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28 julho 2011

Nossa Canção

"Prometo rios de leite / com seus afluentes / uma foz e o mar / aceno com presentes / que só o próprio tempo / pode adivinhar", diz o sujeito de "Canção necessária", de Guinga e Zé Miguel Wisnik. Por sua vez, o sujeito de "Nossa canção" (Zé Miguel Wisnik / Mauro Aguiar) anota que: "as canções / só são canções / quando não são / promessas".
Fojo aqui este diálogo metacancional possível entre as duas canções guardadas no disco Indivisível (2011) para observar o lugar onde a canção se realiza, onde ela é no mundo. Interferindo no tempo ordinário, suspendendo as promessas e impondo-se sempre no presente, a canção é enquanto dura suas emissão (execução) e audição.
É neste instante-já, ao oferecer verbo, melodia e, principalmente, calor vocal ao ouvinte, que a canção e, consequentemente, o seu sujeito sirênico se realizam, encontram um lugar para ser. Quando em ação, quando de fato ela é ela, a canção explode as promessas cumprindo-as: dando sentido ao absurdo cotidiano do ouvinte que, por sua vez, também se sente vivo: mimado, ninado.
Mas o sujeito de "Nossa canção" quer mais. Ao dizer, logo no início, que "nossa canção / guarda canções / diversas / minha ilusão / tua emoção / mil dimensões / imersas", ele revela a realidade (ficcional) de sua condição latino-americana: ele recupera o passado - canções cantadas; coloca-se no presente - compõe a "Nossa canção"; e sugere futuros - apropriações vindouras. Tudo através do ato genuinamente seu de contar-se: cantar-se.
Dito de outro modo, para compor a "Nossa canção" o sujeito se revela como um privilegiado ouvinte: deixa-se iludir e emocionar pelas outras vozes. Cantar, aqui (nele), é engendrar um canto paralelo: arranjado, paródico, mantenedor da contradição.
"A vida é devoração pura", anotou Oswald de Andrade. Há mais vida na canção (condensação - harmônico-contraditória de canções) do que no real. Ou melhor: a canção cria a realidade - nossa (ouvinte em ação) e de quem dela (no futuro) se apropriar. Afinal, "as canções / só são canções / quando não são / mais nossas", como diz o sujeito complexificando também a noção de autoria e insinuando parcerias invisíveis, porém constituidoras.
A canção é (de todos: e só assim ela é canção) quando deixou de ser (de alguém: de um); quando imbrica-se - "de par em par / de voz em voz" - às outras diversas e espessas canções, criando o mar sonoro necessário à ancoragem (fluida e perecível) do ouvinte.
No fundo, o que a canção precisa é o regaço do ouvinte: "que num minuto sem igual / você me lesse não me esquecesse / adivinhasse enfim / não desistisse mais de mim / e ouvisse no meu canto / as tontas entrelinhas / que silenciei / por ti", como diz o sujeito de "Canção necessária". A canção é o efeito especial que promove o indivíduo à vida.
Somos alguma coisa para ser cantada. Juntando fragmentos daquilo que pode (ou não) ser esta coisa, recolhendo sons, o sujeito de "Nossa canção" quer dizer e diz, sugerindo sua leitura oswaldiana: "Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente".
Cantar isso é nunca esquecer o nosso amor, aquilo que podemos ser: o doce mistério - um som lançado ao ar e sustentado pela permanente querela erótico-afetiva entre os diversos outros sons.



***

Nossa canção
(Zé Miguel Wisnik / Mauro Aguiar)

Nossa canção
guarda canções
diversas
minha ilusão
tua emoção
mil dimensões
imersas

outras virão
buscando a luz
de cais em cais
naus sobre naus
espessas
pois as canções
só são canções
quando não são
promessas

nessa canção
cabem canções
dispersas
minha razão
teu coração
mil sensações
avessas

outras virão
de encontro a nós
de voz em voz
de par em par
esparsas
pois as canções
só são canções
quando não são
mais nossas

Um comentário:

guto disse...

Que legal. Vou publicar no meu blogue