31 dezembro 2023

Discos de 2023


Em ordem aleatória, os discos de 2023 que mais ouvi, li, escutei, cantei junto, estudei:
 

Fabiana Cozza - Urucungo; Jards Macalé - Coração bifurcado; Ava Rocha - Nektar; Filipe Catto - Belezas são coisas acesas por dentro; Omar Sosa e Tiganá Santana - Iroko; Makely Ka - Triste entrópico; Mahmundi - Amor fati; Ogi - Aleatoriamente; Mateus Fazeno Rock - Jesus ñ voltará.

A campa é outro berço


No poema “A lição de poesia”, João Cabral de Melo Neto encena a “luta branca sobre o papel” e manipula “as vinte palavras recolhidas/ nas águas salgadas do poeta”, a fim de, com o uso da metalinguagem, indicar o “funcionamento” da “máquina” de escrituração. “Densidade” e “evaporação” são palavras usadas por Melo Neto, e que recolho aqui para ler o livro de contos A CAMPA É OUTRO BERÇO, de Bruno Lima. Se para o dicionário “densidade” é uma propriedade física que relaciona a massa de um material ao volume que ele ocupa, Bruno Lima justapõe e sobrepõe uma profusão de autores, leituras e conhecimentos da vida literária e do trabalho com a literatura em seu conjunto de contos. Mas essa densidade do saber individual só se realiza no procedimento de “evaporação” desse saber, ou seja, no trabalho de tragar e traduzir leitura em escrita, quando aquilo que seria do “iniciado” é apresentado (e presenteado) ao “leigo”. E é isso que Lima entrega ao seu leitor. Esse, por sua vez, é o tempo todo cobrado e instigado a ler mais, saber mais, para além daquilo que está presente (em presença) nos contos: Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Lima Barreto, Iessiênin, Kafka, Rubem Fonseca, Marcelino Freire, Sérgio Sant’Anna e, o mais presente, Machado de Assis, entre outros, transitam pelos 16 textos, irrigando a sabedoria do autor e a imaginação do leitor. Imaginar ainda é uma competência da literatura? Essa pergunta atravessa A CAMPA É OUTRO BERÇO. Seja nos exercícios de formas e tipos de escrita – carta, notícia jornalística, diário, testemunho, autoficção; seja no conteúdo e nas reflexões dos narradores.

24 dezembro 2023

Sodomita


No livro Cultura e opulência do Brasil (1711), André João Antonil registrou que "se a terra, obedecendo ao império do Criador, deu liberalmente a cana para regalar com a sua doçura aos paladares dos homens, estes, desejosos de multiplicar em si deleites e gostos, inventaram contra a mesma cana, com seus artifícios, mais de cem instrumentos para lhe multiplicarem tormentos e penas". Tratando "Do que padece o açúcar desde o seu nascimento na cana, até sair do Brasil", o livro alerta para o mau uso das coisas do Criador, incute a culpa. Essa mistura entre Estado e religião é marca do Brasil colônia, porém, seus miasmas chegam até nossos dias. Vide a frágil laicidade do Estado. É o que nos leva a pensar o livro SODOMITA, de Alexandre Vidal Porto. Ficcionalizando a história de Luiz Delgado, degredado de Lisboa para o Brasil, sob a acusação de sodomia, Porto repara e alerta. Se no livro de 1711 lemos o famoso adágio de que o Brasil “é inferno dos negros, purgatório dos brancos, e paraíso dos mulatos e das mulatas”, Porto revela o que "é da nossa natureza" humana: o desejo, as "causas do coração". Anos mais tarde, novamente degredado, pelo mesmo "crime", Delgado vai aprender em Angola a respeitar sua natureza. (Muito antes de Chico Buarque e Edu Lobo questionarem "será que o deus que criou nosso desejo é tão cruel / mostra os vales onde jorra o leite e o mel e esses vales são de Deus"). Aliás, o trânsito da personagem entre Lisboa, Bahia e Angola, "onde se destina à penitência dos pecadores mais vis", é, por si, um ótimo motivo para a leitura do livro, pois revisa o ethos colonial, as atrocidades feitas em nome de Deus. Além do rico trabalho com a coloquialidade da língua escrita, restituindo um uso contextual e histórico de termos e expressões - o que adensa a tensão entre a ironia crítica do escritor de hoje em relação ao patético das situações "criminosas". Por exemplo, o medo da "efusão de sêmen intravaso", o que agravaria o "comportamento desvairado" de deitar com outro homem. De fato, ao fazer uso do próprio corpo para fins de deleites e gostos pessoais, Luiz Delgado pena e goza no Brasil do século XII, lugar para onde os europeus vinham para enriquecer ou purgar "crimes contra a natureza" divina: o purgatório do branco. Naquele tempo, a sodomia era "crime" gravíssimo. Cronistas da época comentam isso. Nos poemas atribuídos a Gregório de Matos (1636-1696) constatamos o escárnio de nosso sátiro sobre o tema: no poema "Marinícolas", paródia da canção "Marizápalos a lo humano", de López de Honrubias (1657), referindo-se possivelmente a Nicolau de Tal, provedor da Casa da Moeda em Lisboa, daí o termo "marinícolas" = maricas + Nicolau, Gregório teria cantado: "(...) Tem por mestre do terço fanchono / Um pagem de lança, que Marcos se diz, / Que se em casa anda ao rabo dele, / O traz pela rua ao rabo de si". Essa descrição diz muito do tom como a relação entre Delgado e Doroteu Antunes é registrada no livro SODOMITA. Alexandre Vidal Porto é primoroso em forjar uma linguagem que leva quem lê a rir do ridículo das acusações, quando, "nas igrejas, acusavam pecadores de despertar a ira divina e da propagação da peste, e os padres maldiziam os excessos tenebrosos". O uso de adjetivação moralizante serve bem a esse propósito de pastichizar a crônica seiscentista, ao mesmo tempo em que finge isenção e neutralidade. Por fim, se o mancebo Doroteu chega a recorrer ao padre Antonio Vieira, superior dos jesuítas, para se livrar do domínio do demônio, merece destaque a personagem Florência Dias Ferreira, a donzela e amiga esposa de Luiz Delgado. E nisso também o livro é importante: no diagnóstico da misoginia, já que o horror da religião é e está no feminino, na mulher.

17 dezembro 2023

Da dificuldade de nomear a produção do presente


Há livro que já nasce destinado a não sair do horizonte de quem pesquisa determinado tema. É o caso de DA DIFICULDADE DE NOMEAR A PRODUÇÃO DO PRESENTE, de Ieda Magri. Uma coletânea de textos da autora. Publicado anteriormente em revista acadêmica, o texto "A literatura como arte contemporânea" não sai de minha mesa de trabalho, tamanha a revisão conceitual e metodológica proposta. Assentado no livro, junto (em camaradagem) com outras miradas precisas, o texto de Ieda se expande. Leitora crítica de Ludmer, Garramuño, Rancière, Aira, Piglia, Bolaño, Kamenszain, Ieda Magri compartilha reflexões que giram em torno do prazer do texto - prazer que revolve a crítica e a teoria literária. "Talvez seja esse grão de entendimento o que alinhava os textos e põe em conversa os narradores e os críticos que aqui figuram, sem, no entanto, que este seja um livro sobre uma literatura que se quer crítica", escreve a autora na apresentação. Essa leveza calvina atravessa os textos de DA DIFICULDADE DE NOMEAR A PRODUÇÃO DO PRESENTE, título capcioso, pois, ao falar da dificuldade de nomear, nomeia, ou sugere, o presente enquanto "produção". E cada texto de Ieda rastreia isso, ou seja, o contato entre experiência e repetição, com todos os miasmas da modernidade que se impõem no fugidio agora, de uma "estética contemporânea que aposta no não feito". Há algo mais leve do que definir "poética" enquanto "exercício de uma crença do que seja a literatura e do papel que cada escritor tem na série literária, consciente da posição que quer ocupar"? A eficácia da definição breve só se realiza porque elaborada por mãos hábeis na crítica e na escrita literária, marca de Ieda Magri. E "não se trata de simplificar, mas de devolver a complexidade", ela escreve. Por essas e outras, DA DIFICULDADE DE NOMEAR A PRODUÇÃO DO PRESENTE é livro para deixar sobre a mesa, ler, reler, consultar, citar, levar para a sala de aula.

10 dezembro 2023

Raio


Em RAIO Eucanaã Ferraz tece refinada trama de leituras, desdobrando o moderno hoje, entre Gullar e Cecília. Outrossim, "o fogo / queimou tudo. só não queimou a pedra", lê-se. Eis Eucanaã dizendo onde filtra sua poética: o prisma Cabral. De fato, RAIO é um livro em que os poemas compõem "um [livro] jovem cravejado de cristais". O verso diz mesmo bastante das imagens que se aglomeram e se encadeiam ao longo da leitura; e do procedimento de repetir (em diferença) palavras e expressões de um poema no outro. Essas anáforas insuspeitadas agem a serviço da composição do livro como um poema único, cheio de arestas, mas bordado sobre instantes. E assim os poemas se contaminam, sacralizando o cotidiano - as muitas referências bíblicas sustentam isso. Misturadas às sensações líricas, essas referências estimulam elucubrações sobre o existir: "mal entendo a língua / com que os homens falam / (finjo digo calo) / como entenderia / o que diz um peixe". A ausência de vírgulas dá fundamento e "tudo se baralha", numa paisagem do Rio de Janeiro em pleno verão. O poema "Barcarola" talvez seja o núcleo desse artifício. Cor mais alegre e mais triste, o verde novinho em folha se espraia pelos poemas e anima a tropical melancolia de Eucanaã Ferraz. Outra referência: as redondilhas de "Na feira" surge como um contracanto - "me aproximo mudo" - ao cantador cego do "circuladô de fulô" haroldiano. "Seria cego se eu não lhe reclamasse os olhos?", lê-se noutro poema. A estrutura de cada poema é um exercício formal a parte, dentro, entre: baladas, madrigais, odes, elegias desautomatizam o olhar, ou significa o ordinário - "instante mais bonito este quando o olho não funciona como se espera". Prismático, RAIO convida quem lê a rever.

03 dezembro 2023

Mela cueca


O livro MELA CUECA recolhe "as canções de amor que o mundo esqueceu". Com sua característica verve kitsch e tropical, Zé Pedro lista e comenta alguns dos motivos desse esquecimento, que é duplo: das canções e do amor. O diagnóstico diz bastante de nossos dias de hoje, com a emergência dos discursos de ódio e, ao mesmo tempo, das patrulhas ideológicas. Curador, produtor, DJ, Zé Pedro faz do livro, em que mescla memórias e biografemas, um elogio e uma defesa de um tipo de canção em desuso (?): aquelas que tocavam nas estações AM, "aquelas baladas de letras açucaradas com arranjos musicais gravados ao vivo e, muitas vezes, com o artista colocando a voz ao mesmo tempo", escreve. [Hoje deslocadas para o piseiro, ou o arrocha? Ele não chega a comentar, pois seu foco são as pistas de dança da noite carioca e paulista]. Antes de expor seu "guia de faixas", Zé Pedro escreve que "as canções listadas nesse livro vão até o primeiro ano da década de 1980, quando os teclados eletrônicos, ombreiras e o gel new wave para cabelos rebeldes alteraram a fórmula do romantismo no mundo". E essa é a profissão de fé de alguém que, pelo que se depreende da leitura de MELA CUECA, vive de amor e música.

26 novembro 2023

As duras penas


Tive o privilégio de ler AS DURAS PENAS - O ÍNDIO NA LITERATURA E A LITERATURA INDÍGENA quando ainda era a tese de doutorado de Lívia Penedo Jacob. Tendo merecidamente recebido o Prêmio Capes de Tese, o livro reúne 10 ensaios sobre representação e autorrepresentação da alteridade indígena, esse conceito guarda-chuva de algo que não tem governo, nem nunca terá, de uma singularidade prismática impossível de ser apreendida pelos filtros iluministas e românticos que ainda hoje se impõem no debate acadêmico em torno da ética e da estética na literatura. Outrossim, "enquanto a antropofagia pretendida por Oswald e Mário de Andrade buscava a miscigenação cultural, deglutindo e ruminando inclusive a escrita etnográfica, assistimos, na atualidade, à participação efetiva dos povos originários nesse fazer poético", escreve a autora. Unimúltiplo, o conceito "indígena" (e seu implícito "índio") é abordado por Lívia enquanto revelação daquilo que, não por ser exótico, é o óbvio; é nós. Para tanto, o foco na oralidade é fundamental. Desprezada por certa linha da Academia, exatamente porque impossível de ser domada, domesticada, civilizada, a pesquisa em torno da oralidade faz do livro AS DURAS PENAS, com toda ambiguidade que esse título sugere, uma referência à compreensão do gaio saber. Destaque-se o manejo de perspectivas e o diálogo estabelecidos com diversos e diferentes autores canônicos e de hoje.

19 novembro 2023

Como organizar uma biblioteca


Despretensioso, como a grande maioria das boas obras, COMO ORGANIZAR UMA BIBLIOTECA é uma leitura leve e reveladora sobre os modos de ser e estar com os livros - esse fetiche: "os livros são objetos transcendentes / mas podemos amá-los do amor táctil", canta Caetano Veloso; "o fetichismo, para ser saudável, implica o uso, o contato", escreve Roberto Calasso. E o autor vai elencando seus livros de formação, de cabeceira, de trabalho, revelando muito de si, inscrevendo sua vida através das leituras. Fatos históricos se misturam às páginas que vão passando, não à margem, mas, pelo contrário, junto, com, dentro da vida. Esse baralhar é a potência do livro COMO ORGANIZAR UMA BIBLIOTECA, já que "a organização de uma biblioteca nunca encontrará - aliás nunca deveria encontrar - uma solução", escreve Calasso. Equilibrando humor e amor, o autor presentei quem lê com tiradas tão engraçadas quanto precisas: ""​​O essencial é comprar muitos livros que não são lidos na hora. Em seguida, depois de um ano, ou de dois anos, ou de cinco, dez, vinte, trinta, quarenta, poderá chegar o momento em que se pensará ter necessidade exatamente daquele livro - e quem sabe ele poderá ser encontrado numa prateleira pouco frequentada da própria biblioteca", lê-se na tradução de Patricia Peterle. Daí porque cada biblioteca é única e incivilizada aos olhos de fora, justo porque a disposição dos livros na biblioteca é um gesto de paixão.

12 novembro 2023

Sem receita


O livro SEM RECEITA, de José Miguel Wisnik, valeria a leitura apenas por resgatar o icônico texto "Gaia ciência - literatura e música popular no Brasil", com seu diagnóstico preciso na virada do século XX para o XXI: "Podemos postular que se constitui no Brasil, efetivamente, uma nova forma de “gaia ciência”, isto é, um saber poético-musical que implica uma refinada educação sentimental. [...] Noutras palavras, o fato de que o pensamento mais “elaborado”, com seu lastro literário, possa ganhar vida nova nas mais elementares formas musicais e poéticas, e que essas, por sua vez não sejam mais pobres por serem “elementares”, tornou-se a matéria de uma experiência de profundas consequências na vida cultural brasileira das últimas décadas". Mas o livro SEM RECEITA vale também por outros diagnósticos, diversas metaforizações e várias iluminações que só o pensamento rigoroso e amoroso de José Miguel Wisnik consegue elaborar, sobre Machado e Maxixe, política e música, a transcendência da cajuína, o dom da ilusão, Zé Celso e Dioniso, etc.

05 novembro 2023

Tropicália rex


O rap abriu o debate a cerca da perda do reconhecimento confortável daquilo que definimos culturalmente ao longo de todo o século XX como sendo "canção" - monumento do gaio saber brasileiro. Entre o "ela pensa em casamento / e uma canção me consola" do verso tropicalista, o rap performa o "papo reto" de identidades historicamente postas à margem, sem o consolo, nem o direito. "O rap não é apenas um gênero da música popular brasileira que faz um jogo político; ele ressalta o jogo político que está presente desde os primórdios da tradição musical popular brasileira", escreve Liv Sovik no livro TROPICÁLIA REX. Para a autora, que trata do "fim de certo consenso pacífico em torno das hierarquias sociais e raciais" no Brasil, "o rap assume, exacerba e deixa explícito o que o tropicalismo preconizava em suas referências à cultura popular", agora, "não mais como motivo de choque, mas como veículo da vida coletiva", uma vida imersa na violência gerada pelas desigualdades. Quando, diante da audição de um rap, estranhamos e perguntamos "isso é canção?", o rap já cumpriu sua missão, ou seja, desinstalou a certeza, nublou as verdades burguesas, cravou a dúvida, deu o nó na orelha da nossa educação sentimental. TROPICÁLIA REX trata disso e de outras questões de música popular e cultura brasileira, temas sobre os quais Liv Sovik sempre lança luzes desautomatizadas.

29 outubro 2023

Finas flores


O livro FINAS FLORES trata das mulheres letristas na canção brasileira. Jorge Marques elenca Adriana Calcanhotto, Fátima Guedes, Dolores Duran, Joyce, Maysa e Rita Lee, sem esquecer de citar Chiquinha Gonzaga, entre outras, e investiga a palavra e o acorde feitos por mulheres no Brasil, esse "país de cantoras", como diz o adágio popular. Porém, de "poucas letristas". "E pra que palavras / se eu não sei usá-las?", pergunta ironicamente uma canção de Adriana Calcanhotto. Se, "cada uma palavra é a minha vida / cada acorde é um pedaço de mim", como diz a canção de Joyce, coube ao autor de FINAS FLORES interpretar o que significou a tomada de voz dessas mulheres, historicamente silenciadas, ou, pior, destinadas à função de musas para/por homens. "Ser mulher é ter o poder de gerar vida", diz o primeiro verso do poema de Gilka Machado. E é essa vida gerada que o autor investigar, esse ser e estar mulher no mundo, na perspectiva que cada letrista poetiza em suas obras. "Mulher é desdobrável. Eu sou", diz outro poema, de Adélia Prado. Ao final da leitura do livro, percebemos o trabalho minucioso realizado por Jorge Marques: a singularização de variadas dobras, de diversas poéticas lidas/ouvidas. Quem lê FINAS FLORES ouvindo as canções, descobre novas frestas, faz descobertas. "O cânone se impõe porque seleciona: determina aqueles(as) que fazem parte e aqueles(as) que não fazem parte da fina flor. Relaciona, limita e, por conseguinte, exclui", conclui o autor, lançando luz sobre o que urge revelação.

22 outubro 2023

O homem que amava rapazes e outros ensaios


Vira e mexe releio, cito, indico o livro O HOMEM QUE AMAVA RAPAZES E OUTROS ENSAIOS, de Denilson Lopes. Há nesse livro vários nós ainda hoje não devidamente desatados no debate acadêmico, e que Denilson diagnostica e faz encaminhamentos para lá de pertinentes. Talvez o mais importante: o enfrentamento teórico, crítico e ensaístico da (tropical) melancolia. "O indivíduo é uma construção e não dado inerente ao humano", lemos no primeiro parágrafo do texto "Terceiro manifesto camp", em que trata do desafio do sujeito contemporâneo para "articular suas máscaras em constante troca, seu eu mutante, sem se deixar dissolver no puro movimento, na velocidade, no mercado de imagens". É inspirador ver Denilson, por exemplo, ensaiando uma tradução de "camp" para nós: "Enquanto comportamento, o camp pode ser comparado à fechação, à atitude exagerada de certos homossexuais, ou simplesmente à afetação. Já enquanto questão estética, o camp estaria mais na esfera do brega assumido, sem culpas, tão presente nos exageros de muitos dos ícones da MPB, especialmente o culto a certas cantoras e seus fãs". Essa formulação nos ajuda a entender a cultura popular midiatizada brasileira desde, pelo menos, a Tropicália, no "influxo da contracultura nos anos 1960". Pensar a "fechação", a "estetização do social" enquanto categoria ético-estética brasileira é desafiador e fascinante. Aqui a fechação "aparece como uma estratégia corrosiva da ordem, no momento em que políticas utópicas e transgressoras parecem ter se esvaziado de qualquer apelo, e para os que não querem simplesmente aderir à nova velha ordem global do consumismo, em que a diferença é oferecida a todo momento, em cada esquina, em cada propaganda". São muitos os momentos luminosos de O HOMEM QUE AMAVA RAPAZES E OUTROS ENSAIOS. Findo novamente citando Denilson Lopes: "Por mais que a solidão, a melancolia, a violência e o desamparo persistam, não é tarde demais. Não estamos também no começo. Este nós de que participo mas não represento".

15 outubro 2023

O filho da mãe


"O prazer do outro pode ser insuportável, ainda mais quando não há um labor [procriação] aí, quando o prazer é ostensivamente um fim em si mesmo", diz Bernardo Carvalho numa entrevista. Daí porque um trecho como “Qualquer tchetcheno a quem se fizer a pergunta dirá que não há homossexuais na Tchetchênia. E talvez por isso Ruslan e Akif não tenham sido vistos durante os meses em que encontraram nas ruínas do prédio da escola de medicina. Porque eram invisíveis" valha o livro O FILHO DA MÃE por inteiro; isto é, por conter a ambivalência que as vidas das personagens impõe: num contexto de guerra e patrulha ideológica, quais corpos importam? Se, em entrevista de 1982, Foucault afirmou: "o melhor momento, no amor [entre homens], é quando o amante se distancia no táxi", no livro de Carvalho, "Andrei se aproxima e desabotoa as calças do batedor de carteiras. Quatro horas depois, quando abrir os olhos, ele já não estará mais ao seu lado". As histórias se repetem noutros lugares, noutros corpos, noutras subjetividades afetadas pela guerra: "Ruslan passou a associar o amor ao risco e à guerra, porque não conhecia outra coisa. Associou o sexo à trégua (o desejo deixava a realidade em suspenso) e o amor à iminência da perda. E daí em diante só conseguiu amar entre ruínas”. O livro enfrenta isso com delicadeza e crueza singulares. "O sexo e a guerra são o que todo homem tem em comum, rico ou pobre, educado ou não", lemos mais adiante. Se "histórias de amor podem não ter futuro, mas têm sempre passado", O FILHO DA MÃE articula os escombros dessas subjetividades marcadas pelo horror do outro, da alteridade, da diferença que, em alguma medida, fascina o desejo, posto "que sempre haverá alguém pronto para reconhecer e atacar a vulnerabilidade onde quer que ela se manifeste".

08 outubro 2023

Polipoesia


POLIPOESIA é livro que ilumina o que não tem governo, nem nunca terá: a performance poética. Exatamente por isso, pela insubmissão da singularidade (alguém - perigosamente - fala) que a performance vocal realiza, e isso diz muito da história da literatura, há uma dificuldade de análise, de apreciação, de entendimento, de instrumentalização do que seja "performance". Enzo Minarelli enfrenta o problema da poesia fora do livro, "em sua força plena e absoluta", investigando interpretações, promovendo audições (o livro vem com um CD, esse objeto já em desuso). Para Enzo Minarelli, "a voz em performance é a essência de muitas vozes: é a voz autêntica, arquétipo, xamã oriundo das profundezas do corpo, de um corpo além, voz metafísica, ontológica, uma voz sempre dialética, uma voz crítica em sua entidade social, eletrônica em sua intermidialidade, natural e artificial, sopro bucal regenerador e deformador, voz aleijada, fluxo fonético como fala divina, aceita sem contestação, voz régia, voz superior, em sua singularidade, voz vital, força utópica". Como lidar com essa potência, com essa multidão que alguém falando engendra? Poeta que experimenta o que pensa, Minarelli se une a um coro dissonante que vem a longo tempo abrindo o ouvido, revocalizando o logos sistematicamente emudecido em nossa cultura grafocêntrica: Paul Zumthor, Mikhail Bakhtin, Luiz Tatit, Philadelpho Menezes, Adriana Cavarero, Ruth Finnegan, Ricardo Aleixo. Com tradução, comentários e posfácio de Frederico Fernandes, POLIPOESIA é um convite à tensão entre presença (pathos) e memória (ethos) na era da reprodutibilidade técnica de poemas, entre as poéticas da voz no século XX.

01 outubro 2023

Uma encarnação encarnada em mim


O livro UMA ENCARNAÇÃO ENCARNADA EM MIM escrituraliza o Falatório de Stella do Patrocínio. No livro, Bruna Beber investiga os modos de assentamento da fala na escrita, sem perder de vista a tensão entre revelação poética e revelação religiosa presente na obra de Stella, para quem o mistério irrevelável está no gesto, no ato de transvalorizar a negatividade da vida que só o eu em performance (vocalizando, falando) revela. Resultado da dissertação do mestrado da autora, UMA ENCARNAÇÃO ENCARNADA EM MIM revela que Stella sobrevive na escritura, esse suporte privilegiado pela academia. (A despeito das gravações em áudio, mediadas por Carla Guagliardi e Nelly Gutmacher). Se toda audição, ou leitura é, em si, uma mediação, é esse o exercício que Bruna Beber realiza, ao iluminar a obra de Stella do Patrocínio por dentro - suas lacunas, ruídos, silêncios, mistérios, pletoras. Como estabelecer uma performance, o gesto-em-si da presença? Os riscos de defasagem e silenciamento são enormes, mas Bruna Beber permanece à escuta o tempo todo durante o ensaio, e isso é fundamental: ser com o corpus, ser "na encruza das ciências com as crenças". Se, ao que tudo indica, a poesia predominantemente oral transitou à poesia predominantemente escrita a partir do século XIII, na Itália, com o surgimento do soneto e a produção poética de Dante, a obra de Stella do Patrocínio nos lembra o eu-falante da lírica e que a voz que fala por trás da voz que fala no texto é a voz que fala no texto: uma mulher negra em primeira pessoa - "me transformei com esse falatório todinho", falou Stella. Bruna está à escuta dessa "voz que emana e constitui o corpo vivo para ressoar também não só nesse corpo vivo, mas no espaço e, consequentemente, em outros corpos", como escreve a partir de Paul Zumthor, a fim de elaborar importante método de escuta também antirracista.

24 setembro 2023

Rita Lee & Tutti Frutti - Santa Maria, Maio de 1978


No livro RITA LEE & TUTTI FRUTTI, SANTA MARIA, MAIO DE 1978, Gérson Werlang parte de uma experiência pessoal, estar na plateia do show da turnê do disco Babilônia, na cidade de Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul, em maio de 1978, para apresentar uma crônica cultural e de costumes envolvendo a década (de revoluções por minuto, ou milênios?) de 1970. Werlang restitue com primores de detalhes a cena, o contexto, o clima de um "tempo irradiado", feito de "rage, rage against the dying of the light", como diz Dylan Thomas numa das epígrafes do livro. No mesmo poema, Thomas faz referência a "wild men who caught and sang the sun in flight". E não é essa a completa tradução de Rita Lee? Na crônica ensaística de Gérson Werlang ficamos mais íntimos dessa poética, pois o autor repassa o percurso artístico e pessoal de Rita até o tão aguardado show babilônico: no começo, "a eletricidade pairava no ar, como se uma descarga estivesse por vir"; no final, "fogos de artifício imaginários podem ter brindado aquele momento". Com fotografias e relatos luminosos do tempo e do espaço da experiência, o autor nos lembra que "resta a sensação cósmica de que, no passado, vive o futuro. Só não podemos deixá-lo ir, só não podemos esquecê-lo". O livro é uma fábula rock'n'roll setentista contra o esquecimento de um momento singular da ebulição cultural de nosso país.

17 setembro 2023

América Latina em sua literatura


AMÉRICA LATINA EM SUA LITERATURA tem coordenação e introdução de César Fernández Moreno e reúne textos preciosos para pensar o tema do livro, "resultado de um vasto projeto da UNESCO de estudar a cultura universal na especificidade de seus conjuntos culturais". Podemos ler textos de Antônio Houaiss, Emir Rodrígues Monegal, Ramón Xirau, Severo Sarduy (e seu brilhante ensaio "O barroco e o neobarroco"), Fernando Alegría, Haroldo de Campos (e seu texto "Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana"), Antônio Cândido (com o fundamental texto "Literatura e subdesenvolvimento"), José Guilherme Merquior, Lezama Lima (e o "Imagem da América Latina", tratando do canto coral que a poesia entoa na história americana) e outros. É livro de cabeceira, de consulta, de revisão, de provocações que rompem e permanecem como questões importantes para a mirada no espelho. "No centro da história americana, no quincunce do espaço incaico, continua ganhando as mais decisivas batalhas pela imagem, as secretas pulsações do invisível para a imagem, tão ansiosa de conhecimento como de ser conhecida", escreve Lezama. À América!

10 setembro 2023

Corpo a corpo com o texto na formação do leitor literário


"No lugar de ser objeto de prazer e de permitir o desenvolvimento espiritual, a literatura transformou-se em problema, complicação, objeto de temor". O diagnóstico feito por Suzi Frankl Sperber no prefácio do livro CORPO A CORPO COM O TEXTO NA FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO dá o mote daquilo que a professora Eliana Kefalás glosa, a saber, uma resposta à pergunta: "como favorecer a experiência no ato de leitura, se existe uma tendência ao engessamento, à automação das ações, e o temor do texto, da dificuldade (fantasiada) do texto, cuja dificuldade reside em sua beleza, no uso ímpar da linguagem?". No ensaio da resposta a autora dá uma bela aula-oficina sobre o tema "performance", palavra muito usada de modo irresponsável em nossos dias, sem a força que o conceito por trás da palavra tem. Kefalás parte dos estudos incontornáveis de Paul Zumthor, passa pela restauração da "experiência" benjaminiana e chega a encaminhamentos teóricos e práticos luminosos para quem lida com o corpo a corpo do texto em sala de aula, ou seja, na vida. Kefalás lembra que o conceito "performance" tem longa tradição crítica e parece ter tomado para si a responsabilidade cantada pelo poeta santamarense Antonio Vieira: "Os nomes dos poetas populares / Deveriam estar na boca do povo / No contexto de uma sala de aula / Não estarem esses nomes me dá pena". Sem simplificações de tema tão complexo, a autora coloca o nome e o poema na voz de quem lê.

03 setembro 2023

Sousândrade vida e obra


Lançado em 1976, o livro SOUSÂNDRADE: VIDA E OBRA ainda é a biografia mais bem acabada do poeta maranhense Joaquim de Sousa Andrade. A fusão proparoxítona com que o poeta assinava suas obras dá o tom da invenção e da originalidade dessas obras. Amálgama, mistura, montagem, palimpsesto, fragmento são palavras-chave importantes da poesia sousandradina. Poeta sempre à espera de leituras à altura de sua grandeza, para Camilo Castelo Branco, o autor de O Guesa foi "o mais estremado, mais fantasista e erudito poeta do Brasil". Nessa biografia, com uma introdução de Jorge de Sena, o professor Frederick Williams, que, ao lado de Jomar Moraes, foi responsável por recolher e estabelecer a poesia de Sousândrade, nos apresenta as contradições da voz inquieta que viveu por trás da voz da persona poética. A qualidade do trabalho de pesquisa, cotejo e crítica de Willians é inspirador. Fotos, documentos, trechos de textos são armados para compor a personagem desconhecida. "Um importante aspecto da originalidade de Sousândrade está no tratamento do escravo africano como figura literária. O poeta se inscreve não só entre os primeiros a abordarem tal assunto, como antecipa em vinte anos os poetas abolicionistas", anota Williams. Fato é que, tendo criado em trânsito, entre São Luís, Londres e Nova York, Sousândrade estetizou com "lubricidade realista" a malfadada brasilidade como ninguém.

27 agosto 2023

A solidão tropical


A epígrafe do livro A SOLIDÃO TROPICAL é precisa daquilo que será lido: "quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes do tudo, deve espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como quem revolve o solo", de Walter Benjamin, em "Rua de mão única". Desde aí até as considerações finais sobre o modo como José de Alencar, "atento e polêmico, de seu gabinete flanou por terras próximas e distantes, povoando com a imaginação o imenso território da solidão brasileira", a autora Lúcia Helena questiona as fundações da identidade nacional no Romantismo brasileiro. Como pode um brasileiro encontrar-se consigo mesmo? A questão atravessa os textos do livro, enredando quem lê na trama artificial de nossa singularidade, pensando uma literatura a serviço do Brasil e para os brasileiros. O que isso significa de apagamento e ruína? O que uma obra contém de seu tempo e como essa contenção a coloca no cânone literário? Qual é a importância do Romantismo para a emergência e permanência do critério nacionalista na construção do cânone literário brasileiro? Quais os diálogos entre historiografia oitocentista e historiografia modernista? Essas e outras perguntas cruciais são postas e enfrentadas com originalidade e rigor. A SOLIDÃO TROPICAL emula aqui que Joaquim Nabuco anota em "Minha formação": "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou".

20 agosto 2023

Totens e tabus da modernidade brasileira

A professora Lucia Helena é dessas pessoas que podem, sem pejo, dizer "quando cheguei aqui era tudo mato". O "aqui", no caso, é a "vida acadêmica". Desde o radical e luminoso, porque ensaia resposta à pergunta "como pode um brasileiro encontrar-se consigo mesmo?", sob o título "A solidão tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade", até textos sobre autores mais contemporâneos, passando pelo incontornável "Nem musa nem medusa: itinerários da escrita em Clarice Lispector" e o "A cosmo: agonia de Augusto dos Anjos" (acho que o primeiro que li, por se tratar de escritor meu conterrâneo), todos são livros de referência, partem de hipóteses originais, antecipam muito do que ainda hoje é mote de teses e cursos nas Letras. Destaco TOTENS E TABUS DA MODERNIDADE BRASILEIRA: símbolo e alegoria na obra de Oswald de Andrade porque, além de ser o resultado da tese de doutorado da professora Lucia Helena, acabo de orientar uma dissertação sobre o poeta modernista e a releitura deste livro está fresca na mente. Concordemos ou não com suas reflexões, a "vitalidade ensaística" da autora, como destaca o professor Eduardo Portella na Apresentação, é inspiradora e demonstra o equilíbrio entre rigor e afeto com que devemos enfrentar criticamente o corpus literário, a "secura anti-lírica e paródica" do homem do pau-brasil. Sem medo, nem esperança, a voz ensaística de Lucia Helena tem uma certa liberdade que hoje nos falta na "vida acadêmica" pautada pela produtividade acrítica.

13 agosto 2023

Uma literatura antropofágica


No livro "Verdade tropical" (1997), Caetano Veloso escreve que "(...) são poucos os momentos na nossa história cultural que estão à altura da visão oswaldiana. Tal como eu a vejo, ela [a ideia do canibalismo cultural] é antes uma decisão de rigor do que uma panaceia para resolver o problema de identidade do Brasil. A poesia límpida e cortante de Oswald é, ela mesma, o oposto de um complacente 'escolher o próprio coquetel de referências'. A antropofagia, vista em seus termos precisos, é um modo de radicalizar a exigência de identidade (e de excelência na fatura), não um drible na questão". Em alguma medida, é exatamente isso que a professora Lucia Helena antecipa e investiga no livro UMA LITERATURA ANTROPOFÁGICA (1982), ou seja, a autora responde o que o adjetivo significa, sem drible no tabu da "dependência cultural". Tomando a antropofagia enquanto ethos da nossa literatura e vertente de nossa cultura, Lucia Helena mapeia e analisa a poesia atribuída a Gregório de Matos, a poesia de Augusto dos Anjos e Mário e Oswald de Andrade (além dos manifestos e do teatro desse, e do Macunaíma daquele), a fim de defender a antropofagia enquanto dicção carnavalizante nossa, muito nossa.

06 agosto 2023

Diário confessional


O melhor do DIÁRIO CONFESSIONAL de Oswald de Andrade é a autorrevisão que o autor do "Manifesto antropófago" faz de seu pensamento sobre a singularidade do Brasil: "Estou convencido de que só a Antropofagia tem razão. Leio um lindo livro de Hesnard, que foi quem introduziu Freud em França. Ele chega às portas da Antropofagia. Mas tropeça no marxismo e para" (07/05/1951). O resto é uma avalanche de tristeza pequeno-burguesa: ressentimento. Como sabemos, só a partir da montagem de "O rei da vela", feita em 1967 pelo Teatro Oficina, que se deu um dos primeiros reconhecimentos públicos da obra de Oswald. Aliada à leitura crítica dessa obra feita pelos poetas concretos, o cinema de Glauber Rocha e a Tropicália musical. Interessante observar como a crítica dos desdobramentos do marxismo une dois importantes escritores do século XX: "Até Marx, / atrelado à rubra moldura, / arrastava os grilhões da usura", escreveu Maiakóvski em "Sobre isto". Aliás, a obra crítica e irônica de Oswald conversa sobremaneira com a ética e a estética de Maiakóvski. Ambos têm o ideal comunista por base: um comunismo comunitário, coletivo, horizontal. A crítica às pessoas da sala de jantar, ocupadas em nascer e morrer, é evidente no pensamento dos dois. Isso está no cerne da obra de Oswald de Andrade, para quem "O povo no Brasil não tem sentimento de culpa (matriarcado). Na Rússia, só tem sentimento de culpa (ortodoxia patriarcal)" (01/04/1951). Grande parte do DIÁRIO CONFESSIONAL é testemunho do embate entre o pensador de olhos livres e ouvidos abertos com a urgência das coisas pequeno-burguesas, cotidianas - contas, dívidas, grana, mágoa, culpa. "Resiste / Coração de bronze", repete e repete Oswald, entre 1948 e 1954. É louvável o trabalho de organização feito por Manuel da Costa Pinto.

30 julho 2023

Do canto e do silêncio das sereias


O livro DO CANTO E DO SILÊNCIO DAS SEREIAS é "um ensaio à luz da teoria da narração de Walter Benjamin". E é mais. Tornou-se meu livro de cabeceira, de referência, desde que chegou a mim, quando eu terminava de escrever a minha tese de doutoramento. Foi uma revolução nas minhas hipóteses. Eu queria começar do zero. Não dava tempo. Desde então, leio, releio, cito o livro de Luís Inácio Oliveira. O livro apresenta de modo superiormente didático-histórico-crítico-contextual grande parte do que (me) interessa no pensamento de Homero, Adorno, Benjamin, Kafka, Blanchot, ou seja, tenta perceber o que quer e o que pode a Sereia - essa metáfora do que "Ar no ar, / pedra sobre pedra, / inacessível ao perecível e à podridão, / irradiante / eleva-se sobre os séculos / a oficina humana da ressurreição", como lemos no poema "Sobre isto" de Maiakóvski. A Sereia guarda a matéria fina: a vida de quem tem os ouvidos livres para ouvir seu canto (e silêncio). O livro de Luís Inácio Oliveira reelabora isso ao investigar a presença da Sereia na modernidade, quando tapamos o ouvido, ou fazemos ouvidos moucos, à vida "mais real", porque estetizada. "Uma tradição se degrada quando já não oferece sentidos reconhecíveis e confiáveis, quando já não possibilita a comunicação do presente com o passado. Uma tradição em agonia pode, contudo, buscar subsistir como repetição vazia de sentido num derradeiro e desesperado esforço por preservar algo de um passado referencial contra o desamparo e o desabrigo de um presente que não dispõe de vínculos de sentido com a experiência que o antecedeu", escreve Luís Inácio Oliveira. Se "Da podridão / As sereias / Anunciarão as searas", como poetou Oswald de Andrade, é do ruído-podridão moderno que o livro DO CANTO E DO SILÊNCIO DAS SEREIAS retira e ilumina suas hipóteses sobre tradição e ruptura da narração (e narrativa) humana.

23 julho 2023

Nós somos muitas


"Já que sou brasileiro / E que o som do pandeiro é certeiro e tem direção / Já que subi nesse ringue / E o país do suingue é o país da contradição", canta Lenine em "Jack soul brasileiro". Pensar o Brasil do lugar desse ringue, entre suingue e contradição requer rigor e humor, mirada e visagem, acionando sim a fundamental personificação mítica do país. É daí que falam os textos do livro NÓS SOMOS MUITAS, que reúne "ensaios sobre crise, cultura e esperança". De fato, é equilibrando diagnóstico, metáfora e terapêutica que Pedro Meira Monteiro pensa o Brasil. Pensa porque experimenta, pois cada texto é o desdobramento de um trânsito, de uma transição - Bahia, Lisboa, Princeton. Não posta, mas sugerida, há uma pergunta que atravessa e amarra os textos: por que o Brasil tarda a ser o que é? A pergunta, como sabemos, mobilizou modernistas e tropicalistas. E é a reverberação dos gestos éticos e estéticos desses o que anina o pensamento de Pedro - "a dança, a muganga, o dengo". Daí porque cruzar Nietzsche, Piglia, Hatoum, Caetano, Wisnik, Zé Celso, Candido, Strauss, entre outros criadores-pensadores que enfrentam o "nós" que somos com sensíveis e firmes gestos e jeitos de corpo. E nós somos muitas, diz o título do livro. Título vindo da conversa entre o autor e Rosi, uma cabo-verdiana trabalhando em Lisboa. Para quem e por quem escrever-pensar? Eis outra pergunta que o autor de NÓS SOMOS MUITAS sugere, enfrentando, do ringue, a quebra de idealizações intelectuais do outro, da outra. "Quando ao 'outro' cabe simplesmente responder ao meu desejo, o limite político que se estabelece é o da morte, o da completa anulação daquele sujeito cujo corpo deve ser preenchido com todos os objetos da minha fantasia", escreve Pedro num dos textos que, por motivos de pesquisa, mais me falou diretamente. Ao fim, o livro convida a pensar com e a cantar para quem faz do coco um cocar. Quem se dispõe?

16 julho 2023

Candomblé de rua - O Bembé de Santo Amaro


Quando Caetano Veloso canta "Dia 13 de maio em Santo Amaro / Na Praça do Mercado / Os pretos celebravam / (Talvez hoje ainda o façam) / O fim da escravidão / Da escravidão / O fim da escravidão" evoca cenas vistas desde a infância em Santo Amaro da Purificação, evoca o Bembé do Mercado, festa negro-brasileira que acontece todo dia 13 de maio desde 1889, um ano após a tal assinatura de Zabé. Tradição engendrada pelo babalorixá João de Obá, Patrimônio Imaterial do Estado da Bahia, o Bembé do Mercado tem seus ritos e mitemas registrados em texto e imagens no livro CANDOMBLÉ DE RUA - O BEMBÉ DE SANTO AMARO, de Jorge Velloso. São textos e imagens que permitem a quem lê perceber as mudanças que a festa sofreu para que ela continuasse sendo festa: fresta no horror que foi (e é) a escravidão. "Tanta pindoba / Lembro do aluá / Lembro da maniçoba / Foguetes no ar", continua a canção de Caetano. Novas subjetividades e perspectivas se misturaram e ressignificaram o gesto político de Zabé. A festa saúda ou salda a princesa? Sendo a fé na celebração, o livro, que tem Apresentação assinada por Maria Bethânia, é um excelente documento de pesquisa para quem quer pensar as complexidades e as encruzilhadas da gente de um lugar onde “Zabé come Zumbi / Zumbi come Zabé”, como canta também Caetano noutra canção; de um Brasil que se realiza, pulsa, canta, chora e ri, à margem do Brazil. Leio, vejo as fotos do livro e lembro, por exemplo, do ethos do gaio saber da missa na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, do cheiro da Feira de São Joaquim, da baiana com cesto na cabeça num azulejo seiscentista do antigo Convento de Santa Teresa, hoje Museu de Arte Sacra, na cidade de Salvador. Tudo numa Bahia que, sem romantizar sua história, mas, pelo contrário, encarando essa história de frente, tem um jeito de Terra, chão, rua.

09 julho 2023

Forma e formação


Quando dois mestres conversam, a escuta do aprendiz é fundamental para a formação deste. É meu gesto durante a leitura e releitura de FORMA E FORMAÇÃO, livro resultado de uma conversa sobre a canção popular entre Luiz Tatit e Luís Augusto Fischer. Dois dos maiores pensadores disso que "não tem governo, nem nunca terá", mas que, por isso mesmo, guarda um gaio saber estimulador à reflexão, à crítica: s canção popular. Cada um a seu modo, Fischer e Tatit vêm desenvolvendo ao longo do tempo instrumentos que mais potencializam do que esquematizam a canção. Professores universitários, ambos ensinam a criar brechas nos muros da academia, pois tensionam "o mundo mais empírico com o mundo das abstrações e teorias", como escreve o não menos mestre mediador da conversa Guto Leite. FORMA E FORMAÇÃO passa em revista mais de três décadas de dedicação à linguagem artística mais popular do Brasil. "Havia uma espécie de comunhão da nossa vida cotidiana com aquela geração de cancionistas, que nos explicavam o mundo e nos educavam esteticamente", diz Fischer. "Lá por 1968-1969, saiu a primeira edição de Balanço da Bossa do Augusto de Campos. Para mim, a leitura dele foi fundamental para perceber como a canção poderia ser um objeto de reflexão", diz Tatit. Da formação individual ao debate sobre a "forma canção", o livro atravessa a história recente do país. Note-se: o livro é obra do Núcleo de Estudos da Canção da UFRGS, o que reforça a força dos desdobramentos do trabalho dos mestres. Se "de tudo se faz canção", como dizem Milton, Lô e Márcio, quem faz da canção objeto de trabalho precisa "atender ao mundo orecular" com um rigor específico - passar da fruição à reflexão. Com a generosidade dos mestres que são, Tatit e Fischer partilham as estratégias e os procedimentos para fazer isso.

02 julho 2023

Leitura de poesia


Reforço sempre: é cada vez mais raro encontrar textos que analisam poemas equilibrando ética e estética, forma e conteúdo. Entende-se que, no Brasil, as questões sócio-políticas se sobreponham sempre, mas é frustrante, no mínimo, que aquilo que caracteriza o poema, ou seja, o trabalho com a linguagem, fazer a linguagem "errar", seja desconsiderado na hora da leitura crítica do poema. Esse trabalho exige reflexão, é isso que faz o pensamento pensar. Pois, frequentemente, esquece-se que debater estética é debater ética. Por isso, mas não apenas, é sempre bom reler um livro como LEITURA DE POESIA, organizado por Alfredo Bosi, autor do incontornável, sobre o mesmo tema, "O ser e o tempo da poesia". Lançado em 1996, LEITURA DE POESIA reúne leitores críticos acadêmicos, a fim de tratar poemas de poetas do cânone - de Mário a Cabral, por exemplo, passando por Bandeira. Salvo "Cajuína", canção de Caetano Veloso, que recebe interpretação inspiradora de José Miguel Wisnik. Ao colocar esse texto no livro, Alfredo Bosi confronta a antiga, mas recorrente, querela entre poema de canção e poema de livro. Wisnik transcende a querela, evidentemente. De fato, cada convidado do livro mostra modos de leituras, possibilidades de entrada e saída do poema escolhido para ler. "O projeto do livro tem uma dupla dimensão: crítica, isto é, valorativa, enquanto os ensaístas se detiveram em textos que lhes pareceram dignos de atenção; e pedagógica, na medida em que se constata em esforço de tornar acessível a jovens iniciantes nas Letras a linguagem complexa da análise e da interpretação do poema", escreve Bosi na nota introdutória desse livro de cabeceira de quem lê, trabalho com, faz poesia.

25 junho 2023

Doces e bárbaros

Resultado de dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal da Bahia, o livro DOCES E BÁRBAROS - UM ESTUDO SOBRE CONSTRUÇÕES DE IDENTIDADES BAIANAS apresenta o "acontecimento" nos campos da arte e da política que foi a turnê que em 1976 reuniu Maria Bethânia, Gilberto Gil, Gal Costa e Caetano Veloso. Cantor e pesquisador, Carlos Barros esmiúça com sensibilidade ímpar toda a cena em torno e no centro do palco ritualizado da turnê Doces Bárbaros. A repercussão midiática, o recrudescimento do preconceito - à esquerda e à direita - de tudo o que estava fora do eixo SP-RJ, mas, principalmente, apresenta como a performance dos artistas no palco e na vida ajudaram a desestabilizar o olhar equivocado sobre o ser "baiano". Termo que ainda hoje é usado pelos sudestinos como xingamento. Já na Apresentação lemos: "Temos elementos para supor que a Bahia guarda, nos seus contornos identitários, características de 'outros universos' que, por si, não seriam propriamente brasileiros, mas que passariam a sê-lo justamente pelo fato de estarem contidos na trama da identidade cultural baiana". Eis a trama que os quatro cavaleiros do após calipso colocaram em rotação, incomodando pensamentos supostamente progressistas, mas que apagavam territórios, gentes, histórias, passados. Baseado em teorias das Ciências Sociais, Carlos Barros mostra o futuro ancestral que os artistas baianos, logo, brasileiros, performaram na metade de uma década decisiva para a reflexão do que chamamos "cultura nacional".

18 junho 2023

Nada será como antes


Ana Maria Bahiana é dessas pessoas que viram germinar muito do que ainda hoje alimenta nossa cultura cancional. Com ouvidos livres e olhos atentos, Bahiana registrou shows, lançamentos de discos e acontecimentos que desestabilizaram e, ao mesmo tempo, formataram um certo ethos de nossa cultura, um ethos ancorado na experimentação, no risco, no inaugural, na profissionalização de nosso (quase) amadorismo. Alguns desses registros estão no livro NADA SERÁ COMO ANTES: MPB ANOS 70 - 30 ANOS DEPOIS. Fui reler o volume lançado em 2006 para um trabalho e novamente fiquei impactado com as miradas de Ana Maria junto com os artistas de uma década que se equilibrava entre o "princípio-esperança" e o "princípio-realidade". Quando o sonho acaba, urge re-sonhar! Os anos 1970 estilhaçaram certezas, abriram frestas. E o chamado "jornalismo cultural" teve papel fundamental no enfrentamento da censura, do mercado. A competência de Ana Maria de compreender a máxima do poeta Allen Ginsberg é evidente, a saber, “A poesia no sentido tradicional acabou. Ninguém se senta mais na poltrona da sala de estar para ler. O Rock é a nova poesia. É um retorno à poesia dos velhos tempos”. "Esse tal de Roque Enrow", como cantava Rita Lee em 1975 (no meio do redemoinho!), era o motor dessa juvenil sensibilidade à brasileira. E Ana Maria Bahiana estava lá e nos contou tudo com sabor. Destaca-se o diagnóstico perspicaz que a jornalista faz das obras de Rita Lee, de Cátia de França, de Sueli Costa, entre outras mulheres protagonistas re-orientadoras do ser e estar mulher na canção popular brasileira. NADA SERÁ COMO ANTES: MPB ANOS 70 - 30 ANOS DEPOIS, é crônica, é crítica, é prosa boa de ler.

11 junho 2023

Saia da frente do meu sol


O livro SAIA DA FRENTE DO MEU SOL guarda uma beleza rara: a sinceridade sem afetação. Felipe Charbel equilibra investigação intelectual (seu narrador lê, estuda, pesquisa enquanto escreve) e o que se convencionou chamar "escrita de si", com delicadeza e empatia pelo "fracasso" da empreitada de narrar o outro. Seja metaficção, seja "biografia especulativa", o que lemos é um narrador que se escreve escrevendo a vida de Ricardo, seu tio-avô. É tudo verdade e é tudo ficção. Sem conseguir inventar, o narrador imagina e expande as cenas capturadas em fotografias guardadas num armário. "Era como se a ânsia de inventar turvasse minha visão, me impedindo de assimilar o que se passava ao meu redor", escreve, inventando o que se passava ao redor, por trás, entre, dentro do Ricardo das fotos. "É ficção? Recorri à fantasia"; "Minha questão com as fotos do meu tio não passa pelo factual, pela reconstrução do acontecido". SAIA DA FRENTE DO MEU SOL singulariza o sujeito "comum", o tio velho e doente desconhecido que morava no quartinho dos fundos. O livro trata de algo pouco comum: a velhice do homem gay. "Como seria se fosse possível, naqueles dias, falar abertamente - e não aos sussurros - sobre essas questões mais íntimas?", pergunta-se o narrador sobre a solidão de Ricardo. (Silenciosamente, pergunto-me se o tio "esquisitão" um dia serei eu). "Tudo na história de Ricardo era uma página em branco". Por isso mesmo, o texto é composto por enxertos, citações, descrições, contos dentro de contos, anotações, constituindo-se, assim, a forma possível de se aproximar do outro: aos cacos. "A alteridade é, antes de mais nada, um necessário exercício de autocrítica", escreveu Haroldo de Campos. "O que vejo na foto quando olho para ela?", pergunta-se Charbel a cada mexida no arquivo, na memória, na fantasia. O que vejo no outro quando olho para ele?, parece querer nos fazer perguntar. E perguntamos.

04 junho 2023

Eu. E. Cummings


Com poemas cantados de Ana Carolina a Zeca Baleiro, talvez não seja exagero dizer que Edward Estlin Cummings está na boca do brasileiro. e. e. cummings compõe o paideuma dos poetas concretos, assim como os procedimentos dos poetas concretos são referências importantes para a poesia de Paulo de Toledo. Também tradutor, Toledo se utiliza do conceito de transcriação para nos re-apresentar cummings, poeta traduzido por Augusto de Campos, vide o livro "40 poem(a)s". Desse modo, o livro EU. E. CUMMINGS brinca com essa ciranda de (auto)referencialidades extra, intra e intertextuais do poeta e da poética cummingsiana. Usando sua notável verve irônica de matriz oswaldiana, Toledo inscreve a si quando reescreve cummings. "Além do jogo de palavras com o nome de cummings, o título foi motivado por ser um livro de um 'amador', de um tradutor não-especialista, de alguém que faz porque ama. Daí o 'Eu' do título se refere à relação afetiva entre o tradutor - que há mais de 20 anos tenta verter para o português a 'tortografia' cummingsiana - e o genial poeta", lemos na apresentação. As soluções transcriativas são eficazes e destacam a dificuldade da "tortografia" e a beleza da poesia singular, com seu lirismo moderno, carregado de pesadelos: "and is it dawn / the world / goes forth to murder dreams" fixa-se "e é o alvorecer / o mundo / se encaminha para sonhos assassinos"; ou "-after which our separating selves become museums / filled with skilfully stuffed memories" fixa-se "-após o que nossos eus separados tornam-se museus / repletos de memórias habilmente empalhadas". A autodeclara não-especialidade de Paulo de Toledo permite a ele experimentar as palavras aglomeradas, os eus urbanos de cummings, suas inquietações: "to hell with literature / we want something redblooded" fixa-se "pro inferno com a literatura / queremos algo que pingue sangue". E não é isso que a literatura quer? "something authentic and delirious" [algo autêntico e delirante]? Isso o livro EU. E. CUMMINGS nos dá.

28 maio 2023

Artigos selecionados - Carlinda Nuñez


"Viver não cabe no Lattes", diz o meme que fala fundo ao coração de quem desenvolve pesquisa no Brasil. Por isso mesmo é preciso reconhecer e agradecer quem faz do viver uma invenção dos melhores modos de ser e estar inteiro em cada coisa que realiza, dentro e fora do trabalho (se é que há essa fronteira num mundo neoliberal). O livro ARTIGOS SELECIONADOS, com textos da professora Carlinda Fragale Pate Nuñez, é isso: um reconhecimento. Organizado por Elisa Figueira de Souza Corrêa e Isabel Arco Verde Santos, o volume guarda textos, artigos diversos, distantes entre suas publicações em revistas acadêmicas, mas cuja unidade se dá pela linguagem direta, o rigor metodológico e o manejo de conhecimentos clássicos - tudo o que caracteriza a trajetória docente da autora. Ninfas, Musas, mitos gregos, Almodóvar, Lanthimos, Música, Poesia, tragédias e abismos aparecem animados pela escrita da autora, para quem "A Antiguidade clássica fornece duas representações díspares das mulheres. De um lado, as mulheres trágicas, entes sociais sem voz e que já têm em si algo de personagem, pois entram em cena para receber, em muitos casos, o troféu de uma morte violenta, narrada. (...) De outro lado, as musas, figuras míticas cuja invocação necessariamente antecede qualquer atividade intelectual, monopólio de homens, no quadro da Antiguidade". A inspiradora trajetória da vida acadêmica de Carlinda transvaloriza o meme, ao lançar mundos no mundo. Vida longa!

21 maio 2023

Rita Lee mora ao lado


Desde que Rita Lee foi voar num disco voador com David Bowie proliferam-se nas redes frases como "ela era feminista sem ser feminista", tanto para deslegitimar a militância, quanto para reforçar a pecha de "alienada" da artista. Esquece-se que, no Brasil, desbundar é militar, é subverter. Em algumas entrevistas Rita Lee falava em "feminismo de ação", ou seja, sem negar a militância intelectualizada, ela militava com gestos transgressores que confrontavam o nosso ethos machista opressor. Nada mais feminista, em se tratando de uma cultura com "diferentes feminismos", como dignostica a professora Eurídice Figueiredo no livro "Por uma crítica feminista". Sendo "uma biografia alucinada da rainha do rock", o livro RITA LEE MORA AO LADO, de Henrique Bartsch, traduz bem essa persona artístico-política. O autor coloca em prática a lição de Maiakóvski, a saber, "tirando os monumentos do pedestal, devastando-os e virando, nós mostramos aos leitores os Grandes por um lado completamente desconhecido e não estudado". Nas palavras da biografada, Bartsch apresenta "um tratado arqueológico de minha vidinha vulgar, o encontro de vários elos perdidos, Peter Pan na terra de Oz do Sítio do Picapau Amarelo. Uma viagem lisérgica sem tomar ácido algum". Não sendo uma biografia o livro RITA LEE MORA AO LADO biografa, ao devastar o monumento que Rita Lee nunca quis ser. Mas é!

14 maio 2023

Ditadura no Brasil e censura nas canções de Rita Lee


O livro DITADURA NO BRASIL E CENSURA NAS CANÇÕES DE RITA LEE é saber com sabor resultado do trabalho atento de Norma Lima. Pesquisadora e arquivista da obra de Rita Lee, a professora lembra que a mutante foi a compositora mais censurada pela (nossa) ditadura militar. Letras proibidas, estratégias de driblar a tirania fascista, a escrita da voz feminina interditada são manejadas por Norma Lima a fim de apresentar a importância, a inovação e a luta por liberdade criativa, que, no caso do Brasil, é liberdade de expressão da mulher. Com farto material analisado, o livro guarda um procedimento caro à crítica de canção e à história da cultura brasileira. "Rita Lee, assim, simboliza a censura a espíritos livres, os quais, independentes da época em que existam, sempre incomodam os limitados. Os fatos analisados e ocorridos com ela e com sua obra clamam para que os tenebrosos anos de exceção nunca mais se repitam no Brasil, ao mesmo tempo que conclamam que a sociedade contemporânea - e mundializada - reflita sobre experiências antigas em novos cenários", conclui Norma Lima.

07 maio 2023

A Princesa


A quantidade de pessoas travestis e transexuais assassinadas no Brasil é assustadora. E com as garras fascistas sobre as poucas políticas públicas de inclusão, o número só tende a crescer. O livro A PRINCESA, misto de entrevista (a Maurizio Jannelli - ex-integrante das brigadas vermelhas) e prosa narrativa, apresenta "o avesso de um conto de fadas": a luta de Fernanda Farias de Albuquerque - do nordeste brasileiro a uma prisão italiana - para sobreviver ao horror transfóbico e à imposta marginalização. O livro é o resultado da montagem dos inúmeros bilhetes trocados entre Princesa e Maurizio, com a ajuda de Giovanni Tamponi. As histórias de resistência, os usos dos instrumentos de sobrevivência se sobrepõem, se justapõem. "Eu estava fresca de Brasil e isto dizia alguma coisa aos clientes. Eu sentia, pelo modo como eram atraídos pelo meu sorriso. Vendia exotismo, e só às seis da manhã acabei de realizar o último sonho. Exausta", anota Fernanda, no caderninho que transitava entre as celas, dando conta de sua chegada na Europa. A tradução de A PRINCESA é de Elisa Byington.

30 abril 2023

O som vertebrado


Edimilson de Almeida Pereira é poeta cuja obra tem minha atenção desde o primeiro poema lido. A cada livro, a cada poema, o rigor e o frescor da linguagem manejada por Edimilson mais se revela para mim enquanto concentrações de belezas cujas singularidades se presentificam em novidade e informação. "Os cães que fui me desconhecem. / Um tigre azul, / outro pintado - indeclináveis na língua", lemos no poema "O homem", do livro O SOM VERTEBRADO. Aqui a palavra falada é fixada sem prejuízo do sonoro. Se em Iniciação na cultura literária medieval, Segismundo Spina observa que "proclamada a superioridade e a anterioridade da letra em relação à melodia musical, surge então o poeta; e a fase do trovador e do troveiro entra em declínio. Há agora uma especialização de funções: o poeta compõe a letra, ficando a cargo do músico a melodia. A poesia deixa de ser cantada para se tornar cantável", Edimilson reencontra a ancestralidade do poético na voz e no corpo presente de Milton Nascimento, nublando as fronteiras do dito, do escrito. O que temos diante dos olhos são cantos que acionam nossas memórias sonoras. Isso restitui o caráter coletivizante, do canto coral que em algum momento da nossa história se perdeu, foi desperdiçado, ou recalcado: "há um deserto entre as begônias", escreve Edimilson. "Não é pelo que se perdeu que se canta, Camões?", pergunta. Em O SOM VERTEBRADO Edimilson totemiza leituras, audições, vivências afirmando que "O cerco às ideais tem aparatos / em Minas / ou em qualquer estado"

23 abril 2023

Caetano Veloso 50:500 - versos y versiones 1963-2012


Evangelina Maffei é a maior arquivista daquilo que sai sobre Caetano Veloso na imprensa. Não há como fazer pesquisa da obra do cancionista nascido no cosmopolita recôncavo baiano sem consultar o arquivo caetanoendetalle mantido pela organizadora no blogspot. Lançado há 10 anos, o livro CAETANO VELOSO 50:500, VERSOS Y VERSIONES 1963-2012 dá conta de compilar o trabalho primoroso de Evangelina. Cada canção lançada pelo artista recebe aqui um registro com data, disco e intérprete. Além de citações breves das letras. TODAS as letras de Caetano estão referidas aqui. O livro transita entre o catálogo, o almanaque, o dicionário e a curadoria inspiradora de Evangelina. Natural e moradora de Buenos Aires, a autora de CAETANO VELOSO 50:500, VERSOS Y VERSIONES 1963-2012 "se dedica a la investigación centrada en la música popular". O "se dedica" não é retórica vazia. Evangelina Maffei realiza e entrega à memória de nossa canção popular "más de 3.000 grabaciones en portugués y adaptaciones en español, catalán, alemán, finlandés, francés, inglés, italiano, japonés y sueco". Tudo feito pelo puro e simples sabor do gesto de ouvir canção popular brasileira, essa linguagem que se espraia pelo mundo como um vento caymmiano. Relicário imenso do amor à canção, o livro CAETANO VELOSO 50:500, VERSOS Y VERSIONES 1963-2012 está fazendo 10 anos e isso merece um registro e um agradecimento à autora. Que Evangelina tome esse registro como um beijo de gratidão.

16 abril 2023

Aurora: memórias e delírios de uma mulher da vida

 

AURORA: MEMÓRIAS E DELÍRIOS DE UMA MULHER DA VIDA registra a ambiguidade "da vida" no título do livro e da existência de Aurora Cursino. Quando ganhei o livro eu tinha uma vaga ideia de quem foi Aurora Cursino. Prostituta até ser internada no Complexo Psiquiátrico do Juquery, em 1944, Aurora finalmente tem sua obra e sua biografia guardadas com a atenção que a artista merece. O livro de Silvana Jeha e Joel Birman dá conta de transitar entre história, psicanálise, arte e literatura. É um livro de referência sobre como manejar tais disciplinas. E a interdisciplinaridade indica a potência da obra de uma artista que se inscreveu na pintura, experimentando eus no precário - sobras de papel-cartão e refugo do material são a base para expor o par sexo e violência - experimentado sob o jugo do controle patriarcal. "Os quadros dela são basicamente um ataque do patriarcado à mulher" e "Tentamos interpretar seus gritos e sussurros pictográficos como instrumentistas o fazem com uma partitura, com alguma liberdade e alguma lealdade à obra que Aurora produziu como interna do Juquery na década de 1950", escrevem Jeha e Birman. Tentaram e conseguiram. O que temos em mãos é um trabalho de arqueografia que nos dá conta de informar, pela voz da mulher prostituída, por exemplo, a vida no Mangue - espaço que seduziu artistas, de Vinicius de Moraes a Lasar Segall, passando pelo Oswald de Andrade de "O santeiro do mangue", no início do século XX. Como ser moderno quando ainda subjuga-se às mulheres o metro do homem? Aliás, foi Luciana (@illustrallu), que está desenvolvendo pesquisa de mestrado sobre o Santeiro, quem me deu o livro. Interessante pensar que quem primeiro reconheceu arte na obra de Cursino, artista que escreveu o corpo e pintou a existência, foi Patrícia Galvão, a Pagu. AURORA: MEMÓRIAS E DELÍRIOS DE UMA MULHER DA VIDA é um livro contundente e que apresenta uma mulher artista que antecipou muito do que anos mais tarde chamamos de "arte feminista"; e que soube escrever através e inclusive atravessada pela estetização da vida como forma de sobrevivência.

09 abril 2023

Futuro ancestral


No "Manifesto da Poesia Pau Brasil", Oswald de Andrade anotou que "Temos a base dupla e presente - a floresta e a escola". Esse aforismo ilumina a leitura de FUTURO ANCESTRAL. Que luxo ter Ailton Krenak pensando e re-presentificando esse Brasil que (ainda) temos: "Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil", como também escreveu Oswald. Organizado por Rita Carelli, mais do que um livro de alerta, ou apocalíptico, FUTURO ANCESTRAL é um livro de memória, de lembrança do que temos, mas que, submerge no excesso da vida pretensamente moderna (pra quem?). O pensamento de um "Estado plurinacional" defendido por Krenak é insurgente porque vai no núcleo duro do senso comum. O que nos leva a lembrar dos versos de Caetano Veloso quando canta que um índio virá "E aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio". É essa obviedade obnubilada pelo horror do progresso vazio que Krenak nos revela. "(...) Mas a verdade é que estamos vivendo projeções de futuros muito improváveis, embora continuemos preferindo essa mentira ao presente", diz o "filósofo originário", assim nomeado por Muniz Sodré na orelha de FUTURO ANCESTRAL.

02 abril 2023

Guerreira

 

No livro em que analisa o disco GUERREIRA Giovanna Dealtry manipula o adjetivo-título a fim de apresentar a voz que canta e a voz que vive por trás da voz que canta: Clara Nunes, cantora que assumiu na vida fora dos palcos gestos que a inscreveram na história de nossa canção popular como a tal mineira, criada no samba, filha de Ogum com Iansã, mulher guerreira. Note-se, numa cultura e sociedade machista e misógina, ser "guerreira" é um emblema que amalgama o veneno e o remédio de toda mulher. O canto de Clara flexiona essa destinação. Nesse sentido, "Clara, aqui, não se fixa, mas desloca-se constantemente entre a profusão de elementos que compõem sua vida pessoal e sua carreira", escreve Giovanna. Para a autora, na obra de Clara "as diferenças não desaparecem, não são subtraídas, mas somam-se em um todo complexo, sempre mutável e, por isso mesmo, vivo e potente". Sendo intérprete, Clara Nunes coassinou na voz e no corpo as canções de compositores de diversas expressões, mas mais evidentemente o samba, esse ethos em que nossos tabus são totemizados. GUERREIRA é disco, é adjetivo e é livro, verte-se em significante da cantora que, "no auge de seu domínio vocal e interpretativo", cantou e viveu os versos "Dentro do samba eu nasci / Me criei, me converti / E ninguém vai tombar a minha bandeira". Bandeira da fé na festa que Giovanna Dealtry tão bem analisa e nos re-apresenta.