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18 março 2011

Tá na minha hora

Ao responder a "seu" homem, a voz feminina da canção "Dom de iludir", de Caetano Veloso, decreta: "Você está / você é / você faz / você quer / você tem". A voz restitui o masculino à verdade, enquanto a ela cabe a "malícia de toda mulher".
Eis o gesto igualmente engendrado pela voz feminina da canção "Tá na minha hora", de Adriana Calcanhotto, ao dizer, na hora da despedida: "Da sua onipotência tratei com jeitinho". Aliás, os diminutivos da letra tanto apontam um dengo a mais - envolvendo o outro no dom de iludir - quanto deixa vazar certa ironia do ressentimento. Afinal, como diz o sujeito de "Mais perfumado", também de Calcanhotto: “Ele acredita que me engano / Pensa que sabe mentir o homem que eu amo”
Há em "Dom de iludir" e "Tá na minha hora" um movimento de emancipação, de inversões, de descolamentos e de deslocamentos. Há uma vontade de potência: de transvalorização os valores pré-dados. O sujeito de "Tá na minha hora" - na hora do adeus, de dar tchau - cobra os sambas da vida a dois feitos por ele.
Farta das fantasias despidas e das chegadas de madrugada, a mulher quer curtir a vida e suas não-promessas de felicidade. Ela quer sair e aproveitar aquilo que até então só o outro pode fazer: investir nas profusões de alegria.
Ela (o sujeito feminino da canção) não é mais quem o outro (o "neguinho") amou. Decotada, ela está para sair e ir a Lapa: beber todas e beijar bem. Como sugere a voz da canção "Beijo sem", também de Adriana Calcanhotto. Na sua singular valorização do dionisíaco, o sujeito quer afirmar a vida sem os compromissos afetivos que lhe faziam suportar - por amor - a onipotência do outro.
Tá na hora: é carnaval, festa da felicidade sem dia seguinte. Invertendo as instâncias, a mulher sem grilos, ao deixar a geladeira cheia - com o básico - tece seu canto de sereia: canta o que fez por si e pelo outro, rompendo a energia que mantinha o outro no ar. "Sem promessa de voltar depois do carnaval", diz, para o possível pavor de seu interlocutor, outrora senhor.
Se o disco Micróbio do samba (2011) é Adriana Calcanhotto desenvolvendo a pesquisa dos transambas que Caetano Veloso disparou em Zii e Zie, é também a mulher cantando o micróbio do samba que há nela - para além do espaço historicamente masculino. "Tá na minha hora", com sua sonoridade maracatu, é a relativização das perspectivas - sempre híbridas - de vida.
Aliás, importa apontar aqui o projeto Micróbio do frevo, de Silvério Pessoa, como possibilidade de diálogos com as sonoridades de Micróbio do samba: tudo pós, tudo trans, mas com olhos amorosos para o pré e o então.
Acompanhada por Alberto Continentino (baixo), Domenico Lancellotti (bateria e percussão) e Davi Moraes (violão), a voz da passista magueirense de "Tá na minha hora" - canção que encerra o disco de Cacanhotto - canta a canção dos afetos.
Ela recolhe em si um raio imenso do amor à canção: da voz que um dia cantou "Camisa Listada", "Abre alas", "Sonho meu"... sempre querendo botar o bloco do "amor hiperquântico" na rua. "Não chora, neguinho, não chora / Tá na minha hora, tá na minha hora", despede-se cabrocha-malandramente a estrela-mulher-cantora, enquanto deixa se perder-de-si na multidão - "uns só coração" - que enche as ruas.

***

Tá na minha hora
(Adriana Calcanhotto)

Te fiz uns sambas, neguinho, te dei carinho
Despi as suas fantasias devagarinho
Da sua onipotência tratei com jeitinho
e das chegadas de madrugada no sapatinho

Agora tá na minha hora
Eu vou passar uns tempos em Mangueira
Não chora, neguinho, não chora
O meu coração é da Estaçao primeira

Te deixo a geladeira cheia e sem promessa
que findo o carnaval eu tô de volta
Não chora, neguinho, não chora
O meu coração é verde rosa
Não chora, neguinho, não chora
Tá na minha hora, tá na minha hora

Um comentário:

Herom Vargas disse...

Leonardo,
Gostei do trabalho, do texto e das ideias!! Parabéns!
Sugiro a vc acompanhar meu blog: osomdacoisa.blogspot.com.
Faço comentários sobre música popular a cada 15 dias.

Abs
Herom