Lendo Canção
Desde o Projeto 365 Canções (2010), o desafio é ser e estar à escuta dos cancionistas do Brasil, suas vocoperformances; e mergulhar nas experiências poéticas de seus sujeitos cancionais sirênicos.
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16 março 2025
Peças íntimas
"O padre convidava alguns alunos: os mais aplicados, mais asseados, mais educados, para a aula de caligrafia gótica". A frase lida no começo do conto "A boa educação" encapsula os climas e as sensações que o livro PEÇAS ÍNTIMAS espraia ao longo de 17 narrativas tão luxuriosas quanto brejeiras. Tencionando cores de Almodóvar, voyeurismo de Pasolini e bastidores domésticos rodriguianos, Victor Hugo Adler Pereira apresenta um coro de vozes criadas entre a sacristia e o vestiário do quartel, compondo um sujeito integral-porque-fractal. "Em meio a essas vozes do passado, outros personagens se impuseram, esgueiravam-se entre memórias, distorcendo-as, refletindo-se na ficção", anota o autor. De fato, cada conto é um fotograma que vai lentamente montando o filme de uma vida desdobrada das questões enfrentadas pela geração do autor. "A loucura e o banimento espreitavam ameaçadores, os exemplos entre parentes confirmavam o perigo. (...) Os contos, em uma cronologia não muito rigorosa, apresentam cenas que provocam as indagações e dúvidas dos personagens, sobre questões como as relações de gênero e as definições identitárias, o envelhecimento e a morte", escreve Victor Hugo. O título do livro pulsa da expressão (algo) pudica do coroinha em estágio de nascente desejo: "Pensei no perigo de adentrar a sacristia com aquelas peças íntimas na mão - o pior, que nem me pertenciam", lemos em "Sursum corda! Habemus ad Dominum!". Padres, tios, homens de autoridade ou autoritários agem de modo irreversível na educação das várias vozes que lemos cantando em uníssono e sem moralismo no livro PEÇAS ÍNTIMAS.
09 março 2025
Oswald de Andrade mau selvagem
"Por um buraco da meia escocesa, verde e amarela, surge um pedaço caloso do meu pé velho que tanto andou". A anotação de Oswald de Andrade em seu "Diário confessional" (23/04/1951) dá conta de resumir bem o fim da trajetória de um dos mais anárquicos pensadores do século XX. Em OSWALD DE ANDRADE MAU SELVAGEM Lira Neto registra a vida e a obra desse sujeito que empreendeu o entendimento de nossa tropical melancolia. Se a biografia não revela nenhuma novidade sobre a persona satírica auto corrosiva do biografado, ela tem o mérito de passar em revista e organizar contextos e situações fundamentais para o pensamento plural de Brasil. Por exemplo, com rica pesquisa e senso de seleção, Lira Neto ajuda a entender porque a obra crítica e criativa de Oswald interessaria à Poesia Concreta, ao Teatro Oficina e à Tropicália. Há um investimento utópico (de ação!) na "pureza ingênua e [n]a revolta instintiva" da gente brasileira unindo ética e esteticamente cada um dos agentes desses movimentos. Mas Lira Neto não poupa o biografado, retratado também em suas contradições e canalhices. O que dizer do modo como Oswald tratou as mulheres com quem se relacionou? Herdeiro, Oswald penou encalacrado em dívidas; piadista, perdeu (quase) todos os amigos ao confundir "autenticidade" com grosseria; adepto do comunismo - "povo quer dizer o povo que trabalha, o povo que sofre, o povo oprimido e explorado", lutou até o fim (chegando a recorrer pessoalmente a Getúlio Vargas) para não perder privilégios de classe. Concomitantemente, o livro OSWALD DE ANDRADE MAU SELVAGEM mostra o pensador de ouvidos e olhos livres para o sambista Sinhô e para o palhaço Piolin; e de pé atrás contra o re-academicismo engendrado pelos então críticos universitários emergentes e excessivamente eurocentrados dos anos pós-Semana de 1922. Errado e errante, a obra de Oswald ainda carece de dentadas mais profundas. Pesquisas e livros como OSWALD DE ANDRADE MAU SELVAGEM é ótima leitura para quem queira devorar o antropófago cru ou cozido.
02 março 2025
A primazia do poema III
Na frase final da “Breve explicação” que abre o livro A PRIMAZIA DO POEMA III, Wilberth Salgueiro registra que “estes ensaios se articulam estreitamente à pesquisa que desenvolvo há alguns anos junto ao CNPq, em torno de poesia brasileira, testemunho e humor” e dá a dica daquilo que o leitor irá encontrar ao longo dos textos. Na melhor tradução da proposta oswaldiana – amor / humor, o ensaísta experimenta a prática crítica que convoca a cumplicidade de quem lê. E nisso age o humor, a graça de quem maneja com rigor e vontade as referências teóricas que, no caso de Wilberth, se baseiam, principalmente, nos métodos propostos por Antonio Candido e Theodor Adorno. Com Candido, Wilberth nos lembra que texto é contexto e forma é conteúdo, entre outras máximas do mestre; com Adorno, ele nos aponta que se a arte “não fosse, sob alguma mediação qualquer, fonte de alegria para muitos homens, não teria conseguido sobreviver na mera existência que contradiz e a que opõe resistência”. E é essa alegria (a força maior) o que sentimos durante a leitura dos textos de Wilberth. No meu caso, é sempre a página (à esquerda, note-se) “Sob a pele das palavras” a que primeiro procuro e leio quando abro o jornal Rascunho, mensalmente, onde os textos agora recolhidos em A PRIMAZIA DO POEMA III foram publicados. Wilberth trabalha acionando competências, peculiaridades e especificidades de cada poema. Sem subestimar o leitor, pelo contrário, apresentando a beleza do sensível compartilhado no ato de leitura.
23 fevereiro 2025
A transparência da carne
Verbo é a matéria prima da poesia de Carlos Eduardo Ferreira de Oliveira. Do primeiro – “E o Verbo fez-se carne, luz em nós” – ao derradeiro verso – “à irrelevância”, A A TRANSPARÊNCIA DA CARNE é livro que, a princípio, exigiria de quem lê a leitura prévia de boa parte das obras dos poetas do século XX. No entanto, a maturação das referências é tão bem realizada que “de tanto ouvir estrelas poderosas, / sigo o sonho das almas dolorosas”, lê-se no terceiro poema, indicando o trabalho de devoração poética e teórica que o livro elabora. Os contrastes e as sobreposições de luz e sombra, som e silêncio (“quase jazz”), rocha e nuvens, cortes bruscos e preciosos enjambements (“silentes / sussurros, orações, gemidos”), aceleração aliterante e desaceleração assonante são elementos fundamentais do jogo lúdico da poesia de Carlos Eduardo. Nesse jogo que eternamente retorna ao éden, ao princípio do poetar, do uso primal do Verbo, a palavra é a “serpente” – “um prisma cuja cor ilude, abisma”. E o Verbo se revela diamante de orvalho, de vento, ardido pelo poeta. Forma é conteúdo, som é sentido e Carlos Eduardo faz de A TRANSPARÊNCIA DA CARNE um lugar em que a palavra se pensa, repensa, pende, enquanto carnação do poético.
02 fevereiro 2025
O outro pé da sereia
02 de fevereiro. Dia de Iemanjá. Um bom exemplo literário de permanência da resistência dessa orixá vem do livro O OUTRO PÉ DA SEREIA, de Mia Couto, quando este trata da perturbação que a estátua da virgem Maria causa entre os escravos. Eles associam a imagem à senhora das águas – Kianda. É quando Dia critica a submissão de Nimi Nsundi perante a Virgem portuguesa que este revela: "Os portugueses dizem que não temos alma. Temos, eles é que não veem. A nossa luz, a luz dos negros é para eles um lugar escuro. Por isso, eles têm medo. Têm medo que a nossa alma seja um vento e que espalhamos cores da terra e cheiros do pecado. É essa a razão porque D. Gonçalo da Silveira quer embranquecer a minha alma. Não é a nossa raça que os atrapalha: é a cor da nossa alma que eles não querem enxergar. (...) aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chamam a isso de baptismo. Eu digo que estou entrando na casa de Kianda. A sereia, deusa das águas. É essa deusa que me escuta quando me ajoelho perante o altar da Virgem", lemos. Aqui se revela a rebelião pelo jogo, o usar (apropriar-se) dos signos do outro, antropofagicamente, dentro do conflito cultural. O sincretismo, mais do que submissão ou negação, ressalta a astuta compreensão teológica, cultural e social. O sincretismo é instrumento de afirmação identitária. “De todas as vezes que rezei não foi por devoção. Foi para me lembrar. Porque só rezando me chegavam as lembranças de quem fui” (idem). E assim percebemos que os mitemas das sereias não chegam para nós apenas vindos da mitologia grega, onde habitavam os rochedos entre a ilha de Capri e a costa da Itália, filhas do rio Achelous e da musa Terpsícore. A semiologia sirênica precisa ser entendida a partir do complexo semiótico que a constitui hoje. Europa, África e Iara nos fornecem os cantos do mundo ancestral a ser ouvido.
26 janeiro 2025
Cantáteis
Desde o primeiro disco - "Aos vivos" (1995), a poética de Chico César é marcada pela justaposição da experimentalidade da poesia de vanguarda (vide as referências a Mallarmé) e da espontaneidade do repente (vide os versos de "Beradêro"). Essa quebra na hierarquia do que se supõe "sofisticado" e "popular" promove uma poética autêntica, erudita, autoral. Mais conhecido como poeta da canção, Chico César registra em CANTÁTEIS o mesmo gesto de romper as fronteiras entre escrita e voz. No longo poema composto por 141 estrofes de 11 versos heptassílabos (ou redondilhas maiores - sete sílabas poéticas) o autor tece considerações acerca do que de folclórico resiste à cidade moderna, aos tempos modernos. E vice-versa. A voz poemática em “vida de cigania” entre Paraíba e São Paulo, retirante, transeunte e cordelista canta de um lugar imaginário e faz isso num erótico jogo de sedução com a musa. O livro é ilustrado com xilogravuras de João Sanchez, adensando o tom da literatura de cordel da obra, e acompanhado por CD com a voz de Chico declamando os versos que citam Barthes, Clarice, Govinda, Frida. Aliás, César cita numa mesma estrofe Sílvio Santos e Ezra Pound, noutra cita Schoenberg, Dominguinhos e Oliveira de Panelas, e constrói uma relação horizontal comparando sentimentos incomparáveis no nível da razão. Os quiasmos – “Com um carinho do caralho”; “brasa dormida e fogosa”; “som de ouro e fina prata”; “ruído ruim fica bom”; “os Andes, os abricós”; “lucidentas loucuras”; “margarina com canção”; “enormidade pequena”; “claridade obscura”; “mulher fêmeo”; “homem macha”; “a doçura da amiga / a libido da amante”; “cactos delicatessen”; “Lilith apascentada” – se unem a neologismos – “aquelestra”; “bartoquesas e hermetices”; “fiquitices”; “dendendengo”; “brinbrincagem”; “signagem frainxus”; “excitabundo”; “paixoneira”; “musassim” – para compor a trama neobarroca de carnavalização do tempo: “paro penso repenso reparo / repasso pasado e futuro / (…) / representando o presente / preteritei guarnicês / guaxinins e tietês / que mordem e afogam gente”. Sejam nas canções, seja na poesia escrita, Chico César vem inscrevendo uma bioescrita no imaginário poético nacional: “digo isso digo aquilo / digo tudo que se disse // (...) // quero que o mundo se acabe / se não disser o que sinto”. Ouvinte, “zaratustra-zoroastro”, o poeta satírico diz o que se disse, rearranja o dito, o sabido, o ouvido e afirma-se grande na linha da poesia popular. Os "cantos elegíacos de amozade" do livro CANTÁTEIS é excelente prova disso.
29 dezembro 2024
Mutações do sensível
MUTAÇÕES DO SENSÍVEL é um de meus livros de cabeceira, ou seja, não sai da mesa de trabalho. Aqui o professor Paulo Tarso Cabral de Medeiros apresenta e defende interpretações em torno das questões de rock, rebeldia e mpb no contexto pós-1968, quando a canção popular precisava driblar a censura da ditadura militar com inventividade, oclusão proposital da metáfora e pulsão de vida; quando o cantor de rádio incorporou o ethos de poeta; quando "o lixo da sociedade industrial era o luxo santificado pelos hippies". Foi em MUTAÇÕES DO SENSÍVEL que li pela primeira vez o diagnóstico feito por Allen Ginsberg: “a poesia no sentido tradicional acabou. Ninguém se senta mais na poltrona da sala de estar para ler. O Rock é a nova poesia, com os Beatles de 'I am a Walrus' e as letras de Bob Dylan. É um retorno à poesia dos valores menestréis". As interpretações ensaísticas de Paulo estão calcadas em pesquisa, leitura e crítica de quem ouve com ouvidos abertos a produção musical da contracultura brasileira de Milton Nascimento, Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso. "O ser do poeta liga-se tenuamente aos próprios adjuntos, no colo mesmo da indeterminação. Por isto, lugar e tempo são distribuídos segundo o arbítrio e as livres-associações que o inconsciente - libertado da linearidade e da máscara do ego - deixa corporificar", lemos a certa altura do livro. Nesse contexto, o palco é extensão da vida, da rua, “lugar de festa, símbolo de contestação e templo de oração, investigação e autoconhecimento”, escreve o professor. Essa sensibilidade nova, “este conjunto de lutas, da qual a canção que aglutina os motes da contracultura participa, obteve impulso criador suficiente para motivar o homem urbano e ocidental a reincetar novas viagens, reavaliar formas de luta e inventar um jeito novo e mais contemporâneo de tratar as questões urgentes, incorporando o deslizamento do solo contemporâneo – que assim deixa de estarrecer e petrificar-se numa tradição”. Isso move artistas e o autor de MUTAÇÕES DO SENSÍVEL.
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