"Desde que existe como gênero literário, a filosofia recruta seus seguidores escrevendo de modo contagiante sobre o amor e a amizade. Ela não é apenas um discurso sobre o amor à sabedoria, mas também quer impelir outros a esse amor", anota Peter Sloterdijk, logo no início do livro Regras para o parque humano.
Não quero entrar aqui na definição de Filosofia, mas penso que os convites feitos por ela através de "cartas" trocadas entre o filósofo-pensador e seus destinatários não-identificados movimentam e sustentam a própria Filosofia, ou a pulsão filosófica. Os remetentes, assim, colocam suas cartas "a caminho de amigos" à distância: desconhecidos, porém reconhecidos no fato filosófico.
Tais cartas de amor lançam a sedução que convida o amigo desconhecido a ingressar no círculo afetivo. É assim que um ouvinte de canção, um leitor, o indivíduo se sente impelido - ao contato com a canção, a escrita, a obra plástica: onde a pulsão filosófica está em rotação - a assumir, porque afetado pelos agrados e/ou desagrados que a recepção causa, uma intimidade amorosa com o artista.
"Ele fez uma canção bonita / Pra amiga dele / E disse tudo que você pode / Dizer pra uma amiga / Na hora do desespero / Só que não pôde gravar / E era um recado urgente / E ele não conseguiu / Sensibilizar o homem da gravadora / E uma canção dessa / Não se pode mandar por carta / Pois fica faltando a melodia / E ele explicou isso pro homem: / 'Olha, fica faltando a melodia'", diz o sujeito de "Canção bonita", de Luiz Tatit.
Essa canção de Tatit tematiza o caráter de "recado" que muitas canções tem. Aqui o sujeito canta um recado urgente, que só pode ser transmitido através da palavra cantada, pois, "faltando a melodia", sendo apenas escrita, ele não alcançaria o resultado desejado.
Diferente, por exemplo, de "Recado", de Renato Teixeira - "Mandei um recado / Pro meu namorado / Nos classificados / De um grande jornal / Pedindo pra ele / Que um dia apareça" -, que já surge como um comentário ao recado transmitido e em transmissão, posto que encontrou a melodia e se eternizou na voz da cantora Joanna. Noutro plano de interpretação, podíamos até dizer que a canção de Tatit comenta esta canção.
Sendo recados, as canções guardam mensagens. Mas para que a mensagem chegue ao destinatário - nem sempre identificado - em forma de canção é preciso ir além. Segundo o sujeito de "Canção bonita", é preciso melodia. É no modo que a voz diz o recado, nas marcas melódicas da voz, no pulso da garganta de alguém que o recado se torna canção. E pode ser gravado.
Ou seja, nem toda palavra escrita serve à palavra cantada. E vice-versa. A primeira precisa "pedir" a segunda para que a canção surja. É por isso que letra e poesia são e não são a "mesma coisa". Para vir a ser canção, a palavra escrita precisa "ter" um "ritmo vocal", pois é na voz de "alguém cantando" que a canção se realiza. Este ritmo, por sua vez, como Tomachevski anotou em "Sobre o verso" (ler Teoria da literatura: Formalistas russos) pode ser designado como "um sistema fônico organizado com objetivos poéticos, sistema acessível à recepção dos ouvintes" (p. 141), unindo, pela amizade, pelos semelhantes interesses e inquietações diante do mundo, remetente e destinatário, acrescento. Eis a eficácia da canção.
Diferente daquilo que acontece à palavra escrita, na palavra cantada o ritmo engendra e é engendrado pelo verso. Ele se funda sobre os elementos da pronúncia. Como sabemos, tanto na escrita/leitura, quanto no canto/audição O ritmo é elemento importante na produção de sentido. Daí a importância em atentar-se para a articulação da pronúncia, para a melodia da voz.
Tudo isso é para chegar a "Carta de amor" que Maria Bethânia apresenta no disco Oásis de Bethânia (2012). Sobre texto da própria cantora, Paulo Cesar Pinheiro cria uma tensão entre a declamação e o canto. Aliás, gesto amplamente trabalhado por Bethânia ao longo de sua trajetória artística. Por exemplo: tenho testemunhos de algumas pessoas que começaram a ler Fernando Pessoa, depois de ouvir os textos pela voz da médium das sereias.
Em "Carta de amor", o destinatário não é identificado: são todos e é ninguém. Há um estranhamento que surge logo no início da canção: Bethânia cantando em assombroso falsete, impondo um incômodo no seu ouvinte habitual. Sem acompanhamento instrumental, o falsete entoando "Não mexe comigo / Que eu não ando só" assusta e sugere o que virá: um texto que, ao mesmo tempo, soa como uma autoproteção e guarda um esconjuro contra qualquer tentativa alheia de desagradar o sujeito que canta.
O refrão que abre a canção se repete com sutis diferenças - entoativas e sintáticas - tencionando a movimentação dos sentidos de quem ouve e de quem canta. Essas diferenças figurativizam o balançar dos elementos que a canção tematiza. Forjado em terra, fogo, ar, água e espiritualidade, o sujeito nada teme: "Medo não me alcança", diz. Todos os elementos, vários signos e símbolos, entram em rotação a favor da pessoa por trás da voz. Voz vitoriosa porque ungida. E ungida porque tem intimidade profunda com deuses de diversas místicas e mitologias. Há mesmo uma relação de (quase) igualdade entre sujeito e deuses: "Nem o bem, nem o mal, pensam em ti".
E entra em cena a Maria Bethânia leitora de poesia, íntima dos poetas. "O menino-Deus brinca e dorme nos meus sonhos / O poeta me contou", diz fazendo uma clara referência ao "Poema do Menino Jesus", de Alberto Caeiro: "Ele dorme dentro da minha alma / E às vezes acorda de noite / E brinca com os meus sonhos / Vira uns de pernas para o ar, / Põe uns em cima dos outros / E bate palmas sozinho / sorrindo para o meu sono". Poema, aliás, já declamado pela cantora.
Com garganta abençoada por Oxum e andando de mãos dadas com a rainha do mar, o sujeito de "Carta de amor" mescla fala e canto, acelerações e repousos para minar amor e ódio: "O veneno do mal não acha passagem". Oração e esconjuro se imbricam para compor a esfera protetora, o espaço ambíguo onde o sujeito pode "brincar de ser estrela", alheio à maldade.
Creio que os versos "Se choro, quando choro, e minha lágrima cai / É pra regar o capim que alimenta a vida / Chorando eu refaço as nascentes que você secou" contem a pedra filosofal do recado. Tudo é presente e presentificação. O mal passado está sendo - enquanto dura o canto - exorcizado dentro do sujeito. O outro, a quem a carapuça servir, por sua vez, é amaldiçoado com consequências fulminadoras: "Você está tão mirrado que nem o Diabo te ambiciona / Não tem alma / Você é o oco, do oco, do oco, do sem fim do mundo".
Em "Carta de amor", letra e melodia - seja do canto, seja da declamação - estão em harmonia para a transmissão do recado urgente, emitido por uma fera ferida. Cantada e falada, a carta de amor é convite para que o outro (o destinatário não-identificado) se retire - "e pra onde você for / não leva o meu nome, não".
Ao contrário, porém tematicamente complementar, de "Canção bonita", de Luiz Tatit, citada acima, "Carta de amor" diz tudo o que se pode dizer a um "inimigo" na hora do ódio pelo malfeito. Mas "Carta de amor" não é apenas uma canção desnaturada que quer recolher o outro para sempre à escuridão do ventre, de onde ele não deveria nunca ter saído. É devoção às poéticas da palavra vocalizada: seja no canto, seja na fala.
***
Carta de amor
(Paulo César Pinheiro / Maria Bethânia)
Não mexe comigo
Que eu não ando só
Eu não ando só
Que eu não ando só (não mexe não)
Não mexe comigo
Que eu não ando só
Eu não ando só
Que eu não ando só
Eu tenho Zumbi, Besouro o chefe dos Tupis
Sou Tupinambá. Tenho os erês, caboclo Boiadeiro
Mãos de cura, morubixabas, cocares, arco-íris
Zarabatanas, curare, flechas e altares
A velocidade da luz
O escuro da mata escura
O breu, o silêncio, a espera
Eu tenho Jesus, Maria e josé,
Todos os pajés em minha companhia
O menino-Deus brinca e dorme nos meus sonhos
O poeta me contou
Não mexe comigo
Que eu não ando só
Que eu não ando só
Que eu não ando só (não mexe não)
Não mexe comigo
Que eu não ando só
Que não ando só
Eu não ando só
Não misturo, não me dobro
A rainha do mar anda de mãos dadas comigo
Me ensina o baile das ondas e canta, canta, canta pra mim
É do ouro de Oxum que é feita a armadura guarda o meu corpo
Garante meu sangue, minha garganta
O veneno do mal não acha passagem
Em meu coração, Maria acende sua luz
E me aponta o caminho
Me sumo no vento
Cavalgo no raio de Iansã
Giro o mundo, viro, reviro
Tô no Recôncavo, tô em Fès
Vôo entre as estrelas, brinco de ser uma
Traço o Cruzeiro do Sul com a tocha da fogueira de João menino
Rezo com as Três Marias
Vou além, me recolho no esplendor das nebulosas
Descanso nos vales, montanhas
Durmo na forja de Ogum
Mergulho no calor da lava dos vulcões, corpo vivo de Xangô
Não ando no breu
Nem ando na treva
Não ando no breu
Nem ando na treva
É por onde eu vou, que o santo me leva
Medo não me alcança
No deserto me acho
Faço cobra morder o rabo
Escorpião virar pirilampo
Meus pés recebem bálsamos
Unguento suave das mãos de Maria, irmã de Marta e Lázaro
No oásis de Bethânia
Pensou que eu ando só
Atente ao tempo
Não começa nem termina, é nunca é sempre
É tempo de reparar
Na balança de nobre cobre que o rei equilibra
Fulmina o injusto, deixa nua a justiça
Eu não provo do teu féu
Eu não piso no teu chão
E pra onde você for
Não leva o meu nome, não
Onde vai valente, você secou
Seus olhos insones secaram
Não vêem brotar a relva que cresce livre, verde
Longe da tua cegueira
Seus ouvidos se fecharam a qualquer música, qualquer som
Nem o bem, nem o mal, pensam em ti
Ninguém te escolhe
Você pisa na terra mas não a sente, apenas pisa
Apenas vaga sobre o planeta
E já nem ouve as teclas do teu piano
Você está tão mirrado que nem o Diabo te ambiciona
Não tem alma
Você é o oco, do oco, do oco, do sem fim do mundo
O que é teu já tá guardado
Não sou eu que vou lhe dar
Não sou eu que vou lhe dar
Não sou eu que vou lhe dar
Eu posso engolir você
Só pra cuspir depois
Minha fome é matéria que você não alcança
Desde o leite do peito de minha mãe
Até o sem fim dos versos, versos, versos...
Que brotam do poeta em toda a poesia
Sob a luz da lua que deita na palma da inspiração de Caymmi
Se choro, quando choro, e minha lágrima cai
É pra regar o capim que alimenta a vida
Chorando eu refaço as nascentes que você secou
Se desejo, o meu desejo faz subir marés de sal e sortilégio
Vivo de cara para o vento, na chuva
E quero me molhar
O terço de Fátima e o cordão de Gandhi cruzam o meu peito
Sou como a haste fina que qualquer brisa verga
Mas nenhuma espada corta
Não mexe comigo
Que eu não ando só
Que eu não ando só
Que eu não ando só (não mexe não)
Não mexe comigo
Que eu não ando só
Eu não ando só
Eu não ando só
Não mexe comigo
Essa música mexeu comigo, mas eu não ando só.
ResponderExcluirEla é maravilhosa!!! Obra e criador.
simplesmente linda,esse poema em forma de canção.
ResponderExcluirLeonardo, que texto maravilhoso! Parabéns!!! Com toda certeza irei acompanhar seus trabalhos a partir de hoje. Grande abraço!
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