão importante quanto o do intérprete. (...) A componente fundamental da 'recepção' é a ação do ouvinte, recriando, de acordo com seu próprio uso e suas próprias configurações interiores, o universo significante que lhe é transmitido", anota Paul Zumthor, no livro Introdução à poesia oral.
"Porque eu só canto só", diz o sujeito cancional criado por Cazuza e João Rebouças. De fato, manter a tensão entre a necessidade de cantar (ser cantor de si) e a consciência de ter voz desafinada (traição à canção) é condição singular e intransferível. Cabe ao ouvinte cumprir sua função: ouvir o sangramento.
Citando novamente "Sangrando", podemos recuperar os versos que dizem: "Quando eu soltar a minha voz / Por favor, entenda / É apenas o meu jeito de viver / O que é amar". Completando tal pensamento, diria o sujeito de "Quando eu estiver cantando": "Porque o meu canto é o que me mantém vivo (e) o meu canto é pra quem me ama".
Ao cantar desafinada, e anotar isso no próprio canto, a voz de Cazuza - sem os alongamentos vocálicos típicos de uma canção passional - reitera a potência transgressora da alma a fim de manter-se viva. Enquanto que a voz de Fafá de Belém foca no gesto mesmo de cantar, deixando se envolver por excessos de uma extensão vocal correta e que imprimem novos contornos ao sujeito da canção.
A luta entre alma (imoral: transgressora, traidora) e corpo (moral: condicionado, tradicional) é compreendida por Fafá de Belém que, acompanhada pelo arranjo instrumental de João Rebouças ("sem os instrumentistas canário não canta", diz Fafá antes de começar a cantar), não tenta recuperar a interpretação de Cazuza.
Dito de outro modo, em Cazuza, o sujeito é amor do cóccix até o pescoço, enquanto que em Fafá de Belém (ouvinte de Cazuza) o sujeito é "amor da cabeça aos pés". E ambos se completam.
***
Quando eu estiver cantando
(Cazuza / João Rebouças)
(Cazuza / João Rebouças)
Tem gente que recebe Deus quando canta
Tem gente que canta procurando Deus
Eu sou assim com a minha voz desafinada
Peço a Deus que me perdoe no camarim
Eu sou assim
Canto pra me mostrar
De besta
Ah, de besta
Quando eu estiver cantando
Não se aproxime
Quando eu estiver cantando
Fique em silêncio
Quando eu estiver cantando
Não cante comigo
Porque eu só canto só
E o meu canto é a minha solidão
É a minha salvação
Porque o meu canto redime o meu lado mau
Porque o meu canto é pra quem me ama
Me ama, me ama
Quando eu estiver cantando
Não se aproxime
Quando eu estiver cantando
Fique em silêncio
Quando eu estiver cantando
Não cante comigo
Quando eu estiver cantando
Fique em silêncio
Porque o meu canto é a minha solidão
É a minha salvação
Porque o meu canto é o que me mantém vivo
E o que me mantém vivo
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