Tenho escrito aqui que a canção tem algo de materno, naquilo que ela é de alento, sentido e presença. Porque feita de música, poesia e voz - signos femininos(?) -, a canção é feminina. As mulheres sempre cantaram. Daí as musas e as sereias figurarem como símbolos de fonte e transmissão da mensagem, da história.
A voz (a feminina) aqui representa um dizer (a ação de vocalizar), mais do que um dito (significado). Neste sentido, o ato de dizer já é comunicar que alguém é e estar. Dizer é concretizar a unicidade de quem diz, tornando este um ser diferente de todos os demais.
Obviamente, estou tratando mais da escuta, em detrimento do visual, como metáfora guia da verdade. E indo no caminho inverso ao que Heráclito sentenciou: "Os olhos são melhores testemunhas que os ouvidos". Isso porque, como Adriana Cavarero (ler Vozes plurais) anota: "antes ainda de comunicar o que quer que seja, (...), a voz humana comunica ela mesma, ou seja, a sua unicidade".
Na prática, nada parece ser tão estanque e/ou bipolar (macho/fêmea) assim. Os versos da canção "Macha fêmea", de Arnaldo Antunes, Paulo Tatit e Marcelo Fromer, jogam ludicamente com isso invertendo radicalmente os conceitos: "cérebra caralha baga saca pescoça prepúcia ossa / nádego boceto têto côxo vagino cabeço boco // corpa moço dentra foro moça / orgama coita palavro sexa goza". Ou seja, esses versos liberam - "liberal gerou" - as palavras dos sentidos estáticos historicamente colados a elas .
E assim chego à canção "Músico", de Herbert Vianna, Bi Ribeiro e Tom Zé. Nela há uma reivindicação latente engendrada pelo "músico" (masculino) que quer o compartilhamento das glórias recebidas pela "música" (feminina) por disseminar verdades, "desatar presilhas".
O sujeito da canção faz isso recorrendo à mítica da "expulsão do paraíso", "Ligue-se o Éden / Som e maçã / Serpentes eternas / Sobem por nossas pernas", quando ele inseminou ela e juntos ganharam o mundo, perdendo o paraíso. Eis a questão que se configura aqui, longe da nostalgia: é o músico (seja um masculino, um feminino, um assim) quem injeta a semente (energia sonora) na música? Os argumentos do sujeito da canção levam a crer que sim. Mas ele também, por sua vez, não age encantado por ela?
Posto que a pergunta é mais importante que a resposta, este círculo infinito encontra melhor tensão na transcriação que Lucas Santtana deu à canção lançada originalmente no disco Severino, dos Paralamas do sucesso. Ao dividir os vocais com a cantora Céu, no disco O Deus que devasta mas também cura (2012), Lucas Santtana promove a refração e a transvaloração daquilo que define com nitidez músico/música, masculino/feminina.
Aliando-se ao gesto do sujeito de "Macha/fêmea", a versão de Lucas Santtana, com voz "masculina" e "feminina" discutindo questões íntimas àquilo que cada parte deveria ser, faz um profundo corte epistemológico no tema dos gêneros. E aí se condensa e se prolifera o núcleo duro que o título do disco guarda: O Deus que devasta é o mesmo que cura.
São muitas as possibilidades de leituras para a recriação de Lucas Santanna. A começar pelo arranjo melódico, pela sonoridade eletrônica-orgânica complexa criada para proporcionar a "fala", por sua vez também complicada, porque um quase poema concreto, do sujeito. E todos os elementos se fundamentam na voz, nas vozes.
No mais "Cadeia de gens / Somos um trem, Ô-Ô / Um trem que tem que tem que tem / A ignição de ser pó- / lem porque além disso do- / mina, insemina e se co-o-o-ze em / Semem, semem / Semem, semem". A voz que prolifera é a mesma que domina. Lucas e Céu, instrumentos e letras.
Não foi ao acaso que escolhi essa canção, não composta por Lucas Santana, para tratar de um disco seu. Até porque não nos parece gratuita a releitura que o cancionista, músico, dj faz para inseri-la entre novas composições. "Há um artista por trás de tudo", como Frederico Coelho escreveu ao comentar o disco de Lucas.
Partindo para um plano "de fora" da canção, podíamos mesmo dizer que "Músico" é uma canção-enigma de todo cancionista, principalmente os mais inventivos, como é o caso de Lucas Santtana: o músico é o cavalo da música? Mas por onde ele entra nela?
A voz (a feminina) aqui representa um dizer (a ação de vocalizar), mais do que um dito (significado). Neste sentido, o ato de dizer já é comunicar que alguém é e estar. Dizer é concretizar a unicidade de quem diz, tornando este um ser diferente de todos os demais.
Obviamente, estou tratando mais da escuta, em detrimento do visual, como metáfora guia da verdade. E indo no caminho inverso ao que Heráclito sentenciou: "Os olhos são melhores testemunhas que os ouvidos". Isso porque, como Adriana Cavarero (ler Vozes plurais) anota: "antes ainda de comunicar o que quer que seja, (...), a voz humana comunica ela mesma, ou seja, a sua unicidade".
Na prática, nada parece ser tão estanque e/ou bipolar (macho/fêmea) assim. Os versos da canção "Macha fêmea", de Arnaldo Antunes, Paulo Tatit e Marcelo Fromer, jogam ludicamente com isso invertendo radicalmente os conceitos: "cérebra caralha baga saca pescoça prepúcia ossa / nádego boceto têto côxo vagino cabeço boco // corpa moço dentra foro moça / orgama coita palavro sexa goza". Ou seja, esses versos liberam - "liberal gerou" - as palavras dos sentidos estáticos historicamente colados a elas .
E assim chego à canção "Músico", de Herbert Vianna, Bi Ribeiro e Tom Zé. Nela há uma reivindicação latente engendrada pelo "músico" (masculino) que quer o compartilhamento das glórias recebidas pela "música" (feminina) por disseminar verdades, "desatar presilhas".
O sujeito da canção faz isso recorrendo à mítica da "expulsão do paraíso", "Ligue-se o Éden / Som e maçã / Serpentes eternas / Sobem por nossas pernas", quando ele inseminou ela e juntos ganharam o mundo, perdendo o paraíso. Eis a questão que se configura aqui, longe da nostalgia: é o músico (seja um masculino, um feminino, um assim) quem injeta a semente (energia sonora) na música? Os argumentos do sujeito da canção levam a crer que sim. Mas ele também, por sua vez, não age encantado por ela?
Posto que a pergunta é mais importante que a resposta, este círculo infinito encontra melhor tensão na transcriação que Lucas Santtana deu à canção lançada originalmente no disco Severino, dos Paralamas do sucesso. Ao dividir os vocais com a cantora Céu, no disco O Deus que devasta mas também cura (2012), Lucas Santtana promove a refração e a transvaloração daquilo que define com nitidez músico/música, masculino/feminina.
Aliando-se ao gesto do sujeito de "Macha/fêmea", a versão de Lucas Santtana, com voz "masculina" e "feminina" discutindo questões íntimas àquilo que cada parte deveria ser, faz um profundo corte epistemológico no tema dos gêneros. E aí se condensa e se prolifera o núcleo duro que o título do disco guarda: O Deus que devasta é o mesmo que cura.
São muitas as possibilidades de leituras para a recriação de Lucas Santanna. A começar pelo arranjo melódico, pela sonoridade eletrônica-orgânica complexa criada para proporcionar a "fala", por sua vez também complicada, porque um quase poema concreto, do sujeito. E todos os elementos se fundamentam na voz, nas vozes.
No mais "Cadeia de gens / Somos um trem, Ô-Ô / Um trem que tem que tem que tem / A ignição de ser pó- / lem porque além disso do- / mina, insemina e se co-o-o-ze em / Semem, semem / Semem, semem". A voz que prolifera é a mesma que domina. Lucas e Céu, instrumentos e letras.
Não foi ao acaso que escolhi essa canção, não composta por Lucas Santana, para tratar de um disco seu. Até porque não nos parece gratuita a releitura que o cancionista, músico, dj faz para inseri-la entre novas composições. "Há um artista por trás de tudo", como Frederico Coelho escreveu ao comentar o disco de Lucas.
Partindo para um plano "de fora" da canção, podíamos mesmo dizer que "Músico" é uma canção-enigma de todo cancionista, principalmente os mais inventivos, como é o caso de Lucas Santtana: o músico é o cavalo da música? Mas por onde ele entra nela?
***
Músico
(Herbert Vianna / Bi Ribeiro / Tom Zé)
Ligue-se o Éden
Ligue-se o Éden
Som e maçã
Serpentes eternas
Sobem por nossas pernas
Desatam presilhas
Desatam presilhas
De estrelas e sóis
A milhões de milhas
Dentro de nós
Cadeia de gens
Cadeia de gens
Somos um trem, Ô-Ô
Um trem que tem que tem que tem
A ignição de ser pó-
lem porque além disso do-
mina, insemina e se co-o-o-ze em
Semem, semem
Semem, semem
Complexo demais,e eu pensando que fosse apenas uma canção-popular.Mas é lindo.
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