Diante do excesso de “roupas novas” para “canção
velha” à disposição no mercado e da aposta naquilo que já foi devidamente
testado e aprovado pelo consumidor, uma regravação só interessa à crítica e ao
público não acomodado se iluminar tempos e espaços ainda não explorados nas
gravações anteriores.
Uso as expressões “roupas novas” e “canção velha”
propositadamente para suspender o juízo do sentido e questioná-lo. Afinal, a
função de uma regravação é justamente afirmar que as canções não envelhecem
quando encontram a roupagem atualizadora necessária. Atualizar, nesse caso, não
quer dizer que a canção esteja defasada. O poder que as canções tem de remeter
o ouvinte a tempos e espaços passados, acendendo a memória e rejuvenescendo os
afetos, negaria qualquer afirmação naquela direção. Atualizar é presentificar,
colocar a canção na convivência sonora de um público que não teve acesso a ela
até então.
Obviamente, devido às técnicas de reprodução e
arquivo dos registros sonoros, esse novo público pode fazer audições
comparativas, definindo, por si, o gosto e a predileção. Bem como a crítica
especializada. Desse modo, as boas gravações de uma “mesma” canção são aquelas
que se complementam, que dialogam por, repito, iluminarem, cada uma, aspectos
particulares da canção. É assim que uma canção jamais será a “mesma”. Ela será
sempre um retorno em diferença.
Seguindo essa lógica, portanto, não há uma
gravação melhor que a outra. Há complementos, encaixes. A não ser que seja
apenas uma mera regravação para atender a um interesse de mercado. E isso fica
evidente quando acontece. O público de canção no Brasil não é bobo. Afinal, se
a canção só é canção quando do momento da execução na voz de alguém – antes
disso ela “é” letra e/ou partitura –, claro está, creio, que todo
cantor/intérprete é, no mínimo, co-autor da canção que apresenta. Isso num país
com artistas tais como Elis Regina, Maria Bethânia e Ney Matogrosso, para ficar
com alguns exemplos do cânone, cujas apropriações rasuram aquilo que entendemos
por autoria, fica ainda mais evidente e forte.
Dito
de outro modo: cada versão de uma canção precisa torná-la única, original, como
se a ouvíssemos pela primeira vez. Arnaldo Antunes fez isso com “Exagerado”, canção
mais conhecida na voz de Cazuza, por exemplo. E quantos sentidos estão abertos
em cada versão de “Mesmo que seja eu”? Erasmo Carlos, Marina Lima, Ney
Matogrosso, Zé Ramalho incrustam voz ao tema e imprimem vida a sujeitos
cancionais diferentes vindos da “mesma” canção.
Dito isso, quero comentar a beleza da regravação
de “Tango do mal”, feita por Simone Mazzer em seu disco Férias em videotape (2015). Simone não deixa de prestar homenagem
ao estilo risonho e corrosivo de Eduardo Dussek, parceiro vocal do autor
Luciano Salvador Bahia na gravação feita para o disco deste: Abstraia, baby (2014). Porém, devido à
sua potência sonora e à nova e bela divisão da letra na melodia, aliadas à
consciência cênica da cantora, a canção recebe registro singular, original,
autoral.
Aliás, creio que no caso de Mazzer, a qualidade
de sua arte é tão encantadora que é ela quem imprime qualidade à telenovela onde
a canção figura na trilha sonora e não o contrário. Ou seja, o “Tango do mal”
de Simone não precisa da telenovela para ser legitimado em sua eficácia
artística. Nos dias atuais, pensar que a canção só alcançou o sucesso porque
toca na novela ou na rádio é desprezar a mudança dos tempos, é tentar manter os
velhos padrões que por muito tempo tentou dominar o que não tem governo nem
nunca terá: o saber com sabor que cada canção (mesmo a “mesma” em diferença)
contém. A isso José Miguel Wisnik, numa referência a Nietzsche, chama de gaia ciência.
Não cabe ficar comparando uma versão em detrimento da outra. Como se uma negasse a outra. Pelo contrário, uma afirma a outra. A versão de Luciano, por ser feita na troca de turnos vocais com Dussek, remete o ouvinte aos desafios coreográficos do dançar de um tango. Como sabemos, no final do século XIX, período de ebulição da mistura que resultou no tango, no subúrbios de Buenos Aires, era comum que o ritmo fosse dançado por dois muchachos.
A versão de Mazzer, por sua vez, investe na paixão, do drama encenado na letra do sujeito que diz: “Eu vou jogar um tango / Na sua cara de bolero comedido (...) Eu vou esfregar um tango / No seu jeitinho serenata de encomenda”. Contra o comezinho, o mais do mesmo, o cotidiano, o sujeito da canção comete o passional, o não apaziguado. O confronto direto no campo do desejo.
Não cabe ficar comparando uma versão em detrimento da outra. Como se uma negasse a outra. Pelo contrário, uma afirma a outra. A versão de Luciano, por ser feita na troca de turnos vocais com Dussek, remete o ouvinte aos desafios coreográficos do dançar de um tango. Como sabemos, no final do século XIX, período de ebulição da mistura que resultou no tango, no subúrbios de Buenos Aires, era comum que o ritmo fosse dançado por dois muchachos.
A versão de Mazzer, por sua vez, investe na paixão, do drama encenado na letra do sujeito que diz: “Eu vou jogar um tango / Na sua cara de bolero comedido (...) Eu vou esfregar um tango / No seu jeitinho serenata de encomenda”. Contra o comezinho, o mais do mesmo, o cotidiano, o sujeito da canção comete o passional, o não apaziguado. O confronto direto no campo do desejo.
O ouvinte baila entre destinador e destinatário
da mensagem. Entra no jogo malicioso de quem diz querer imprimir “marcas e arranhões
indeléveis” e incrustar “largas e profundas cicatrizes” no lugar comum das
coisas pré-estabelecidas. Ao questionar o jeito superficial de fazer canção –
“bolero comedido”, “reggae roots burguês”, “blues sem álcool e solidão” –, o
sujeito na voz de Simone Mazzer evoca a necessidade de envolvimento do cantor
com aquilo que ele canta, a fim de ultrapassar a pele das canções.
Indústria, fama, popularidade devem ser (ou não)
consequências e não causas da arte. O sujeito da canção “Tango do mal” entende
isso e ironiza criticamente alguns modos de fazer canção hoje. Sempre à espera
do aplauso pop liquidação. Critica a própria crítica, aliás. É justamente por
não esperar retorno, por mostrar, palavra por palavra, uma pessoa se
entregando, que Simone Mazzer cresce como cantora e assina aquilo que canta. E
quem há de nega que ela não é autora? As agências de direitos autorais? Para
essas, o tango do mal.
***
(Luciano
Salvador Bahia)
Eu
vou jogar um tango
Na
sua cara de bolero comedido
No
seu nariz de rock’n roll arrependido
No
seu olhar de samba reggae industrial
Eu
vou esfregar um tango
No
seu jeitinho serenata de encomenda
No
seu estilo hip hop da fazenda
No
seu apeel de rap instrumental
E
o meu tango imprimirá
Marcas
e arranhões indeléveis
Nesse
seu quê de carimbó de Hollywood
Nesse
seu ar de bossa nova do sertão
E
o meu tango incrustará
Largas
e profundas cicatrizes
No
seu sorriso de ciranda pau no gato
No
o seu império pop liquidação
Eu
vou jogar um tango
Na
sua cara de bolero comedido
No
seu nariz de rock’n roll arrependido
No
seu molejo de merengue japonês
No
seu balanço de reggae roots burguês
Nesse
seu blues sem álcool e solidão
Nesse seu samba sem
luar sem violão
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