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30 julho 2020

Capricho

Concomitante aos poemas em defesa da "libertação dos escravos", "Auriverde pendão de minha terra, / Que a brisa do Brasil beija e balança, / (...) / Antes te houvessem roto na batalha, / Que servires a um povo de mortalha!...", dizem os versos de "O navio negreiro", pastiche do poema "Das Sclavenschiff" de Heirich Heine (1797-1856), o poeta Castro Alves (1847-1871) também cantou a paixão romântica marcada por "dúvida, abatimento, cinismo, melancolia", como destaca Antonio Candido (2007, p. 593).
Seja no registro lírico-épico, seja na lírica amorosa, Castro Alves mantem o tom hiperbólico de uma poesia feita notadamente para a voz, a oralização e o convencimento do Outro-ouvinte. Para Andrea Werkema, "é a hipérbole, portanto, recurso tanto retórico quanto poético; é capaz de ensinar, de doutrinar e de mover afetivamente – tendo como fundamento a sugestão de irrealidade que conforma, em última instância, o fenômeno poético em si" (2014, p. 157).
Um exemplo desse cruzamento, pela via da hipérbole, entre poeta e musa, encontra-se nos versos "cantos / e prantos / que suspira / a lira, / a alfombra, / à sombra, / encontrarei pra ti", do poema "Capricho" (1863), que figura em Hinos do Equador, livro publicado postumamente, sob organização de Afrânio Peixoto para as Obras Completas de Castro Alves (1921). Assim como no texto da professora Werkema, "o que me interessa no poema ["Capricho"] é o exagero como o próprio esteio de sua potência panfletária", no meu caso, digamos, potência persuasiva. Isso porque se em "O navio negreiro" temos a musa libérrima e audaz, em "Capricho" temos a ninfa, Celuta, a vinda dos céus.
O eu lírico enreda a musa exagerando nas tintas do desejo ao proliferar elementos de cortejo amoroso ao longo do poema. Ainda para Werkema, "a hipérbole funciona melhor quando já existem afetos favoráveis à causa defendida no texto. Diferentemente da ironia, que, como recurso retórico, convida ao afastamento, ao esfriamento dos afetos, a hipérbole é potenciadora" (2014, p. 161). Do "Ai! quando / brando / vai o vento / lento" até "Vem, linda, / ainda / há solidões aqui", o eu encena a entrega de si à musa, com fins de aceite ao convite.
Antonio Candido destaca essa "intensidade com que [Castro Alves] exprime o amor, como desejo, frêmito, encantamento da alma e do corpo, superando completamente o negaceio casimiriano, a esquivança de Álvares de Azevedo, o desespero acuado de Junqueira Freire" (2007, p. 593). "Capricho" mostra de maneira contundente o sexo sem desonra: "Revoltos, / soltos / os cabelos / belos, / vivace / a face, / tremulante a voz". O longo verso quebrado dá conta de plasmar na página o frenesi sexual. Bem como o lirismo cósmico que mira o gozo dos amantes: "Num leito / feito / de cheirosas / rosas, / risonhos / sonhos / sonharemos nós". Candido fala de um "sentimento de Olímpio" que marca a obra castralvina.
Parece irônico que esse exagero tenha encontrado na voz singela e firme de Nara Leão sua recondução à oralidade. Mas, como Adriana Cavarero aponta, "a palavra, mesmo a palavra escrita, é indagada na sua matriz sonora" (2011, p. 160) e o canto de Nara Leão é uma leitura possível que, eliminando o excesso de meneios vocálicos, foca no gesto de estar entregue à beleza da "Linda". O fato é que Francis Hime deu melodia aos versos do que ele chamou de "Suíte Castro Alves" para os poemas "Capricho" e "Sonho de boêmia"; e Nara gravou a primeira como canção na trilha sonora da telenovela O casarão (1977).
O ritmo da lírica trovadoresca impresso no texto é captado por Hime e transcriado na voz de Nara, voz que é a caixa de ressonância do desejo do eu lírico para que a "lua nua" espelhe o corpo nu da amada. Nara compreende o ímpeto e alonga a palavra "lua" para que a luz desta perpasse e ilumine o corpo da mulher-ninfa. Passional, a voz de Nara se desenvolve lenta e amparada no tom "brando" e "sutil", do vento e da lua, respectivamente. Semelhante à "estrela [que] vela" a ninfa suspirosa, a voz de Nara encontra a entonação embrionária das palavras que ornamentam e abrigam o desejo e a desejada de "divinal perfil".
A canção "Capricho", assim, resulta no tépido "leito / feito / de cheirosas / rosas" sonoras, onde os enamorados podem se deitar, à revelia da vida "real" que parece impedir o enlace. Se a conjugação dos amantes está plasmada no corpo do texto nos versos "revoltos, / soltos / os cabelos / belos, / vivace / a face, / tremulante a voz", em que palavras se desdobram umas das outras em sons e sentidos, Nara figurativiza o coito quando estende a voz caprichosa: o gozo. O frenesi fica a cargo da imaginação de quem ouve, não da voz de quem canta em ritmo nu, sem oscilações, adensando a nudez tanto do corpo da amada, quanto do eu lírico.
As duas últimas estrofes guardam a promessa (atenção aos verbos no futuro: "sonharemos", "encontrarei") do trovador que canta para enredar o Outro - "Cantos / e prantos / que suspira / a lira, / a alfombra, / à sombra, / encontrarei pra ti" - e para marcar a sua interessada solidão: "Celuta, / escuta / de meu seio / o enleio... / vem, linda, / ainda / há solidões aqui". Mulher e natureza são iguais em beleza, vivacidade e perfeição, eis a hipérbole do poema.
Íntimo da natureza cantante - "cantos / e prantos / que suspira / a lira" - o eu lírico quer a intimidade e o refúgio da mulher. A bossanovista Nara Leão (há outras!) não altera a estrutura do texto, nem cria refrão. Restituindo uma ambiência das récitas de salão do século XIX, Nara canta o desejo - "Ai!" - de quem forja uma relação carnal ideal; e o convite: "Vem, linda, / ainda / há solidões aqui". Cria-se um mundo autônomo, subtraídas às intempéries do cotidiano ordinário.


ALVES, Castro. Obras completas. Afrânio Peixoto (Org.). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1921.
CANDIDO, Antonio. "Poesia e oratória em Castro Alves". In: Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, 1750-1880. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007.
CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Trad. Flavio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
WERKEMA, Andrea. "A hipérbole engajada: deserto, céu e oceano em “O navio negreiro”, de Castro Alves". In: Revista O eixo e a roda. Belo Horiozonte: UFMG, 2014, v. 23, n. 2.


***

Capricho
(Castro Alves / Francis Hime)

Ai! quando
Brando
Vai o vento
Lento

À lua
Nua
Perpassar sutil;

E a estrela
Vela,
E sobr'a linfa
A ninfa
Suspira
Mira
O divinal perfil;

Num leito
Feito
De cheirosas
Rosas,
Risonhos
Sonhos
Sonharemos nós;

Revoltos,
Soltos
Os cabelos
Belos,
Vivace
A face,
Tremulante a voz

Cantos
E prantos
Que suspira
A lira,
A alfombra,
À sombra,
Encontrarei pra ti;

Celuta,
Escuta
De meu seio
O enleio...
Vem, linda,
Ainda
Há solidões aqui.

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