Em "A crise da filosofia messiânica" (In: A utopia
antropofágica) Oswald de Andrade anota que o canibalismo é um tipo de
antropofagia. Porém, enquanto o segundo trata-se de um rito, o primeiro
acontece movido pela fome e pela gula. Ambos caracterizam uma "fase
primitiva de toda a humanidade" (p. 138).
A antropofagia por fome se contrapõe à antropofagia ritual
naquilo que esta tem de transformar o tabu em totem: "Do valor oposto, ao
valor favorável". "A vida é devoração pura. Nesse devorar que ameaça
a cada minuto a existência humana, cabe ao homem totemizar o tabu",
escreve Oswald (p. 139). E o que é o tabu, "senão o intocável, o
limite?", pergunta-se.
O indivíduo ocidental é educado a jogar fora toda prosódia e
todo saber oral, em benefício do racionalismo. No entanto, nas coerentes
palavras de Tom Zé: "Aquilo que os meninos do Nordeste jogavam fora quando
travavam contato com Aristóteles escapulia do córtex, se alinhava no hipotálamo
e ali adormecia. Tornava-se lixo, só que um lixo dotado de lógica própria.
(...) Um lixo lógico!" (Revista Bravo! 179, jul/2012).
O "lixo lógico" não é outro senão a promoção do
"tabu em totem", a construção inconsciente de uma "gaia
ciência", de um saber não catalogado e que escapa às ciências instituídas.
Saber que se cria e se alastra sem o controle da razão. Eis o que venho
defendendo aqui em relação ao saber implícito à canção popular brasileira, com
suas profusões de sujeitos cancionais.
Como já escrevi: o sujeito cancional é uma categoria da
performance vocal; é a entidade - primitiva - que surge no momento exato em que
a canção é executada por alguém e ouvida por outro alguém conectado ao primeiro
via "estados-de-espírito" no instante do tempo que dura a canção. Daí
a riqueza de nossa canção popular e suas múltiplas temáticas totêmicas,
favorecedoras da pluralidade dos sujeitos cancionais e, consequentemente, da "gaia
ciência".
Parafraseando Nietzsche, podemos afirmar que o habitat dos
grandes problemas é a canção, na rua. Ao menos no Brasil, onde tradicionalmente
a canção dá voz a saberes os mais diversos, seja por fome, seja por ritual de inserção
íntima na vida coletiva distante da divisão do trabalho e da organização da
sociedade em classes. Dito de outro modo: Não falta canção para mimar o
brasileiro e fazê-lo se sentir incluído, igual.
Isso é resultado da devoração, da antropofagia que nos une.
Achar que um tipo ou um gênero de canção é ruim e/ou aliena o indivíduo é
subestimar a competência antropofágica do indivíduo. Aliena em que? Para que?
Em detrimento de que? Eis as perguntas que devemos fazer diante do latente
preconceito: "(...) mas para outros não existia aquela música não podia porque não podia
popular aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não
tarantina", canta o narrador de Galáxias, de Haroldo de Campos.
O fato é que o saber dos "analfabetos em Aristóteles
(os "analfatóteles"), nas palavras de Tom Zé, impregnam a canção
mediatizada com brilho e força. Seja o funk com a totemização do sexo, seja o
rap com a totemização da violência, por exemplos.
É preciso pensar a dívida para com este saber não
científico. É este débito - que dessacraliza o intocável para lhe restituir a
beleza - que move, por exemplo, o grupo Cabruêra, com suas ressignificações da
cultura popular oral nordestina: prenha da cultura moçárabe e dos cantadores
das feiras livres.
O som do Cabruêra é o processamento de dados vocais, ainda
transmitidos vocalmente na rua, na "festafeira no pino do sol a
pino", como canta o narrador de Galáxias, em sua lagrimalegria esperançosa
por suporta a condição presente.
Calcado na mistura inventiva da música nordestina com os
sons do oriente, o disco Nordeste oculto (2012) recupera a promiscuidade
originária. Aboio e microtonalidade, cítara e safona, xote e raga, a feira de
Campina Grande e um mercado público do Oriente Médio em devoração
antropofágica, ritual.
O disco é uma viagem sonora rica, complexa e orgânica
(simples, natural). Mas, para continuar no tema da tradução do tabu (o
intocável) em totem, gesto comum nas culturas antropófagas e tendentes ao matriarcado,
destaco "Beira mar", de Alberto Marsicano, Arthur Pessoa, Pablo
Ramires, Edy Gonzaga e Leo Marinho, e "Marujo antigo", de Oliveira de
Panelas. Vindo esta antes daquela na sequencia do disco, aquela é a resposta
deformativa e sagradora desta.
O grande repentista-trovador Oliveira de Panelas (canto-quase-fala
e viola) tem sua função de cantador ressemantizada na canção do Cabruêra. O
saber que lhe constitui e que ele oferece à cultura é absolvido pelo Cabruêra
(percussão, violão, teclados, guitarra, acordeom, viola, baixo) que, por sua
vez, devolve a tradição à tradição: desreprimindo o desejo.
"Cantador pra cantar beira mar comigo / tem que saber
bem do oceano", canta do sujeito de "Beira Mar" após o sujeito
de "Marujo antigo" ter dito "além de poeta sou marujo antigo /
conheço esses mares por dentro e por fora (...) sou filho das águas convivo com
elas / cantando galope na beira do mar".
O encontro hibridizador dos dois poetas - do "marujo
antigo" com o "beira mar"; daquilo que é dito com o modo como é
dito - revela a tradição em movimento: "lírica viagem de brisa e
luar". O que ouvimos não chega a ser um desafio no sentido clássico do
termo, mas um diálogo com a atemporalidade das sabedorias populares. Algo só
possível na eficácia do gesto devorador do sujeito cancional criado pelo
Cabruêra.
***
Marujo antigo
(Oliveira de Panelas)
Além de poeta sou marujo antigo
Conheço esses mares pode dentro e por fora
Dos raios poentes à luz da aurora
O ritmo das águas viajam comigo
Sereias de sonhos entendem o que eu digo
Na lírica viagem de brisa e luar
O mar nordestino é meu reino é meu lar
Não vejo fronteiras nas suas procelas
Sou filho das águas convivo com elas
Cantando galope na beira do mar
Beira mar
(Alberto Marsicano / Arthur Pessoa /
Pablo Ramires / Edy
Gonzaga / Leo Marinho)
Cantador pra cantar beira mar comigo
Tem que saber bem do oceano
Dos seus movimentos não terão engano
A fim de livrar-se de qualquer perigo
Além de poeta sou marujo antigo
Conheço galope na beira do mar
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