No momento em que se discute se o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, deve ou não ser recolhido
"à escuridão do ventre de onde (para alguns) não deveria nunca ter
saído", Adriana Partimpim ressurge cantando "Tia Nastácia" no
seu disco Tlês (2012).
A canção é uma adaptação que Dorival Caymmi fez de outra
canção também sua "História pro sinhozinho". Se nesta tínhamos uma
certa Sinhá Zefa, naquela, feita para integrar a trilha sonora do seriado Sítio do Picapau amarelo (1977), temos
a presença de Sinhá Nastácia.
Do mesmo modo que fez ao tematizar a morte
("Saiba", no disco Adriana
Partimpim - 2004) e o amor entre Alexandre e Hefestião
("Alexandre", Dois -
2009), em atitude que parece pouco comum a uma criança, mesmo em tempos de
internet, Partimpim não dá respostas, ao contrário, complexifica a questão,
posto que ao cantar "Tia Nastácia" insinua reconhecer a força da
personagem na história da literatura e da formação da cultura brasileira.
A pergunta é: negar a existência do racismo, ocultar ele dos
olhos das crianças – pares de Partimpim – promoverá sua extinção, ou
simplesmente servirá apenas como mais uma máscara à hipocrisia? Partimpim
parece dizer "não" ao não, à proibição dos livros. Afinal, precisamos
manter os olhos cheios de esperança por uma educação livre, laica e plural. É
preciso discutir todos os temas.
Sim, ao que tudo indica Lobato disse sentir inveja dos
norte-americanos geradores da Ku Klux Klan. No entanto, o simples gesto de
taxar o autor de racista não resolve a segregação disseminada, além de ser uma
redução precária da obra total, densa e ampla do autor. É como dizer hoje, algo
anacronicamente, que Gregório de Matos era racista, pela forma como "tratava"
as mulheres negras em sua poesia, lá nos idos seiscentos. Ou que Machado de
Assis era racista por, aparentemente, não tratar do tema da escravidão. Texto é
contexto, aprendemos isso desde cedo.
E como não chamar para a conversa a canção
"Sinhá", de Chico Buarque e João Bosco, cujos versos "(...) Por
que talhar meu corpo / Eu não olhei Sinhá / Para que que vosmincê / Meus olhos
vai furar / Eu choro em iorubá / Mas oro por Jesus / Para que que vassuncê / Me
tira a luz (...)", por exemplo, em que uma escrava roga clemência,
argumentando-se já europeizada, tematizam a formação complexa do povo
brasileiro?
Assim como as demais formas de preconceito e discriminação,
e se Aqui ninguém é branco, como tão
lucidamente defende a professora Liv Sovik em seu livro, o racismo – crime
inafiançável – precisa ser reconhecido e debatido. "A escravidão
permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. (...) É
ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte",
anotou Joaquim Nabuco.
Na canção de Caymmi Sinhá Nastácia é celebrada como aquela
que nina: entoa a canção necessária à construção da imaginação do sinhozinho.
Contraponto de Dona Benta (de formação europeia), Nastácia – “negra, de beiços
grandes, assustada e medrosa, cozinheira de mão cheia” – enche o Sítio do Picapau Amarelo com as
narrativas do folclore brasileiro.
É por este viés que podemos dizer que a canção "Tia
Nastácia" trabalha com a polifonia: há uma primeira voz que narra a cena
da "hora em que o sol se esconde / E o sono chega / [e] O sinhozinho vai
procurar / A velha de colo quente / Que canta quadras e conta histórias";
uma segunda voz que se desdobra em duas: a voz do sinhozinho pedindo canção e a
voz do narrador da canção apresentando Sinhá Nastácia – "que conta
história / sabe agradar / que quando nina / Acaba por cochilar / [e] vai
murmurando / estórias para ninar"; e uma terceira voz que é a voz da
própria Sinhá Nastácia cantando as tais estórias cheias de memória e
musicalidade de um povo: "Pêxe é esse meu filho / Não meu pai / Pêxe é
esse mutu, manganem / É a toca do mato guenem, guenem / Suê filhoê / Tocaê marimbaê".
Fica claro e cabe lembrar que a polifonia é a coexistência e
a interação de várias vozes em um mesmo plano narrativo. A polifonia
complexifica a estrutura, como podemos perceber na canção de Caymmi, com a
mescla dos registros conversacionais exigindo do ouvinte a atenção para a troca
e a interação entre os turnos. Além disso, não há uma narrativa encadeada,
favorecendo a mistura e a justaposição de informações diferentes. O que, por
sua vez, dificulta e amplia a definição da categoria do “autor” daquilo que é
dito. E como não pensar neste artifício estético como um instrumento poderoso
de análise da cultura brasileira?
Em "Tia Nastácia" a voz do narrador convive com a
voz da velha de colo quente e, penso, com a voz do sinhozinho embevecido.
Repito de outro modo: a canção desloca a personagem de seu contexto
pretensamente preconceituoso e discriminatório e a posiciona no lugar exato de
quem fornece canção à vida de alguém. Lugar que, de fato, segundo muitos pesquisadores,
foi/é ocupado pelas escravas e ex-escravas: substitutas legítimas das mães
biológicas, estando estas mais preocupadas com outras posições na sociedade.
Sinhá Nastácia aparece na maior parte da obra de Lobato como
a reprodução da Mammy norte-americana – matrona, geralmente solteira e dócil feita
para cuidar da cria dos brancos. Na canção, por sua vez, percebo uma quebra na
relação de superioridade que vai do sinhozinho à ex-escrava: aqui a
subordinação é amolecida. O uso do "sinhá", redução carinhosa e
brasileira para "senhora", é índice disso.
Nastácia é a mantenedora da vida, da canção. Importa lembrar
que das mãos de Tia Nastácia nasceu Emília: a boneca-gente, esperta e atrevida –
mímeses (pré-representação) da Partimpim da capa do disco Tlês? Por falar nela, a postura da mão da Partimpim-boneca tanto
remete ao 3 (tlês), quanto ao gesto de “ok”: tudo certo. Mas também é índice do
“gesto do conhecimento” na posição de lótus para meditação. O que poderia
explicar o clima mais cool (para
dentro) de Tlês, um tanto diferente
dos discos anteriores.
Talvez por investir demais na “voz” do sinhozinho e no
acalanto contido na letra, a versão de “Tia Nastácia” de Partimpim não tem o
pulso vibrante da versão de Mariene de Castro (Tabaroinha, 2012), que lindamente impregnou a canção de extratos
sonoros e gestualidades vocais que iluminam a canção por dentro, investindo no
axé (energia, poder, força) da “voz” de Nastácia. Partimpim
se aproxima mais da versão de 1977 do próprio Caymmi e da que Maria Bethânia
fez para o disco Pirata (2006), onde
canta “História pro Sinhozinho”, versão original da canção, com a presença de
Sinhá Zefa, ao invés de Sinhá Nastácia.
"Tia Nastácia" na voz de Partimpim "É
Gilberto Freyre em sua glória", dirá Adriana Calcanhotto, cavalo de
Partimpim. Seja como for, o racismo na obra de Lobato não pode ser motivo para
a proibição de livros. Mas, em atitude superiormente interessante, deve servir
de mote para debates entre pais e filhos, educadores e alunos, sociedade e
indivíduos. É isso que Partimpim me diz quando a ouço cantar "Tia
Nastácia". Isso sim auxiliará positivamente na formação das crianças:
pares de Partimpim – a criança que ainda não domina erres e eles, daí o tlês título do disco, mas já sabe o
quanto de ensinamento, amor e alegria as histórias da Sinhá Nastácia podem
trazer.
***
Tia Nastácia
(Dorival Caymmi)
Na hora em que o sol se esconde
E o sono chega
O sinhozinho vai procurar
Hum hum hum
A velha de colo quente
Que canta quadras
Que conta história para ninar
Hum hum hum
Sinhá Nastácia que conta estória
Sinhá Nastácia sabe agradar
Sinhá Nastácia que quando nina
Acaba por cochilar
Sinhá Nastácia vai murmurando
Estórias para ninar
Pêxe é esse meu filho
Não meu pai
Pêxe é esse mutu, manguenem
É a toca do mato guenem, guenem
Suê filhoê tocaê marimbaê
(Dorival Caymmi)
Na hora em que o sol se esconde
E o sono chega
O sinhozinho vai procurar
Hum hum hum
A velha de colo quente
Que canta quadras
Que conta história para ninar
Hum hum hum
Sinhá Nastácia que conta estória
Sinhá Nastácia sabe agradar
Sinhá Nastácia que quando nina
Acaba por cochilar
Sinhá Nastácia vai murmurando
Estórias para ninar
Pêxe é esse meu filho
Não meu pai
Pêxe é esse mutu, manguenem
É a toca do mato guenem, guenem
Suê filhoê tocaê marimbaê
Suprema ignorância dizer que Monteiro lobato era racista,até mesmo Joaquim nabuco, patrono do abolicionismo, achava que a raça branca era superior,pois fazia parte da cultura da época,havia até uma pseudo-teoria científica que afirmava isso.como você bem disse: analisar o texto em seu contexto.
ResponderExcluirDepois de ler "Dorival é o mar"adquiri os dois songbooks e estou em imersão no Doriva... Alguém perguntou sobre a música é não encontrei. Seu blog esclareceu tudo. História pra sinhozinho. Ah e lendo música é o que venho fazendo, leio as biografias e encontro as músicas que depois vou tocar. Vou montando um repertório de músicas vindas dá leitura. Parabéns muito bom o texto.
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