Pesquisar canções e/ou artistas

15 outubro 2019

Poema obsceno

A aliança entre Música e Poesia remonta à origem da linguagem, ou seja, quando o canto estava indissociável da poesia: dos aedos gregos à lírica trovadoresca; dos encantamentos indígenas aos orikis nagô-ioruba. O fato é que mesmo no império grafocêntrico, com a tipografia e o prestígio da palavra escrita, o verbo poético não renuncia a voz (ritmo, timbre, dicção) humana. Basta ler o clássico texto de T. S. Eliot – “As três vozes da poesia” – para perceber como poetas e críticos vêm tentando perceber essa relação.
Mas se, por princípio, todo poema escrito pode ser cantado, a musicalização precisa atender as estruturas específicas ao acabamento da canção. Os procedimentos são outros. Por exemplo, caberá ao melodista buscar a "entoação embrionária" (expressão de Luiz Tatit) dos versos para, entendendo o ser e o tempo poético, criar a canção, verter a palavra escrita em palavra cantada.
Tendo uma Canção Popular tão forte, a parceria entre letristas e poetas é marca de nossa cultura brasileira. É o caso do poeta Ferreira Gullar, autor da célebre letra de "Trenzinho do caipira" (1976), parte integrante da peça Bachianas Brasileiras nº 2 (1933) de Heitor Villa-Lobos. Mas Gullar também assina outras peças de poemas musicados e de letras de canção. O livro Cancioneiro – Ferreira Gullar (2015) revela um poeta talvez pouco conhecido no ambiente acadêmico. O organizador professor Antonio Carlos Secchin anota que "quando me predispus a reunir o cancioneiro de Ferreira Gullar, julgava que encontraria no máximo meia dúzia de letras. Para minha agradável surpresa, e contando com a prestimosa colaboração do gullariano Augusto Sérgio Bastos, foi possível chegar a treze".
Cantados por Nara Leão, Edu Lobo, Chico Buarque, Maria Bethânia, Adriana Calcanhoto e Zé Ramalho, os versos do poeta Ferreira Gullar, parceiro de cancionistas como Sueli Costa, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Milton Nascimento e Fagner, são apresentados em versão manuscrita e digitada. Tal e qual as boas edições do cancioneiro da antiga poesia lírica provençal, por exemplo. O critério de registrar unicamente "letras" e não "poemas musicados", deixa de fora peças importantes – "Traduzir-se" (Fagner e Ferreira Gullar) e "Poema Obsceno" (Moacyr Luz e Ferreira Gullar), entre outras.
"Poema Obsceno" foi publicado no livro Na vertigem do dia (1980), portanto, logo após a publicação do icônico Poema sujo (1975), nas palavras de Gullar "sujo como o povo brasileiro, como a vida dos brasileiros". Note-se que Poema sujo foi escrito em 1975, durante o exílio imposto ao poeta pela ditadura militar. É sempre bom lembrar que o poema entrou no Brasil gravado numa fita cassete, na bagagem de Vinicius de Moraes e foi ouvido, antes de ser lido. Dada a repercussão, "devo ao Poema sujo o fim antecipado do meu exílio", anotou Gullar.
Além de "Poema Obsceno", o livro Na vertigem do dia guarda outros metapoemas como, além do conhecido "Traduzir-se" ("Uma parte de mim / é só vertigem; / outra parte, / linguagem"), "Arte poética" ("Não quero morrer não quero / apodrecer no poema"), "Subversiva" ("A poesia / quando chega / não respeita nada"), "O poço dos Medeiros" ("Não quero a poesia, o capricho / do poema: quero / reaver a manhã que virou lixou") e "A voz do poeta" ("É voz de gente - poema: / fogo logro solidão".
Os versos de abertura de "Poema Obsceno" - "Façam a festa / cantem dancem / que eu faço o poema duro / o poema-murro / sujo / como a miséria brasileira" - soam, não apenas como a autorreflexão de um sujeito que toma para si a missão - com tons de sacrifício - de cantar o horror, também acusatórios. Adiante o sujeito diz e nomeia: "Não se detenham: / façam a festa / Bethânia Martinho / Clementina / Estação Primeira de Mangueira Salgueiro / gente de Vila Isabel e Madureira / todos / façam / a festa". Acusando a suposta alienação dos outros (em festa) o sujeito afirma sua importância: fazer o "poema duro", logo obsceno, visto "que não toca no rádio", nem "entrará nas antologias oficiais".
A referência ao Poema sujo é literal, as referências à miserabilidade da vida também: ele compõe um poema "que o povo não cantará / (mas que nasce dele [do povo])". Por fim, "o poema / terá o destino dos que habitam o lado escuro do país / - e espreitam". Os signos remetem o leitor ao Ferreira Gullar preocupado com os destinos do país e ainda ligado às propostas de liderança do povo advindas dos Centros Populares de Cultura - criados em 1962 e extintos pelo golpe militar em 1964 -, com o emblema "o povo canta". "Toda arte é política e, por isso mesmo, determina uma opção diante dos problemas concretos, a afirmação ou negação de determinados valores" (p. 131), escreveu Gullar em Vanguarda e subdesenvolvimento, indicando um projeto artístico que definiu sua obra.
Em entrevista a Hans Ulrich Obrist, Gullar diz "eu me engajei no Centro Popular de Cultura porque eu estava, naquele momento, muito mais interessado em mudar a sociedade brasileira do que em fazer arte. Mas depois veio o golpe militar, e mostrou que era melhor continuar fazendo arte" (p. 178. ver Entrevistas vol.6).
O tom acusatório de alienação do povo aparece noutro poema do mesmo livro. "Poderia dizer que meu povo / é uma festa só na voz / de Clara Nunes / no rodar / das cabrochas no carnaval / da Avenida. / Mas não. O poeta mente", escreve o poeta em "Digo sim". E completa: "A vida nós a amassamos em sangue / e samba / enquanto gira inteira a noite / sobre a pátria desigual". E, depois de elencar as contradições da vida, conclui: "não digo que a vida é bela / tampouco me nego a ela: - digo sim". Desdobrando o tom de acusação em elogio a quem consegue cantar e sambar, apesar do sangue?
Ainda no livro Vanguarda e subdesenvolvimento Ferreira Gullar registra seu empenho com a realidade intranscendente brasileira e sua preocupação com o distanciamento entre a arte de vanguarda e o povo. "A verdadeira vanguarda artística, num país subdesenvolvido, é aquela que, buscando o novo, busca a libertação do homem, a partir de sua situação concreta, internacional e nacional" (p. 8), escreve. "Armado do método marxista, o artista terá condições de superar a limitação básica de algumas das mais significativas experiências da vanguarda artística, que as conduziu ou ao formalismo ou ao subjetivismo. Para isso, vamos ter de nos deter no exame da dialética do particular e do universal na criação da obra de arte" (p, 53), sugere.
É este poeta crítico da contradição - "Para uma vida de merda / nasci em 1930 / na Rua dos Prazeres" (do poema "Primeiros anos") - que ouvimos em "Digo sim" e "Poema Obsceno". Para Gullar, a arte de massa, mercadoria da sociedade capitalista, "trata-se de uma visão desmistificada que não abdica da complexidade mas que a vê, não como resultante de uma irracionalidade fundamental, segundo a qual o ser é insondável, e sim como decorrência do caráter dialético, dinâmico, do real" (p. 130).
O título "Poema Obsceno" problematiza a noção de obscenidade. Ferir o pudor, ser obsceno, é mostrar aquilo que a ditadura militar quer mascarar: a miséria brasileira. Miséria que, de algum modo, também é mascarada na festa carnavalesca. O poema revisa, portanto, a ideia de inversão que Bakhtin observou no carnaval medieval. O sujeito do poema quer que na modernidade esta inversão, ou seja, a tomada de posição, do protagonismo do povo ultrapasse os quatro dias de festa concedida e se incorpore à vida ordinária. Faz isso assumindo a liderança - "eu faço o poema", "eu soco o pilão". Para ele, o povo precisa de guia. E ele mesmo ocupa esta posição.
Mas o sujeito erra ao diagnosticar "que não toca no rádio / que o povo não cantará". Afinal, quando Moacyr Luz e Água de Moringa (Rui Alvim, Marcílio Lopes, Jayme Vignoli, Luiz Flávio Alcofra, Josimar Carneiro e André Boxexa) gravam o discurso do poema no disco Sedução carioca do poeta brasileiro (2005) o discurso retorna à voz, sai do mutismo das páginas do livro e ganha o corpo coletivo. O sujeito não cumpre sua função assim?
O disco merece destaque na discografia de Moacyr Luz. Nele temos musicados 12 poemas de exaltação à cidade do Rio de Janeiro: "Noite Carioca", Murilo Mendes; "Poema Obsceno", Ferreira Gullar; "Elegia Inútil", Manuel Bandeira; "Coisa Mais Linda Mais Cheia de Garça", Elisa Lucinda; "3x4", Armando Freitas Filho; "Copacabana Noctívaga", Ariel Marques; "Méier", Luiz Paiva de Castro; "Carnavais", Geraldo Carneiro; "Cantiga das Ilhas", Aldir Blanc; "VII – Rio de Janeiro", Carlos Drummond de Andrade; "Praia do Pinto", Vinicius de Moraes; e "As Cantadas", Mário de Andrade.
Embora no mesmo livro Na vertigem do dia o poema "Improviso ordinário sobre a cidade maravilhosa" fale que "a tarde é quente / na cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro / com suas cadeias apinhadas de presos / respirando o fedor de seus próprios dejetos", a canção de Moacyr Luz investe na ideia de que "a tristeza é senhora, desde que o samba é samba", conforme canta Caetano Veloso. Ou seja, a alegria aparente - "façam a festa" - não nega a tristeza resiliente - "Os homens se amparam em retratos. / Ou no coração de outros homens". E não é isso que o samba faz? Não é este o gesto utópico de cantar, de sambar, ou seja, apontar "o lado escuro do país" e os que "espreitam" postos à margem?
O cancionista cria uma melodia que ora tematiza, estimula a dança com um maracatu no começo da canção; ora passionaliza, reverenciando quem mantem a fé na festa ("Bethânia Martinho / Clementina / Estação Primeira de Mangueira Salgueiro / gente de Vila Isabel e Madureira"); ora investe na oratória (mais palavra falada, política, dura e menos palavra cantada, melodiosa), respeitando o discurso engajado do trecho "Não se prestará a análises estruturalistas / Não entrará nas antologias oficiais / Obsceno / como o salário de um trabalhador aposentado / o poema / terá o destino dos que habitam o lado escuro do país / – e espreitam".
Os três modos de dizer o poema impõem à canção de Moacyr Luz as contradições elencadas pelo sujeito do poema. Esta consciência melódica da entonação embrionária da palavra escrita, além de ser uma aula sobre leitura de poesia, estimula a reflexão sobre arte e participação. Outro exemplo, a oratória, a leitura em voz alta é usada para dizer de modo incisivo e reivindicatório o verso entre parênteses "(mas que nasce dele)", referindo-se ao povo.
No poema "O espelho do guarda-roupa", Gullar escreveu que "Um homem com um espelho / enterrado no corpo / na verdade não dorme: reflete / um voo". Não é este homem que o sujeito cancional criado por Moacyr Luz incorpora ao restituir às massas o "surdo" (instrumento e estado de ser) do poema? "A pureza desse amor [à festa] / Espalha espelhos pelo carnaval / E cada cara e corpo é desigual / Sabe o que é bom e o que é mau", canta Caetano Veloso em "Zera a reza", canção-vértice da dobra ético-estética entre Gullar, para quem "a arte existe porque a vida não basta", e Luz, criador do projeto Samba do Trabalhador, que acontece toda segunda-feira no Andaraí, na cidade do Rio de Janeiro.

***

(Moacyr Luz / Ferreira Gullar)

Façam a festa
cantem dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo como a miséria brasileira
Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Martinho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)

Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
e espreitam.

Nenhum comentário: