Porque a performance vocal trabalha com a energia dos mitos, sonhos e paixões do cantor e do ouvinte, quando Gilberto Gil interpreta "No mundo da lua" (para a trilha sonora do filme Gonzaga – de pai pra filho, 2012), o compositor conecta-se ao Lua, vira o mundo deste de pernas para o ar, lançando-se também no ar como presentificação material daquilo que o outro (homenageado) é.
É na performance vocal de quem canta o canto de Luiz Gonzaga que as canções – imateriais – do rei do baião (sobre)vivem a engendrar vida nos signos da seca, do Nordeste, do Brasil. Na letra da canção, o canto tanto faz referência às canções e ao modo de cantar de Luiz Gonzaga, quanto ao canto-lugar: "E o povo canta o canto que eu cantei / Não importa o certo e o errado, o bem e o mal", diz o sujeito da canção.
Gilberto Gil, que a partir do contato com a Banda de Pífanos de Caruaru se encheu de novas perspectivas para pensar junto com Caetano Veloso a Tropicália como um projeto estético brasileiro, rompe a separação entre sua persona e a persona de Gonzaga através da canção, do canto do povo de um lugar.
Cavalo de Gonzaga, Gilberto Gil é Gonzaga presentificado, ambos feitos de canção. E o que era para ser uma homenagem transmuta-se em contato e revelação. Pela voz por vezes embargada de Gil no programa de TV, Gonzaga se comunica de novo com seu povo. Gonzaga-sujeito-cancional reconhece no milagre divino o poder de cantar a felicidade da existência. E renega tudo que não for motor de canção: "Se o milagre acontecesse de eu voltar / Sem poder sair cantando por aí / Juro que eu pedia a Deus pra me polpar / De um milagre assim tão besta, tão chinfrim", canta via Gil.
E, assim, a primeira pessoa (Luiz) soa como eu (Gil) sou, a segunda pessoa (Gil) soa como tu (povo que canta o canto que Luiz cantou) és e a terceira pessoa (o mesmo povo) soa como ele (Luiz) também. Em um ciclo infinito de filigranas que se conectam e se plasmam umas às outras constituindo a esperança de um dia não ser mais triste não.
Se por um lado Vinícius de Moraes cantou que "o samba é a tristeza que balança / e a tristeza tem sempre uma esperança / (...) / de um dia não ser mais triste não", e por outro lado o grupo Falamansa cantou que "toda mágoa que passei / é motivo pra comemorar / pois se não sofresse assim / não tinha razões pra cantar", o canto de Luiz mostrou que também o baião, outra forte e potente matriz sonora identitária do Brasil, afirma que "o meu cantar é um soluço / a galopar no maçapê".
Tal e qual Jackson do Pandeiro que dizia "eu quero ver a confusão / olha aí o samba-rock meu irmão", Gonzaga soube mirar, estilhaçar e condensar as sonoridades de sua região a um nível de significação e entendimento universais. Mostrou de onde vem o baião: "Vêm debaixo do barro do chão". De onde "suspira uma sustança sustentada por um sopro divino".
"O termo 'baião', sinônimo de rojão, já existia, designando na linguagem dos repentistas nordestinos, o pequeno trecho musical tocado pela viola, que permite ao violeiro testar a afirmação do instrumento e esperar a inspiração, assim como introduz o verso do cantador ou pontua o final de cada estrofe. No repente ou no desafio, cuja forma de cantar é recitativa e monocórdia, o 'baião' é a única sequência rítmica e melódica. O grande estalo de Luiz Gonzaga foi de perceber a riqueza desse trechinho musical, de sentir que ele carregava em si a alma nordestina, e todas as influências que marcaram a música do Nordeste", anota Dominique Dreyfus no livro Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga.
E é este sopro milagreiro que faz Gilberto Gil cantar "No mundo da lua". Posto que é de lá, das noites do sertão, que vem os elementos constituintes da canção (letra, música e voz), Gilberto Gil ao cantar é Luiz, assim como o povo ao cantar as canções gravadas é Gonzaga xaxando para xaxar, cantando para cantar: de novo. "Só faz milagres quem crê que faz milagres / como transformar lágrima em canção", diria Zeca Baleiro.
"Saudade o meu remédio é cantar", parece ser o mote de Gilberto Gil e do povo que mantem acesa a fé na festa disseminada por Gonzaga. E assim a tristeza balança, a vida se enche de graça, mesmo sem sentidos aparentes para tanta miséria e dor. Lágrima em canção: "Tudo em volta é só beleza / céu de abril e a mata em flor". E o milagre acontece: Gonzaga está. E junto com tudo o que o seu canto e suas canções mimetizam.
Fustigados pela seca e pelo eterno vento, o sujeito cancional criado na voz de Gil se une ao sujeito da canção que Gonzaga pseudo-psicofonicamente recita. "Que vocês ainda possam me escutar / Através das minhas velhas gravações / É sinal que o mundo vai continuar / A viver de mitos, sonhos e paixões". Os versos cantados por Lua indicam que pela materialidade dos arquivos sonoros gravados é permitido ao cantor viver eternamente. Além do bem e do mal. "A canção do povo alegre não tem fim", diz Gil.
É na performance vocal de quem canta o canto de Luiz Gonzaga que as canções – imateriais – do rei do baião (sobre)vivem a engendrar vida nos signos da seca, do Nordeste, do Brasil. Na letra da canção, o canto tanto faz referência às canções e ao modo de cantar de Luiz Gonzaga, quanto ao canto-lugar: "E o povo canta o canto que eu cantei / Não importa o certo e o errado, o bem e o mal", diz o sujeito da canção.
Gilberto Gil, que a partir do contato com a Banda de Pífanos de Caruaru se encheu de novas perspectivas para pensar junto com Caetano Veloso a Tropicália como um projeto estético brasileiro, rompe a separação entre sua persona e a persona de Gonzaga através da canção, do canto do povo de um lugar.
Cavalo de Gonzaga, Gilberto Gil é Gonzaga presentificado, ambos feitos de canção. E o que era para ser uma homenagem transmuta-se em contato e revelação. Pela voz por vezes embargada de Gil no programa de TV, Gonzaga se comunica de novo com seu povo. Gonzaga-sujeito-cancional reconhece no milagre divino o poder de cantar a felicidade da existência. E renega tudo que não for motor de canção: "Se o milagre acontecesse de eu voltar / Sem poder sair cantando por aí / Juro que eu pedia a Deus pra me polpar / De um milagre assim tão besta, tão chinfrim", canta via Gil.
E, assim, a primeira pessoa (Luiz) soa como eu (Gil) sou, a segunda pessoa (Gil) soa como tu (povo que canta o canto que Luiz cantou) és e a terceira pessoa (o mesmo povo) soa como ele (Luiz) também. Em um ciclo infinito de filigranas que se conectam e se plasmam umas às outras constituindo a esperança de um dia não ser mais triste não.
Se por um lado Vinícius de Moraes cantou que "o samba é a tristeza que balança / e a tristeza tem sempre uma esperança / (...) / de um dia não ser mais triste não", e por outro lado o grupo Falamansa cantou que "toda mágoa que passei / é motivo pra comemorar / pois se não sofresse assim / não tinha razões pra cantar", o canto de Luiz mostrou que também o baião, outra forte e potente matriz sonora identitária do Brasil, afirma que "o meu cantar é um soluço / a galopar no maçapê".
Tal e qual Jackson do Pandeiro que dizia "eu quero ver a confusão / olha aí o samba-rock meu irmão", Gonzaga soube mirar, estilhaçar e condensar as sonoridades de sua região a um nível de significação e entendimento universais. Mostrou de onde vem o baião: "Vêm debaixo do barro do chão". De onde "suspira uma sustança sustentada por um sopro divino".
"O termo 'baião', sinônimo de rojão, já existia, designando na linguagem dos repentistas nordestinos, o pequeno trecho musical tocado pela viola, que permite ao violeiro testar a afirmação do instrumento e esperar a inspiração, assim como introduz o verso do cantador ou pontua o final de cada estrofe. No repente ou no desafio, cuja forma de cantar é recitativa e monocórdia, o 'baião' é a única sequência rítmica e melódica. O grande estalo de Luiz Gonzaga foi de perceber a riqueza desse trechinho musical, de sentir que ele carregava em si a alma nordestina, e todas as influências que marcaram a música do Nordeste", anota Dominique Dreyfus no livro Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga.
E é este sopro milagreiro que faz Gilberto Gil cantar "No mundo da lua". Posto que é de lá, das noites do sertão, que vem os elementos constituintes da canção (letra, música e voz), Gilberto Gil ao cantar é Luiz, assim como o povo ao cantar as canções gravadas é Gonzaga xaxando para xaxar, cantando para cantar: de novo. "Só faz milagres quem crê que faz milagres / como transformar lágrima em canção", diria Zeca Baleiro.
"Saudade o meu remédio é cantar", parece ser o mote de Gilberto Gil e do povo que mantem acesa a fé na festa disseminada por Gonzaga. E assim a tristeza balança, a vida se enche de graça, mesmo sem sentidos aparentes para tanta miséria e dor. Lágrima em canção: "Tudo em volta é só beleza / céu de abril e a mata em flor". E o milagre acontece: Gonzaga está. E junto com tudo o que o seu canto e suas canções mimetizam.
Fustigados pela seca e pelo eterno vento, o sujeito cancional criado na voz de Gil se une ao sujeito da canção que Gonzaga pseudo-psicofonicamente recita. "Que vocês ainda possam me escutar / Através das minhas velhas gravações / É sinal que o mundo vai continuar / A viver de mitos, sonhos e paixões". Os versos cantados por Lua indicam que pela materialidade dos arquivos sonoros gravados é permitido ao cantor viver eternamente. Além do bem e do mal. "A canção do povo alegre não tem fim", diz Gil.
***
No mundo do lua
(Gilberto Gil)
Se o milagre acontecesse de eu voltar
E o meu vulto aparecesse no sertão
E o povo me pedisse pra cantar
E na hora me faltasse o vozeirão
Se o milagre acontecesse de eu voltar
Sem poder sair cantando por aí
Juro que eu pedia a Deus pra me polpar
De um milagre assim tão besta, tão chinfrim
Afinal de contas se ainda sou rei
É que aí na terra tudo é tão real
E o povo canta o canto que eu cantei
Não importa o certo e o errado, o bem e o mal
Que vocês ainda possam me escutar
Através das minhas velhas gravações
É sinal que o mundo vai continuar
A viver de mitos, sonhos e paixões
(Gilberto Gil)
Se o milagre acontecesse de eu voltar
E o meu vulto aparecesse no sertão
E o povo me pedisse pra cantar
E na hora me faltasse o vozeirão
Se o milagre acontecesse de eu voltar
Sem poder sair cantando por aí
Juro que eu pedia a Deus pra me polpar
De um milagre assim tão besta, tão chinfrim
Afinal de contas se ainda sou rei
É que aí na terra tudo é tão real
E o povo canta o canto que eu cantei
Não importa o certo e o errado, o bem e o mal
Que vocês ainda possam me escutar
Através das minhas velhas gravações
É sinal que o mundo vai continuar
A viver de mitos, sonhos e paixões
Prezado Leonardo,
ResponderExcluirGostei bastante da sua escrita, citações e comentário sobre esta canção de Gil. Confesso que assisti o filme, mas não lembrava mais que ela estava na trilha sonora. E, principalmente, de ter na letra a citação de Ituaçu, cidade do interior da Bahia, onde Gil morou dos primeiros dias do nascimento até uns nove nos de idade.
Entre as várias referências citadas no seu texto, me agradou em especial, a de Dominique Dreyfus, do seu maravilhoso livro "Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga", que dos livros que já li sobre Gonzagão, talvez seja o melhor e a curiosa história dela com Luiz e a suas "desistências" para escrever o livro.
Após ter conhecido este seu blog, vou dar continuidade, quando possível, a leitura dos comentários de outras canções de sua grande lista, sobra a Música Popular Brasileira.
Meus parabéns e um grande abraço.
Esmon Primo (Mucugê - Bahia)
esmonprimo@yahoo.com.br