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02 fevereiro 2025

O outro pé da sereia


02 de fevereiro. Dia de Iemanjá. Um bom exemplo literário de permanência da resistência dessa orixá vem do livro O OUTRO PÉ DA SEREIA, de Mia Couto, quando este trata da perturbação que a estátua da virgem Maria causa entre os escravos. Eles associam a imagem à senhora das águas – Kianda. É quando Dia critica a submissão de Nimi Nsundi perante a Virgem portuguesa que este revela: "Os portugueses dizem que não temos alma. Temos, eles é que não veem. A nossa luz, a luz dos negros é para eles um lugar escuro. Por isso, eles têm medo. Têm medo que a nossa alma seja um vento e que espalhamos cores da terra e cheiros do pecado. É essa a razão porque D. Gonçalo da Silveira quer embranquecer a minha alma. Não é a nossa raça que os atrapalha: é a cor da nossa alma que eles não querem enxergar. (...) aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chamam a isso de baptismo. Eu digo que estou entrando na casa de Kianda. A sereia, deusa das águas. É essa deusa que me escuta quando me ajoelho perante o altar da Virgem", lemos. Aqui se revela a rebelião pelo jogo, o usar (apropriar-se) dos signos do outro, antropofagicamente, dentro do conflito cultural. O sincretismo, mais do que submissão ou negação, ressalta a astuta compreensão teológica, cultural e social. O sincretismo é instrumento de afirmação identitária. “De todas as vezes que rezei não foi por devoção. Foi para me lembrar. Porque só rezando me chegavam as lembranças de quem fui” (idem). E assim percebemos que os mitemas das sereias não chegam para nós apenas vindos da mitologia grega, onde habitavam os rochedos entre a ilha de Capri e a costa da Itália, filhas do rio Achelous e da musa Terpsícore. A semiologia sirênica precisa ser entendida a partir do complexo semiótico que a constitui hoje. Europa, África e Iara nos fornecem os cantos do mundo ancestral a ser ouvido.