Desde o Projeto 365 Canções (2010), o desafio é ser e estar à escuta dos cancionistas do Brasil, suas vocoperformances; e mergulhar nas experiências poéticas de seus sujeitos cancionais sirênicos.
28 julho 2024
Por entre traços e cores
No texto "Eu nunca quis pouco: as capas de Caetano Veloso" (ver livro "Lamber a língua: Caetano 80"), Aïcha Barat pergunta-se "qual relação Caetano cria com suas capas ao longo de sua carreira? Como elas ecoam seu projeto artístico e por que elas são terreno fértil para se refletir sobre sua obra?". Essas perguntas podem ser levada para a obra de outros artistas da canção brasileira. É o que faz Aïcha Barat noutros textos e na tese de doutorado, mas também Delzio Marques Soares no seu livro POR ENTRE TRAÇOS E CORES, em que analisa "a retórica do design nos lps da Tropicália". "Quais recursos argumentativos foram empregados no projetos gráficos de cada uma dessas capas?", pergunta-se Delzio. Com base na Retórica do Design Gráfico, o autor desenvolve argumentações luminosas para as "capas-embalagens" enquanto extensão do projeto estético-cancional de discos fundamentais de nossa história da canção. Depois de pertinente revisão bibliográfica sobre retórica, argumentação e linguagem visual, Delzio ilumina a importância da visualidade como parte fundamental da comunicação ético-poética da Tropicália. As cores vibrantes, os ícones pops, Gil de fardão da ABL, Caetano emoldurado por bananas, serpente e ninfa, a indumentária dos mutantes, os anúncios da liquidação de Tom Zé, a pose melancólica de Nara, o tropicaos de Druprat e o jardim de inverno de "panis et circencis" entram em rotação na leitura crítica de Delzio. "É nesse sentido que me propus analisar as capas dos sete álbuns tropicalistas: tornando-as como discursos, inventariando seus recursos argumentativos como resultado de um projeto de Design, para poder confrontá-los com esse ethos tropicalista", escreve e executa o autor de POR ENTRE TRAÇOS E CORES, livro que nos ajuda a compreender a Tropicália enquanto projeto verbivocovisual.
21 julho 2024
Anos 70 ainda sob a tempestade
O livro ANOS 70: AINDA SOB A TEMPESTADE reúne os cinco volumes publicados separadamente por área - música, literatura, teatro, cinema e televisão - e escritos no calor e no temor da hora. Eram os anos cinzas do governo militar. Os textos publicados sob coordenação de Adauto Novaes diagnosticavam o estado das artes num contexto de invenção e resistência, desbunde e protesto. Aqui reunidos esses textos ajudam a perceber o que permaneceu, o que pereceu, mas, principalmente, os esforços de intelectuais e artistas que apostavam na crítica em momento de crise aguda. Censura e autocensura podem ser rastreadas em cada interpretação vertida agora em documento que nos ajuda a ler um contexto ético e estético ainda pouco entendido e analisado. "O tempo nos distanciou dos anos 70 para que pudéssemos ganhar o direito de falar deles mais livremente", escreve Adauto. Por motivo de trabalho e interesse de pesquisa acadêmica, os volumes "música" e "literatura" sempre estão à mão. Como ouvir canção do mesmo modo depois de ler no texto de José Miguel Wisnik que "no Brasil a tradição da música popular, pela sua inserção na sociedade e pela sua vitalidade, pela riqueza artesanal que está investida na sua teia de recados, pela sua capacidade de captar as transformações da vida urbano-industrial, não se oferece simplesmente como um campo dócil à dominação econômica da indústria cultural que se traduz numa linguagem estandardizada, nem à repressão da censura que se traduz num controle das formas de expressão política e sexual explícitas, e nem às outras pressões que se traduzem nas exigências do bom gosto acadêmico ou nas exigências de um engajamento estreitamente concebido"? Sem falar nos textos de Ana Maria Bahiana e Margarida Autran. É por isso e muito mais que ANOS 70: AINDA SOB A TEMPESTADE é livro de cabeceira.
14 julho 2024
ABC do Sérgio Cabral
Certos historiadores guardam o privilégio de terem estado no momento histórico que historiografam e fazem da própria obra a historiografia precisa e o arquivo aberto dos acontecimentos. É o caso de Sérgio Cabral. Suas biografias, suas colunas, seus textos e livros de crítica de canção popular, mais do que registrar a história, assentam conhecimento e vivência. "Ele se tornou parceiro de compositores, amigo de músicos, diretor de espetáculos e produtor de discos. Esta proximidade gerou grande parte das histórias deste livro e foi o que certamente lhe garantiu escrevê-lo", diz Roberto Moura na quarta capa de ABC DO SÉRGIO CABRAL, volume de 1979 que traz "um desfile dos craques da MPB" - de "A de Alvaiade conta Portela" até "Z de Zé Kéti", passando por uma série de personalidades e entidades que compõem o espírito das ruas da cidade do Rio de Janeiro, matéria maior da obra de Sérgio Cabral. Dentre sua vasta produção, destaco ABC DO SÉRGIO CABRAL por seu texto precioso sobre Caninha (José Barbosa da Silva), segundo Cabral, "adversário cordial de Sinhô, Caninha dividiu com o Rei da Samba a honra de ser autor dos maiores sucessos populares da década de 1920". Quem mais escreveria sobre Caninha? E sobre Alvaiade? Sérgio Cabral tinha a generosidade de quem faz do arquivo de sua pesquisa um bem público, estimulando quem lê a pesquisar, a se interessar pelo narrado. Pode-se consultar o valioso arquivo físico de Cabral, mas e os causos, e a narração dos acontecimentos? Poucos sabem contar. Sérgio Cabral sabia.
07 julho 2024
Mar paraguayo
Ao tratar daquilo que chamou de “tradição de uma fala delirante na cultura brasileira”, da qual o diretor José Celso Martinez Corrêa fazia parte, Ericson Pires observou que “a ideia de fala delirante é construída a partir da percepção de uma série de ressonâncias e tunelamentos entre obras e autores dentro da produção artística e cultural brasileira que apresentam, no caráter delirante, uma parte pulsional da obra/vida” (ver livro Zé Celso e a Oficina-Uzina de corpos). Isso nos ajuda a pensar também a literatura de Gregório de Matos, Sousândrade, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, José Agrippino de Paula, Haroldo de Campos, Caetano Veloso, Jorge Mautner, Wilson Bueno - todos autores que lidam com o delírio sonoro da palavra escrita no Brasil, experimentando materialidades fônicas, a partir da coloquialidade e da prosódia do país. MAR PARAGUAYO é ótima partilha do sensível disso. "(...) y esto es como grafar impresso todo el contorno de uno cuerpo vivo en el muro de la calle central", diz a voz narrativa a certa altura dando a chave daquilo que ela realiza em dicção multilíngue. Wilson Bueno coloca o leitor à deriva, como a voz que confidencia: "(...) añaretã, añaretãmeguá, com mucho miedo, los confidencio, a vos, lectores invenctivos, mas invenctivos que la invención de mi alma cautiva de estos derrames, de estos exageros de tangos y guarânias harpejadas dolientes in perfecta soledad a la margen de los lagos ô de las montañas, a vos, que me descifraron en outra dimensión, a vos confidencio: hay una duda, una gran duda, morangú, que me persegue por la casa e toda vez me pone, como já expliquê, me pone al rastro del infierno (...)". É essa vida em estado de delírio o que MAR PARAGUAYO nos faz experimentar.