11 junho 2023

Saia da frente do meu sol


O livro SAIA DA FRENTE DO MEU SOL guarda uma beleza rara: a sinceridade sem afetação. Felipe Charbel equilibra investigação intelectual (seu narrador lê, estuda, pesquisa enquanto escreve) e o que se convencionou chamar "escrita de si", com delicadeza e empatia pelo "fracasso" da empreitada de narrar o outro. Seja metaficção, seja "biografia especulativa", o que lemos é um narrador que se escreve escrevendo a vida de Ricardo, seu tio-avô. É tudo verdade e é tudo ficção. Sem conseguir inventar, o narrador imagina e expande as cenas capturadas em fotografias guardadas num armário. "Era como se a ânsia de inventar turvasse minha visão, me impedindo de assimilar o que se passava ao meu redor", escreve, inventando o que se passava ao redor, por trás, entre, dentro do Ricardo das fotos. "É ficção? Recorri à fantasia"; "Minha questão com as fotos do meu tio não passa pelo factual, pela reconstrução do acontecido". SAIA DA FRENTE DO MEU SOL singulariza o sujeito "comum", o tio velho e doente desconhecido que morava no quartinho dos fundos. O livro trata de algo pouco comum: a velhice do homem gay. "Como seria se fosse possível, naqueles dias, falar abertamente - e não aos sussurros - sobre essas questões mais íntimas?", pergunta-se o narrador sobre a solidão de Ricardo. (Silenciosamente, pergunto-me se o tio "esquisitão" um dia serei eu). "Tudo na história de Ricardo era uma página em branco". Por isso mesmo, o texto é composto por enxertos, citações, descrições, contos dentro de contos, anotações, constituindo-se, assim, a forma possível de se aproximar do outro: aos cacos. "A alteridade é, antes de mais nada, um necessário exercício de autocrítica", escreveu Haroldo de Campos. "O que vejo na foto quando olho para ela?", pergunta-se Charbel a cada mexida no arquivo, na memória, na fantasia. O que vejo no outro quando olho para ele?, parece querer nos fazer perguntar. E perguntamos.

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