Desde o Projeto 365 Canções (2010), o desafio é ser e estar à escuta dos cancionistas do Brasil, suas vocoperformances; e mergulhar nas experiências poéticas de seus sujeitos cancionais sirênicos.
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24 agosto 2025
Canção e performance em língua inglesa
Quem estuda e pesquisa performance artística sabe da dificuldade de desenvolver interpretações críticas e teóricas a partir de uma linguagem que prima pela não apreensão. A performance existe no seu instante-já, na experiência irreproduzível. Como só podemos lidar com arquivos, seja o livro, seja o áudio, ou o vídeo, o trabalho passa por também restituir o tempo da performance. E isso requer imaginação, sensibilidade, contextualização. Em diálogo com a crítica especializada, notadamente os textos de Ruth Finnegan, os trabalhos apresentados no "Ciclo de conversas sobre performance e canção em língua inglesa" e agora reunidos em textos no livro CANÇÃO E PERFORMANCE EM LÍNGUA INGLESA: primeiro ciclo de conversas, coorganizado por Marcela Santos Brígida e Lucas Leite Borba, versam com originalidade em torno de performances ao vivo de artistas da pop music e imersos na indústria cultural. Temos um notável exercício de recepção e leitura das obras de Beyoncé, BTS, FKA Twigs, Harry Styles, Lorde, Miles Cyrus, Mitski, Paramore, Stormzy, Taylor Swift. Os textos desempenham o exercício raro de restituição da experiência sensorial, ou seja, de “repensar a memorização como forma de aprendizado e de apropriação, opondo-se à ‘decoreba’”. Se no texto “O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?”, Ruth Finnegan anota que “a performance cantada é evanescente, experimental, concreta, emergindo na criação momentânea dos participantes”, essa fricção com o agora, potencializada pela relação de fã presente na base das autorias dos textos do livro CANÇÃO E PERFORMANCE EM LÍNGUA INGLESA: primeiro ciclo de conversas, propõe renovados ares aos estudos na área dos Estudos da Performance e dos Estudos da Canção, exatamente por ter a formação discente como seta e alvo. Não à toa, o trabalho é resultado da disciplina eletiva “Interrogating the Lyrics: from Alex Turner to Taylor Swift”, ministrada pela professora Marcela Santos Brígida, do Instituto de Letras da UERJ. Concordo com o que a professora diz no posfácio, "saber que a universidade pública comporta uma iniciativa como esta eletiva, (...), me traz não apenas alegria, mas também esperança criativa".
17 agosto 2025
Teorias da canção
Em TEORIAS DA CANÇÃO, Marcos Ramos apresenta uma espécie de história concisa da crítica de canção popular brasileira. Como bem diz o subtítulo do livro, lemos "percursos, fundamentos e metodologias - uma introdução" de como a canção popular foi se tornando objetivo de pesquisa e matéria prima para o pensamento crítico do Brasil. Para tanto, o autor faz resenhas expandidas de textos essenciais: "Ensaio sobre a Música Brasileira" (1928), de Mário de Andrade, "Pequena História da Música Popular" (1974), de José Ramos Tinhorão, "Balanço da Bossa e Outras Bossas" (1968), de Augusto de Campos, "O som e o sentido" (1989), de José Miguel Wisnik, "O Cancionista: Composição de Canções no Brasil" (1995), de Luiz Tatit, e "Letras e Letras da MPB" (1988), de Charles Perrone. Ao mesmo tempo em que cita quem deu continuidade crítica a essas abordagens: Oneyda Alvarenga, Heloisa Teixeira, Santuza Cambraia Naves, Cláudia Neiva de Matos, Liv Sovik, entre vários outros nomes. De modo bastante elucidativo, Marcos Ramos aponta o que considera potencialidades e limitações em cada abordagem, sempre ressaltando que muitos dos problemas apontados diz mais sobre o tempo histórico e ao objetivo específico de cada proposta, do que às competências dos autores. Interessante perceber como cada abordagem fricciona na seguinte, dando conta de circundar objeto de análise tão complexo quanto a canção popular. O autor destaca a importância do rigor analítico e da sensibilidade estética de quem se destina à interpretação do amálgama que a canção é e foi sendo interpretada e consolidada pela crítica: "não mais como um texto literário musicado, mas como uma forma estética híbrida e autônoma, cuja expressividade se realiza na confluência de códigos distintos e cuja complexidade exige escuta atenta e aparato crítico plural", escreve o autor. O livro TEORIAS DA CANÇÃO é ótimo material didático para manter sempre à mão.
10 agosto 2025
Será que fui eu?
"Existirmos: a que será que se destina?". Enfrentar a pergunta feita pela canção popular requer coragem e ação. "Hoje estou com 73 anos e esta história começou quando eu tinha 5 anos, em 1935", escreve Alzira Silvéria, autora do livro de memórias SERÁ QUE FUI EU?. Alzira se apresenta como "Uma menina negra, sem pai (porque não o conheci), sem irmãos, de origem muito humilde, mas com muita fé em Deus e muita coragem, que enfrentou a vida confiando que o dia de amanhã seria melhor do que o de hoje". A fé em Deus se traduz na vida em comunidade cristã, espaço de sociabilidade de muitos brasileiros; e a esperança no dia de amanhã se revela na memória do carnaval de rua do Rio de Janeiro e na educação sentimental via Rádio Nacional, bem como no racismo, na exploração. Enquanto narra a própria história, Alzira reflete sobre quem se convence de quem se converte à fé e apresenta um retrato singular de muitas brasileiras: "Devo a Deus e a todas as mulheres negras o apoio, o conforto e o bem-estar que me permitiram sobreviver e criar minha filha, sozinha, em São Paulo", escreve. Essa sinceridade gera uma forte relação de intimidade lírica com quem lê. Nascida em São Lourenço (MG), é da acolhedora Marília (SP), cantada num bonito poema estruturado em redondilhas, que Alzira pergunta e escreve seu livro SERÁ QUE FUI EU?, convidando-nos a, conhecendo sua história, conhecer a de várias mulheres que migram, pelos filhos, em busca de trabalho, de melhores condições de vida, e, assim, inscrevem anonimamente seus nomes na história do país. "Ia do Parque Dom Pedro até a Praça Ramos de Azevedo, com sol, chuva, frio ou calor, e, às vezes, ainda fazia hora extra! Hoje penso: - Será que fui eu?", questiona. Transitando entre a primeira e a terceira pessoa do singular, ou seja, observando-se também enquanto personagem protagonista, Alzira Silvéria, cuja narrativa começa com um sugestivo fabular "Era uma vez", mostra a construção da voz de si, de tantas.
03 agosto 2025
Tropicália em tela
O livro TROPICÁLIA DEM TELA nos lembra que a Tropicália foi mais do que um movimento (ou momento) musical e fez da TV, então em amplo processo de penetração nas casas da classe média, o suporte ideal para a difusão de sons e imagens de uma nova poética, feita de desbunde e politização do corpo. O gesto crítico da Tropicália tencionava os polos - apocalípticos x integrados - com que a inteligência brasileira da época pensava o estado de coisas no país. Rafael Zinzone maneja tópicos de cultura, política e mercado para questionar em 2025 "Em um Brasil sob tensão com novos discursos e formas autoritárias, onde estaria a rebeldia dos dias de hoje?". A pergunta aprofunda o olhar para o contexto da Tropicália, final de 1960, quando o desbunde assumido por Gal Costa, Caetano Veloso, Rita Lee, Gilberto Gil, Tom Zé e demais agentes implicados devorava o meio - a TV - para desvelar os absurdos do sistema opressor, de uma ditadura que usava a mesma TV para neutralizar o dissenso e difundir a normalidade desejada pelas pessoas da sala de jantar. Performando de dentro, por dentro da TV, os tropicalistas convocavam novas formas de viver, sua estética exigia olhos para ver além da superfície. O aparente otimismo tropicalista encapsulava profunda crítica à tragicidade do cotidiano brasileiro. "No caso específico deste estudo, apostei na hipótese de um momento bastante particular na história da televisão brasileira. Mesmo que Divino, maravilhoso não terminasse conforme programado, sendo interrompido pela prisão de Caetano e Gil, trago o exemplo do programa como forte expressão de dissenso. Se assim não o fosse, dificilmente as figuras tropicalistas com maior exposição midiática teriam sido encarceradas pelo Estado", escreve Zincone.
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