Pesquisar canções e/ou artistas

14 abril 2024

Refazenda


O disco Refazenda (1975) dá início à chamada “trilogia Re”, de Gilberto Gil, composta com Refavela (1977) e Realce (1979) e suplementada pelo disco Refestança, gravado ao vivo por Gil e Rita Lee em 1977 e a canção "Refloresta" (2021). Ao traçar o percurso de volta às raízes de Gil, Refazenda é fundamental em sua discografia, por considerar o contexto cultural e social em que o cancionista se formou. Isso inclui elementos como a tradição musical local, as influências da mídia popular e as mudanças sociais e políticas que ocorreram durante sua juventude. Para Chris Fuscaldo, a autora do livro REFAZENDA - O INTERIOR FLORESCE NA ABERTURA DA FASE "RE" DE GILBERTO GIL, depois de voltar do exílio, "enquanto viajava pelos palcos do Brasil, [Gil] ia transformando o desejo de retomar suas raízes naquele que seria o repertório de Refazenda – esse, sim, o marco de um recomeço". O livro lê e escuta o disco de Gil iluminando pontos de sua produção e recepção, ampliando a rede de sentidos. Chris Fuscaldo faz o diagnóstico e comprova com rigor crítico que “Refazenda representou uma virada para o Gilberto Gil músico, uma novidade musical para os que estavam acostumados com o artista (‘artivista’) ou tropicalista, tornando-se um disco até hoje comumente resgatado para inspirar releituras. E essa novidade musical trazia consigo, à tona, a essência de Gil e a busca por suas raízes”. Essas raízes são revolvidas e redivivas pela autora de REFAZENDA - O INTERIOR FLORESCE NA ABERTURA DA FASE "RE" DE GILBERTO GIL e se expandem na obra completa do cancionista que tão bem potencializa o acervo afroameríndio do gaio saber nacional. "Fazenda" é como "tecido" é chamado no interior, Refazenda é revisão da trama de fios que compõe a obra de Gil. Curadora do museu virtual O ritmo de Gil, lançado em 2022 pelo Google Arts & Culture, Chris Fuscaldo sabe bem disso e nos ajuda a reouvir Refazenda.

07 abril 2024

Mistura adúltera de tudo


"Quando conseguirmos, no lugar da estratégica omissão, estabelecer um respeitoso dissenso entre nós (em oposição aos verdadeiramente nefastos ataques da extrema direita), talvez estejamos mais perto de alguma resistência cultural contra a força dissolvente do neoliberalismo contemporâneo, para o qual - há tempos - já não há mais sociedade". A frase que encerra o ensaio MISTURA ADÚLTERA DE TUDO, mais do que apontar uma conciliação utópica, convoca-nos a refletir sobre os caminhos que nos levaram a tão facilmente aceitar a cooptação de nossos discursos, práticas e experiências éticas e estéticas pela extrema direita (que a tudo pasteuriza e aniquila), dos anos 1970 até aqui. Promovendo uma breve revisão constelar do percurso, Renan Nuernberger diagnostica nexos e lacunas fundamentais para quem pensa e faz arte (notadamente, com texto criativo) no Brasil. Se desde 1970 o esforço tem sido "tornar o presente habitável", quanto tempo se perde em falsas polêmicas e dicotomias e em verdadeiros apagamentos e exclusões? Se "riquezas são diferenças", como diz o rock - essa linguagem jovem do jovem -, no exercício da chamada "vida literária" reinam os grupos que se retroalimentam. "Sem a fricção do debate entre artistas, a esfera do mercado, na qual todos estamos inseridos, desmancha as diferenças formais em favor de uma supostamente irrestrita fruição estética, cujo resultado, no limite, é uma relação anestesiada com as obras consumidas", escreve Nuernberger. Sem tocar no tema do "leitor sensível" é disso que (também) está se falando aqui, da deseducação dos sentidos - resultado do excesso de (pseudo) harmonia. MISTURA ADÚLTERA DE TUDO é, com perdão da nostalgia, um elogio à intrincada relação entre poética e política, diferença e ocupação.

31 março 2024

Como e por que ler a poesia brasileira do século XX


Ítalo Moriconi é dos críticos que mais experimenta compreender a poesia feita a partir dos anos 1970. Sua contribuição crítica é referência incontornável para pesquisadores e professores. No livro COMO E POR QUE LER A POESIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX, Ítalo apresenta pelo menos seis linhas de força, todas girando em torno da ideia de que esse foi um "século modernista", a saber: a superação oswaldiana da cultura bacharelesca; a fragmentação (ou polifonia, ou multifacetada) drummondiana do eu; a quebra da hierarquia na constituição do cânone literário; o flerte tropicalista entre poesia e cultura pop; as vanguardas cabralina e concretista; e o fim dos fins das utopias. Nesse percurso, ora sobreposto, ora justaposto, Ítalo destaca quais são os poemas e os poetas essenciais. O livro apresenta, assim, excelentes leituras dos poemas selecionados, como por exemplo o "Poema de sete faces", de Carlos Drummond de Andrade, em que Ítalo vai fundo de modo didático e preciso (professor que é) no jogo entre forma e conteúdo, observando que o poeta faz "tudo para colocar o eu no palco. Este eu nada tem de excepcional, é um eu comum. Trata-se então da intimidade do homem comum. Não é o eu especial de um Poeta em maiúscula, com a grandiloquência de certo mau romantismo kitsch. É o mesmo eu corriqueiro de Bandeira, mas Drummond o trabalha noutras direções, complexificando-o, mostrando suas torções e contradições internas". É essa presença do corpo na vida, no corriqueiro, no cotidiano da cidade grande o que mais se evidencia na seleção e nas análises de Ítalo Moriconi, resultando num panorama eficaz e potente da poesia do século XX.

24 março 2024

Mosaico


Marcelo Mourão tem a palavra poética como profissão de fé. Mestre e doutorando em literatura brasileira, poeta, curador de saraus, professor, Marcelo tem desenvolvido um rico trabalho de manutenção do debate público sobre poesia. No livro MOSAICO temos o Marcelo pesquisador e crítico elencando autores e temas importantes "sem berloques, miçangas ou balangandãs", como bem afirma Sérgio de Castro Pinto no prefácio. Platão e Pessoa, Heidegger e Sloterdijk, Hamlet e Beowulf, José de Alencar e Waly Salomão transitam nos ensaios que compõem o livro, dando conta de plasmar seu título. A metalinguagem, o ser e estar no mundo, o romance de formação, as linguagens com as quais a poesia fricciona são os temas principais, com destaque para a pesquisa de Marcelo sobre os grupos Feira de Poesia e Passa na Praça, projetos que animaram poesia e política no cotidiano de um Rio de Janeiro fora do eixo zonasulista e sob ditadura. "A cidade real se torna cidade imaginada através do discurso que, ao voltar para essa mesma cidade na forma de versos gritados nas praças, acaba perpassando todo o imaginário do público presente, no ciclo de dialética permanente, num jogo constante de espelhamentos entre cidade real e cidade do imaginário", escreve Marcelo ao analisar um poema de João Alves. Assim como os autores que seleciona estudar, Marcelo se preocupa com a comunicação poética e a recepção do público. Sua preocupação ética resulta em textos de linguagem franca e elucidativa, também para não iniciados nos debates acadêmicos. Isso é raro e bonito.

17 março 2024

A superfície dos dias


"Ao escrever, criamos vínculos vitalizantes por meio dos gestos perceptivos", a frase com que Luiza Leite (quase) encerra o livro A SUPERFÍCIE DOS DIAS encapsula o subtítulo do volume: "O poema como modo de superfície". Ao longo do ensaio, a autora arma uma trama de citações a fim de defender que "a exigência da inspiração desaparece porque a poesia está em tudo". Antes de pensar que "a poesia está nos fatos, no cotidiano", como pensavam os modernistas, o texto pensa a poesia das anotações, dos improvisos, das rasuras, dos rascunhos. Isso se inscreve no corpo do texto. Por exemplo, há uma voz narrativa no texto de Luiza Leite que, "de repente", lembra de situações, faz "uma pausa na escrita por causa do vento na varanda" e é nesse intervalo entre uma escrita e outra que surge "o poema". Logo, o pensamento crítico surgiria, assim, fenomenologicamente, entre uma leitura e outra, entre uma citação e outra. Laurie Anderson, Walter Benjamin, Emanuele Coccia, Hans Magnus Enzensberger, Tamara Kamenszain, Airton Krenak, entre outras referências bibliográficas, dançam no texto que se quer prazeroso, como pensara Roland Barthes. Olhando poemas de William Carlos Williams, Eileen Myles e Frank O’Hara a autora conclui que "o inacabamento e o improviso fazem parte dessa poesia cheia de pensamentos impulsivos que reserva um lugar especial para a noção de arte amadora" e assim define sua própria escrita em torno d'A SUPERFÍCIE DOS DIAS - superfície plena de profundidades em busca permanente do inaugural e que em muito lembra a voz inquieta da Água viva clariciana.

10 março 2024

Mangue


Em certo momento do filme "Moisés Alves: o fogo que antecede as cinzas" o autor do livro MANGUE diz que a escrita precisa estar na frequência da vida. É essa frequência que Alberto Pucheu traduz e monta em imagem e som, equilibrando intimidade e coletividade, poética e política, pois é esse ponto equidistante o que anima a obra/vida de Moisés Alves, autor de um de meus poemas de predileção, "Oferenda": "minha mãe disse / a partir de agora eu sigo / você fica", começa; "a partir de agora / faça sua ultrapassagem / ultrapássaro", termina e segue aceso em quem lê. MANGUE é composto por muitos versos que funcionam como mantras, orikis, aforismos de elogio ao ato de escrever/viver: "escreve-se / comigo tudo / que por algum motivo / bem justo não pode ter acontecido / estamos livres / apesar de não sairmos / dessa festa muito vivos", lê-se num veio de metalinguagem tradutora da verdade poética, transcriadora da vida. "É por revolta que faço / da alegria / arma pesadíssima / nunca fui a favor de morrer com vida", esses versos, distribuídos na estrofe com esses cortes, singularizando "revolta", "alegria", "arma" e "vida" dão o ritmo da pulsação dos poemas de MANGUE. "Dizer o isso da vida é o a que a poesia se dedica", observa Pucheu na apresentação do livro. Assim como Moisés Alves, que nasceu no Mangue, na rua Maciel do Baixo, a voz poética transita no Pelourinho, no Centro Histórico, biografemando sua história, que se desdobra na história de muitos do lugar, do mundo. Se "amor é quando químicas não impedem / nossa paixão" e "poema é aquilo / que atinge à queima- / roupa / então dói", o livro de Moisés Alves ama por tanto doer (tem corpo) e dói por tanto amar (tem alma). Sua poesia pulsa da fricção entre alma e corpo.

03 março 2024

O avesso da pele


"Esta história é ainda a história de um ferida aberta. É uma história para me curar da falta daquilo que você, repentinamente, deixou de ser". Dirigidas ao pai, as palavras do narrador de O AVESSO DA PELE dão o ritmo do profundo e complexo embate com seus sentimentos, experiências e relações interpessoais. Passando sua formação em revista, o narrador faz um acerto de contas consigo mesmo, registrando o que é viver num país racista. Nesse processo a literatura (as leituras do pai e do narrador) é fundamental. O AVESSO DA PELE mostra que é possível aprender com a alteridade, ou, melhor, fazer da outra pessoa uma fonte de entendimento de si. É assim que São Petersburgo se espelha (reflete e refrata) em Porto Alegre, por exemplo, e Dostoiévski é companhia. Esse procedimento de revelar leituras é presença importante na obra de Jeferson Tenório, autor atento em propor e desenvolver uma educação antirracista em quem lê. "Pessoas brancas nunca pensam que um menino negro pobre possa ter outros problemas além da fome e das drogas", escreve o narrador. Jeferson Tenório ilumina por dentro aquilo que torna alguém o que esse alguém é, num jogo entre influenciar e se deixar influenciar pelos fracassos e sucessos. Como o professor Henrique Nunes, pai do narrador e morto porque "era alvo de uma política de Estado", como depõe um aluno. "É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo", lê-se num dos muitos trechos dirigidos ao pai, um pai cuja luta foi "fazer a sua voz permanecer na cabeça deles o máximo de tempo possível". Dos alunos, dos leitores, o livro O AVESSO DA PELE de Jeferson Tenório permanece.