Cantar uma canção implica em performatiza-la - torna-la
concreta pela gestualidade vocal – e mima-la, em um ato metacancional, injetar
vida (calor) na canção. Cantar uma canção é tencionar e misturar matéria e
espírito, sendo este um produto do cérebro (da consciência) e do coração (dos
riscos).
Em sua investigação sobre "'canção ruim', voltada para
a satisfação de exigências, que por definição são banais, epidérmicas,
imediatas, transitórias e vulgares" (p. 295-296), Umberto Eco, em
"Canção de consumo" (ver Apocalípticos
e integrados), sugere que é preciso ter cuidado na análise das questões
relacionadas à crise do sujeito versus as novas tecnologias, para que não
caiamos nem no elogio vazio da técnica, nem no preconceito ou na nostalgia vã.
É preciso pensar a complexidade do problema que distingue
cultura de entretenimento e cultura como alimento do espírito, pois é na
formação cumulativa das experiências - entre o entreter e o pensar – que o
indivíduo integral se rascunha, vive e atua.
Se a cultura como alimento do espírito nos sugere a
emancipação do indivíduo, não podemos esquecer que a técnica (as modernas
possibilidades de gravação e reprodução de uma canção, por exemplo) é um
produto (fruto) da marcha do humano. Para o bem e para o mal.
Se hoje, com a dificuldade que desenvolvemos sobre a duração
na capacidade de atenção, já que há inúmeros apelos e intensidades exigindo
nosso olhar e nosso ouvido – podemos mudar de faixa musical em um toque –, o
cérebro pulsa em inúmeras frequências, parece que estamos diante do fato de que
as nossas competências cognitivas apontam para a afirmação nietzschiana de Paul
Valéry: "O mais profundo é a pele".
E é também Valéry quem anota: "– Adeus, fantasmas
(Leonardo, Leibniz, Kant, Hegel, Marx)! O mundo já não precisa de vocês. Nem de
mim. O mundo, que batiza com o nome de progresso sua tendência a uma precisão
fatal, procura unir aos benefícios da vida as vantagens da morte".
Por sua vez, Umberto Eco escreve: "O drama de uma
cultura de massa é que o modelo do momento de descanso se torna norma, faz-se o
sucedâneo de todas as outras experiencias intelectuais, e portanto o
entorpecimento da individualidade, a negação do
problema, a redução ao conformismo dos comportamentos, o êxtase passivo
requerido por uma pedagogia paternalista que tende a criar sujeitos
adaptados". (idem, p. 303).
Mas, como afirmar com Umberto Eco que "a música de
consumo é um produto industrial que não mira a intenção de arte, e sim à
satisfação das demandas do mercado" (idem, p. 296) perante a audição de
Alice Caymmi cantando "Sangue, água e sal", de Alice Caymmi e Paulo
César Pinheiro (Alice Caymmi, 2012)?
Ao que tudo indica, haveria uma hierarquia dentro da cultura
do entretenimento, em que uma canção seria mais ou menos arte, numa escala
hipotética e infrutífera diante da competência humana e individual de
ressemantizar os objetos vindos da estrutura comercial da sociedade de massas.
Mesmo mediatizada e a mercê do sistema econômico, a canção
popular não se furta das marcas e cicatrizes da tradição, do tempo, da história
e da garganta de quem lhe deu vida. Guardada em um arquivo eletrônico, ela
aponta que as tecnologias transformam o homem (ingênuo e complexo), porque
vindas deste.
Em "Sangue, água e sal", a voz de Alice Caymmi e o
acompanhamento melódico derivado da mítica sirênica se unem para figurativizar
a imagem que estampa a capa do disco: uma neo-sereia surrada pelo tempo,
multiplicada em outras pela breve história do sujeito e ressacada por temer
Yemanjá.
A rainha do mar aparece aqui como fantasmagoria da fusão
amor-morte, da vida que só existe no risco de morrer, se afogar, desaparecer:
"Mergulhar no mar, não saber voltar / se deixar levar pela maré". O
sujeito cancional que surge na interpretação de Alice rompe a dor com efeitos
eletrônicos, ciranda a ilha com técnica e quer morrer para viver com Yemanjá -
a grande sereia, mãe da sereia Alice.
"Sangue, água e sal" trai e não trai a
"lógica das fórmulas" identificadas por Eco nas canções de consumo.
Sim, há um tempo que se adéqua ao tempo breve das canções de consumo. Mas o
modo e o cuidado identificado pelo ouvinte na execução eternizadora (porque
fixa, gravada) da canção desperta um "expandir para dentro", um viver
em si, uma quietude desestabilizadora que promove o pensamento, a concentração.
A artesania (a singularidade) está na voz de quem canta, é isso que alguns
teóricos do elogio à escrita não percebem.
Ou seja, não só de escrita e leitura vivem as experiências
do indivíduo. Ele não sai sem marcas. E este processo é individual e singular,
mexe com fissuras e crivos únicos. Por isso o erro das generalizações quando o
assunto é arte, conhecimento e construção do eu.
***
Sangue, água e sal
(Alice Caymmi / Paulo César Pinheiro)
À luz do luar
flores de Yemanjá
cobrem o altar do meu amor
Sangue, água e sal
o amor não tem dó
de quem não tem medo de amar
Pode se afogar, desaparecer
quem nunca temeu Yemanjá
Mergulhar no mar, não saber voltar
se deixar levar pela maré
Provavelmente você sabe o que é ouvir uma música e se perguntar "O que exatamente ele quis dizer agora?". Ai,logo, se escuta mais, tenta interpretar e procura uma interpretação que já existe e que, por preguiça, você possa atribuir também como sua. Foi mais ou menos isso o que me aconteceu para vir parar no seu blog, Leonardo. E de imediato me encantei com seu trabalho. Cada post rico, cada música boa que eu nem conhecia. Parabéns! Fico feliz por saber que ainda há pessoas que usam a internet para fazer divulgações de qualidades e com tamanha perfeição. Infelizmente, sou só um jovem estudante e meus elogios não contribuem em nada na sua carreira, mas como pessoa, saiba que são sinceros. Um Abraço, pode ter certeza que voltarei mais vezes.
ResponderExcluirAgradeço as palavras gentis, André. E tenha a certeza de que suas visitas e seus comentários contribuem bastante para minha formação.
ResponderExcluirVolte sempre! A casa é nossa!
Abraço
Leonardo