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23 fevereiro 2025

A transparência da carne


Verbo é a matéria prima da poesia de Carlos Eduardo Ferreira de Oliveira. Do primeiro – “E o Verbo fez-se carne, luz em nós” – ao derradeiro verso – “à irrelevância”, A A TRANSPARÊNCIA DA CARNE é livro que, a princípio, exigiria de quem lê a leitura prévia de boa parte das obras dos poetas do século XX. No entanto, a maturação das referências é tão bem realizada que “de tanto ouvir estrelas poderosas, / sigo o sonho das almas dolorosas”, lê-se no terceiro poema, indicando o trabalho de devoração poética e teórica que o livro elabora. Os contrastes e as sobreposições de luz e sombra, som e silêncio (“quase jazz”), rocha e nuvens, cortes bruscos e preciosos enjambements (“silentes / sussurros, orações, gemidos”), aceleração aliterante e desaceleração assonante são elementos fundamentais do jogo lúdico da poesia de Carlos Eduardo. Nesse jogo que eternamente retorna ao éden, ao princípio do poetar, do uso primal do Verbo, a palavra é a “serpente” – “um prisma cuja cor ilude, abisma”. E o Verbo se revela diamante de orvalho, de vento, ardido pelo poeta. Forma é conteúdo, som é sentido e Carlos Eduardo faz de A TRANSPARÊNCIA DA CARNE um lugar em que a palavra se pensa, repensa, pende, enquanto carnação do poético.

02 fevereiro 2025

O outro pé da sereia


02 de fevereiro. Dia de Iemanjá. Um bom exemplo literário de permanência da resistência dessa orixá vem do livro O OUTRO PÉ DA SEREIA, de Mia Couto, quando este trata da perturbação que a estátua da virgem Maria causa entre os escravos. Eles associam a imagem à senhora das águas – Kianda. É quando Dia critica a submissão de Nimi Nsundi perante a Virgem portuguesa que este revela: "Os portugueses dizem que não temos alma. Temos, eles é que não veem. A nossa luz, a luz dos negros é para eles um lugar escuro. Por isso, eles têm medo. Têm medo que a nossa alma seja um vento e que espalhamos cores da terra e cheiros do pecado. É essa a razão porque D. Gonçalo da Silveira quer embranquecer a minha alma. Não é a nossa raça que os atrapalha: é a cor da nossa alma que eles não querem enxergar. (...) aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chamam a isso de baptismo. Eu digo que estou entrando na casa de Kianda. A sereia, deusa das águas. É essa deusa que me escuta quando me ajoelho perante o altar da Virgem", lemos. Aqui se revela a rebelião pelo jogo, o usar (apropriar-se) dos signos do outro, antropofagicamente, dentro do conflito cultural. O sincretismo, mais do que submissão ou negação, ressalta a astuta compreensão teológica, cultural e social. O sincretismo é instrumento de afirmação identitária. “De todas as vezes que rezei não foi por devoção. Foi para me lembrar. Porque só rezando me chegavam as lembranças de quem fui” (idem). E assim percebemos que os mitemas das sereias não chegam para nós apenas vindos da mitologia grega, onde habitavam os rochedos entre a ilha de Capri e a costa da Itália, filhas do rio Achelous e da musa Terpsícore. A semiologia sirênica precisa ser entendida a partir do complexo semiótico que a constitui hoje. Europa, África e Iara nos fornecem os cantos do mundo ancestral a ser ouvido.