Pesquisar canções e/ou artistas

28 setembro 2025

À roda de Antônio Vieira

Não é exagero dizer que é impossível estudar as letras coloniais do Brasil sem passar por um ou outro texto da professora Ana Lúcia Machado de Oliveira. “Breves anotações sobre a musa praguejadora da ‘época Gregório de Matos’”, por exemplo, é texto que indico como introdutório e imprescindível sobre o sátiro baiano. (Não sai da bibliografia de meus cursos sobre poesia). Assim como “À roda da eternidade: deslocamentos figurais do Uterus Mariae na sermonística vieiriana”, sobre o “Sermão de Nossa Senhora do Ó”, do padre Antônio Vieira. Os textos da professora equilibram erudição e pedagogia (o desejo de comunicar, partilhar, característico de quem é mestre – não à toa, as salas de aula de Ana Lúcia estão sempre lotadas). Portanto, é de se louvar que, boa parte dos textos que até agora só eram encontrados espalhados por revistas acadêmicas, finalmente, apareça reunida no livro À RODA DE ANTÔNIO VIEIRA. Sem subestimar quem lê, Ana Oliveira comunica temas, conceitos e práticas complexas, principalmente, sobre a instituição retórica. Mas não apenas, também, sobre o Brasil, ou seja, sobre a constituição das letras no Brasil. Por exemplo, como explicar o paradoxo sustentado por Vieira em que “o corpo finito da Virgem pode conter em si o espaço inteiro do mistério e do infinito”? Ana explica, recorrendo ao que há de mais sofisticado na crítica e acessando “uma linguagem cujas sonoridades exprimiam a ideia das ações e das coisas”. “Ao longo da argumentação vieiriana, o O [de Nossa Senhora do Ó] se desdobra em uma floração de figuras circulares, definindo-se sucessivamente como círculo, interjeição, ômega e ômicron, roda, cifra ou número, pronome, partícula apostrofante, ventre fecundado”, escreve a professora, que aponta a estratégia do padre no “desdobramento de imagens circulares e na proliferação do sentido”. Cito apenas uma das várias miradas críticas desenvolvidas nos textos que compõem À RODA DE ANTÔNIO VIEIRA, livro que toda biblioteca de quem se interessa por literatura no Brasil merece e precisa.

24 agosto 2025

Canção e performance em língua inglesa


Quem estuda e pesquisa performance artística sabe da dificuldade de desenvolver interpretações críticas e teóricas a partir de uma linguagem que prima pela não apreensão. A performance existe no seu instante-já, na experiência irreproduzível. Como só podemos lidar com arquivos, seja o livro, seja o áudio, ou o vídeo, o trabalho passa por também restituir o tempo da performance. E isso requer imaginação, sensibilidade, contextualização. Em diálogo com a crítica especializada, notadamente os textos de Ruth Finnegan, os trabalhos apresentados no "Ciclo de conversas sobre performance e canção em língua inglesa" e agora reunidos em textos no livro CANÇÃO E PERFORMANCE EM LÍNGUA INGLESA: primeiro ciclo de conversas, coorganizado por Marcela Santos Brígida e Lucas Leite Borba, versam com originalidade em torno de performances ao vivo de artistas da pop music e imersos na indústria cultural. Temos um notável exercício de recepção e leitura das obras de Beyoncé, BTS, FKA Twigs, Harry Styles, Lorde, Miles Cyrus, Mitski, Paramore, Stormzy, Taylor Swift. Os textos desempenham o exercício raro de restituição da experiência sensorial, ou seja, de “repensar a memorização como forma de aprendizado e de apropriação, opondo-se à ‘decoreba’”. Se no texto “O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?”, Ruth Finnegan anota que “a performance cantada é evanescente, experimental, concreta, emergindo na criação momentânea dos participantes”, essa fricção com o agora, potencializada pela relação de fã presente na base das autorias dos textos do livro CANÇÃO E PERFORMANCE EM LÍNGUA INGLESA: primeiro ciclo de conversas, propõe renovados ares aos estudos na área dos Estudos da Performance e dos Estudos da Canção, exatamente por ter a formação discente como seta e alvo. Não à toa, o trabalho é resultado da disciplina eletiva “Interrogating the Lyrics: from Alex Turner to Taylor Swift”, ministrada pela professora Marcela Santos Brígida, do Instituto de Letras da UERJ. Concordo com o que a professora diz no posfácio, "saber que a universidade pública comporta uma iniciativa como esta eletiva, (...), me traz não apenas alegria, mas também esperança criativa".

17 agosto 2025

Teorias da canção


Em TEORIAS DA CANÇÃO, Marcos Ramos apresenta uma espécie de história concisa da crítica de canção popular brasileira. Como bem diz o subtítulo do livro, lemos "percursos, fundamentos e metodologias - uma introdução" de como a canção popular foi se tornando objetivo de pesquisa e matéria prima para o pensamento crítico do Brasil. Para tanto, o autor faz resenhas expandidas de textos essenciais: "Ensaio sobre a Música Brasileira" (1928), de Mário de Andrade, "Pequena História da Música Popular" (1974), de José Ramos Tinhorão, "Balanço da Bossa e Outras Bossas" (1968), de Augusto de Campos, "O som e o sentido" (1989), de José Miguel Wisnik, "O Cancionista: Composição de Canções no Brasil" (1995), de Luiz Tatit, e "Letras e Letras da MPB" (1988), de Charles Perrone. Ao mesmo tempo em que cita quem deu continuidade crítica a essas abordagens: Oneyda Alvarenga, Heloisa Teixeira, Santuza Cambraia Naves, Cláudia Neiva de Matos, Liv Sovik, entre vários outros nomes. De modo bastante elucidativo, Marcos Ramos aponta o que considera potencialidades e limitações em cada abordagem, sempre ressaltando que muitos dos problemas apontados diz mais sobre o tempo histórico e ao objetivo específico de cada proposta, do que às competências dos autores. Interessante perceber como cada abordagem fricciona na seguinte, dando conta de circundar objeto de análise tão complexo quanto a canção popular. O autor destaca a importância do rigor analítico e da sensibilidade estética de quem se destina à interpretação do amálgama que a canção é e foi sendo interpretada e consolidada pela crítica: "não mais como um texto literário musicado, mas como uma forma estética híbrida e autônoma, cuja expressividade se realiza na confluência de códigos distintos e cuja complexidade exige escuta atenta e aparato crítico plural", escreve o autor. O livro TEORIAS DA CANÇÃO é ótimo material didático para manter sempre à mão.

10 agosto 2025

Será que fui eu?


"Existirmos: a que será que se destina?". Enfrentar a pergunta feita pela canção popular requer coragem e ação. "Hoje estou com 73 anos e esta história começou quando eu tinha 5 anos, em 1935", escreve Alzira Silvéria, autora do livro de memórias SERÁ QUE FUI EU?. Alzira se apresenta como "Uma menina negra, sem pai (porque não o conheci), sem irmãos, de origem muito humilde, mas com muita fé em Deus e muita coragem, que enfrentou a vida confiando que o dia de amanhã seria melhor do que o de hoje". A fé em Deus se traduz na vida em comunidade cristã, espaço de sociabilidade de muitos brasileiros; e a esperança no dia de amanhã se revela na memória do carnaval de rua do Rio de Janeiro e na educação sentimental via Rádio Nacional, bem como no racismo, na exploração. Enquanto narra a própria história, Alzira reflete sobre quem se convence de quem se converte à fé e apresenta um retrato singular de muitas brasileiras: "Devo a Deus e a todas as mulheres negras o apoio, o conforto e o bem-estar que me permitiram sobreviver e criar minha filha, sozinha, em São Paulo", escreve. Essa sinceridade gera uma forte relação de intimidade lírica com quem lê. Nascida em São Lourenço (MG), é da acolhedora Marília (SP), cantada num bonito poema estruturado em redondilhas, que Alzira pergunta e escreve seu livro SERÁ QUE FUI EU?, convidando-nos a, conhecendo sua história, conhecer a de várias mulheres que migram, pelos filhos, em busca de trabalho, de melhores condições de vida, e, assim, inscrevem anonimamente seus nomes na história do país. "Ia do Parque Dom Pedro até a Praça Ramos de Azevedo, com sol, chuva, frio ou calor, e, às vezes, ainda fazia hora extra! Hoje penso: - Será que fui eu?", questiona. Transitando entre a primeira e a terceira pessoa do singular, ou seja, observando-se também enquanto personagem protagonista, Alzira Silvéria, cuja narrativa começa com um sugestivo fabular "Era uma vez", mostra a construção da voz de si, de tantas.

03 agosto 2025

Tropicália em tela


O livro TROPICÁLIA DEM TELA nos lembra que a Tropicália foi mais do que um movimento (ou momento) musical e fez da TV, então em amplo processo de penetração nas casas da classe média, o suporte ideal para a difusão de sons e imagens de uma nova poética, feita de desbunde e politização do corpo. O gesto crítico da Tropicália tencionava os polos - apocalípticos x integrados - com que a inteligência brasileira da época pensava o estado de coisas no país. Rafael Zinzone maneja tópicos de cultura, política e mercado para questionar em 2025 "Em um Brasil sob tensão com novos discursos e formas autoritárias, onde estaria a rebeldia dos dias de hoje?". A pergunta aprofunda o olhar para o contexto da Tropicália, final de 1960, quando o desbunde assumido por Gal Costa, Caetano Veloso, Rita Lee, Gilberto Gil, Tom Zé e demais agentes implicados devorava o meio - a TV - para desvelar os absurdos do sistema opressor, de uma ditadura que usava a mesma TV para neutralizar o dissenso e difundir a normalidade desejada pelas pessoas da sala de jantar. Performando de dentro, por dentro da TV, os tropicalistas convocavam novas formas de viver, sua estética exigia olhos para ver além da superfície. O aparente otimismo tropicalista encapsulava profunda crítica à tragicidade do cotidiano brasileiro. "No caso específico deste estudo, apostei na hipótese de um momento bastante particular na história da televisão brasileira. Mesmo que Divino, maravilhoso não terminasse conforme programado, sendo interrompido pela prisão de Caetano e Gil, trago o exemplo do programa como forte expressão de dissenso. Se assim não o fosse, dificilmente as figuras tropicalistas com maior exposição midiática teriam sido encarceradas pelo Estado", escreve Zincone.

27 julho 2025

Poemas do amor


O poema "saudades" - "assim / saudades sim / simples / como um brinco tupiniquim / um coco de roda / cirandas voltas de tu em mim" - está entre meus poemas de predileção. Publicados no livro Barrocidade (2003), os versos aliterados em /s/ figurativizam a mensagem, além de serem exemplar da poética de Amador Ribeiro Neto - naquilo que essa poética engenha ao presentificar o que a automatização da vida ordinária apaga. Transitando nas cidades, o eu poemático de Ribeiro Neto sacode memórias do prazer e convida a sensibilizar o corpo (do poema, de quem lê). Em POEMAS DO AMOR esse eu poético singulariza a pulsão de vida que há no sexo. Como um eco de "saudades", lemos no começo de "CADÊ": "busco / tu / nas cirandas / das buzinadas das ruas // nos cocos / das noites / cruas". Sem idealizações moralistas, essa "busca" se desdobra em versos como "deu / volta por cima / por baixo / de lado / atrás / entre // deu / até / parar / de / querer / dar / e / ter / vontade / de recomeçar", em "VOLTA". Novamente e sempre, a circularidade, o trânsito, o desejo comichando e fazendo o sujeito ir indo (por que não?). Quem lê com atenção percebe que os versos de POEMAS DO AMOR trazem embutidos o paideuma de Amador, poeta que transa com, transa os autores de sua predileção. Em "CADÊ", Manuel Bandeira - "bela bela bela"; em "VOLTA", John Donne - "Before, behind, between, above, below". Esse paideuma está condensado no poema "Zé", dedicado a José Celso Martinez, em que os significantes proliferam verbivocovisualmente aquilo que interessa ao eu poemático de Amador Ribeiro Neto: o sumo (da língua), o suadouro (da linguagem), o simples (da palavra). Nessa concretude está o amor de quem "ia / fuder / com / a própria / vida // mas // foi pra sauna / arrumou / trabalho / casa / comida // voltou sarado / & / com gato / malhado", como lemos em "SAUNA". "No livro de Amador Ribeiro, nada de fissura ou frescura, a poesia é do gozo, o sôfrego desejo se realizando. (...) O que importa ao poeta é que a trama dos corpos não se arrefeça em dócil descrição, aqui a libidinagem desregrada do verso é a lei", escreve Jardel Dias Cavalcanti. Sem recalque, essa trama poética implode hipocrisias e outras tiranias do desejo controlado. Melhor do que isso só mesmo "joão você eu / eu você joão / você joão eu" circulando entre versos sem parar.

20 julho 2025

Performance


"A performance não é apenas uma forma de arte, uma intervenção ativista, um sistema de gestão empresarial, ou um exercício militar. Ela fornece uma lente e uma estrutura para compreender quase tudo". A nota lida a certa altura do livro PERFORMANCE sintetiza o modo como Diana Taylor entende e trata a palavra, o conceito e o ato. Digo "nota" porque o livro é apresentado como se performasse um "caderno de anotações", com uso de negritos, caixas altas e outras formas de destaque e interjeição. O livro é repleto de imagens (é possível documentar o ato performativo?) de performances que reforçam a ideia de que "vivemos em um mundo saturado de modelos e instruções para o sucesso: o como da performance". Nesse sentido o corpo de quem performa é suporte e arma contra o controle de governo, contra essa saturação de imagens que "circulam repetidamente até perderem toda sua força política". O corpo é lugar da performance, da intervenção, da ação - individual e coletiva, já que, por exemplo, a América Latina "só é visível por meio de seus clichês, da natureza de suas repetições performativas". Fica evidente desde o começo da leitura que o livro PERFORMANCE não está interessado em debater apenas a linguagem artística consolidada no mundo das artes dos anos 1960/70 e recorrente até nossos dias. Diana Taylor não cita estudiosos do tema como Paul Zumthor, Jorge Glusberg, Renato Cohen, Ruth Finnegan. À autora interessa a performance que intervém na vida, que, desautomatizando o olhar, promove crítica e justiça social. Todos os exemplos do livro vão nessa direção e conclui que "a busca por justiça é uma performance de longa duração. Embora as táticas e as circunstâncias mudem com o tempo, é a resistência e a perseverança que se mostram eficazes. A luta por justiça pode levar uma vida". Autora do livro "O arquivo e o repertório", em PERFORMANCE, Diana Taylor nos fornece importantes tópicos para pensar que "o arquivo também pode performar", já que "as performances operam como atos vitais de transferência, transmitindo o saber social, a memória e o senso de identidade por meio de ações repetidas". As análises sobre reperformance em contexto de "capital cultural", os comentários sobre a manipulação das pautas progressistas pelo capital e o elogio à "virada epistêmica causada por objetos corporificados de análise" são notáveis.