31 dezembro 2023

Discos de 2023


Em ordem aleatória, os discos de 2023 que mais ouvi, li, escutei, cantei junto, estudei:
 

Fabiana Cozza - Urucungo; Jards Macalé - Coração bifurcado; Ava Rocha - Nektar; Filipe Catto - Belezas são coisas acesas por dentro; Omar Sosa e Tiganá Santana - Iroko; Makely Ka - Triste entrópico; Mahmundi - Amor fati; Ogi - Aleatoriamente; Mateus Fazeno Rock - Jesus ñ voltará.

A campa é outro berço


No poema “A lição de poesia”, João Cabral de Melo Neto encena a “luta branca sobre o papel” e manipula “as vinte palavras recolhidas/ nas águas salgadas do poeta”, a fim de, com o uso da metalinguagem, indicar o “funcionamento” da “máquina” de escrituração. “Densidade” e “evaporação” são palavras usadas por Melo Neto, e que recolho aqui para ler o livro de contos A CAMPA É OUTRO BERÇO, de Bruno Lima. Se para o dicionário “densidade” é uma propriedade física que relaciona a massa de um material ao volume que ele ocupa, Bruno Lima justapõe e sobrepõe uma profusão de autores, leituras e conhecimentos da vida literária e do trabalho com a literatura em seu conjunto de contos. Mas essa densidade do saber individual só se realiza no procedimento de “evaporação” desse saber, ou seja, no trabalho de tragar e traduzir leitura em escrita, quando aquilo que seria do “iniciado” é apresentado (e presenteado) ao “leigo”. E é isso que Lima entrega ao seu leitor. Esse, por sua vez, é o tempo todo cobrado e instigado a ler mais, saber mais, para além daquilo que está presente (em presença) nos contos: Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Lima Barreto, Iessiênin, Kafka, Rubem Fonseca, Marcelino Freire, Sérgio Sant’Anna e, o mais presente, Machado de Assis, entre outros, transitam pelos 16 textos, irrigando a sabedoria do autor e a imaginação do leitor. Imaginar ainda é uma competência da literatura? Essa pergunta atravessa A CAMPA É OUTRO BERÇO. Seja nos exercícios de formas e tipos de escrita – carta, notícia jornalística, diário, testemunho, autoficção; seja no conteúdo e nas reflexões dos narradores.

24 dezembro 2023

Sodomita


No livro Cultura e opulência do Brasil (1711), André João Antonil registrou que "se a terra, obedecendo ao império do Criador, deu liberalmente a cana para regalar com a sua doçura aos paladares dos homens, estes, desejosos de multiplicar em si deleites e gostos, inventaram contra a mesma cana, com seus artifícios, mais de cem instrumentos para lhe multiplicarem tormentos e penas". Tratando "Do que padece o açúcar desde o seu nascimento na cana, até sair do Brasil", o livro alerta para o mau uso das coisas do Criador, incute a culpa. Essa mistura entre Estado e religião é marca do Brasil colônia, porém, seus miasmas chegam até nossos dias. Vide a frágil laicidade do Estado. É o que nos leva a pensar o livro SODOMITA, de Alexandre Vidal Porto. Ficcionalizando a história de Luiz Delgado, degredado de Lisboa para o Brasil, sob a acusação de sodomia, Porto repara e alerta. Se no livro de 1711 lemos o famoso adágio de que o Brasil “é inferno dos negros, purgatório dos brancos, e paraíso dos mulatos e das mulatas”, Porto revela o que "é da nossa natureza" humana: o desejo, as "causas do coração". Anos mais tarde, novamente degredado, pelo mesmo "crime", Delgado vai aprender em Angola a respeitar sua natureza. (Muito antes de Chico Buarque e Edu Lobo questionarem "será que o deus que criou nosso desejo é tão cruel / mostra os vales onde jorra o leite e o mel e esses vales são de Deus"). Aliás, o trânsito da personagem entre Lisboa, Bahia e Angola, "onde se destina à penitência dos pecadores mais vis", é, por si, um ótimo motivo para a leitura do livro, pois revisa o ethos colonial, as atrocidades feitas em nome de Deus. Além do rico trabalho com a coloquialidade da língua escrita, restituindo um uso contextual e histórico de termos e expressões - o que adensa a tensão entre a ironia crítica do escritor de hoje em relação ao patético das situações "criminosas". Por exemplo, o medo da "efusão de sêmen intravaso", o que agravaria o "comportamento desvairado" de deitar com outro homem. De fato, ao fazer uso do próprio corpo para fins de deleites e gostos pessoais, Luiz Delgado pena e goza no Brasil do século XII, lugar para onde os europeus vinham para enriquecer ou purgar "crimes contra a natureza" divina: o purgatório do branco. Naquele tempo, a sodomia era "crime" gravíssimo. Cronistas da época comentam isso. Nos poemas atribuídos a Gregório de Matos (1636-1696) constatamos o escárnio de nosso sátiro sobre o tema: no poema "Marinícolas", paródia da canção "Marizápalos a lo humano", de López de Honrubias (1657), referindo-se possivelmente a Nicolau de Tal, provedor da Casa da Moeda em Lisboa, daí o termo "marinícolas" = maricas + Nicolau, Gregório teria cantado: "(...) Tem por mestre do terço fanchono / Um pagem de lança, que Marcos se diz, / Que se em casa anda ao rabo dele, / O traz pela rua ao rabo de si". Essa descrição diz muito do tom como a relação entre Delgado e Doroteu Antunes é registrada no livro SODOMITA. Alexandre Vidal Porto é primoroso em forjar uma linguagem que leva quem lê a rir do ridículo das acusações, quando, "nas igrejas, acusavam pecadores de despertar a ira divina e da propagação da peste, e os padres maldiziam os excessos tenebrosos". O uso de adjetivação moralizante serve bem a esse propósito de pastichizar a crônica seiscentista, ao mesmo tempo em que finge isenção e neutralidade. Por fim, se o mancebo Doroteu chega a recorrer ao padre Antonio Vieira, superior dos jesuítas, para se livrar do domínio do demônio, merece destaque a personagem Florência Dias Ferreira, a donzela e amiga esposa de Luiz Delgado. E nisso também o livro é importante: no diagnóstico da misoginia, já que o horror da religião é e está no feminino, na mulher.

17 dezembro 2023

Da dificuldade de nomear a produção do presente


Há livro que já nasce destinado a não sair do horizonte de quem pesquisa determinado tema. É o caso de DA DIFICULDADE DE NOMEAR A PRODUÇÃO DO PRESENTE, de Ieda Magri. Uma coletânea de textos da autora. Publicado anteriormente em revista acadêmica, o texto "A literatura como arte contemporânea" não sai de minha mesa de trabalho, tamanha a revisão conceitual e metodológica proposta. Assentado no livro, junto (em camaradagem) com outras miradas precisas, o texto de Ieda se expande. Leitora crítica de Ludmer, Garramuño, Rancière, Aira, Piglia, Bolaño, Kamenszain, Ieda Magri compartilha reflexões que giram em torno do prazer do texto - prazer que revolve a crítica e a teoria literária. "Talvez seja esse grão de entendimento o que alinhava os textos e põe em conversa os narradores e os críticos que aqui figuram, sem, no entanto, que este seja um livro sobre uma literatura que se quer crítica", escreve a autora na apresentação. Essa leveza calvina atravessa os textos de DA DIFICULDADE DE NOMEAR A PRODUÇÃO DO PRESENTE, título capcioso, pois, ao falar da dificuldade de nomear, nomeia, ou sugere, o presente enquanto "produção". E cada texto de Ieda rastreia isso, ou seja, o contato entre experiência e repetição, com todos os miasmas da modernidade que se impõem no fugidio agora, de uma "estética contemporânea que aposta no não feito". Há algo mais leve do que definir "poética" enquanto "exercício de uma crença do que seja a literatura e do papel que cada escritor tem na série literária, consciente da posição que quer ocupar"? A eficácia da definição breve só se realiza porque elaborada por mãos hábeis na crítica e na escrita literária, marca de Ieda Magri. E "não se trata de simplificar, mas de devolver a complexidade", ela escreve. Por essas e outras, DA DIFICULDADE DE NOMEAR A PRODUÇÃO DO PRESENTE é livro para deixar sobre a mesa, ler, reler, consultar, citar, levar para a sala de aula.

10 dezembro 2023

Raio


Em RAIO Eucanaã Ferraz tece refinada trama de leituras, desdobrando o moderno hoje, entre Gullar e Cecília. Outrossim, "o fogo / queimou tudo. só não queimou a pedra", lê-se. Eis Eucanaã dizendo onde filtra sua poética: o prisma Cabral. De fato, RAIO é um livro em que os poemas compõem "um [livro] jovem cravejado de cristais". O verso diz mesmo bastante das imagens que se aglomeram e se encadeiam ao longo da leitura; e do procedimento de repetir (em diferença) palavras e expressões de um poema no outro. Essas anáforas insuspeitadas agem a serviço da composição do livro como um poema único, cheio de arestas, mas bordado sobre instantes. E assim os poemas se contaminam, sacralizando o cotidiano - as muitas referências bíblicas sustentam isso. Misturadas às sensações líricas, essas referências estimulam elucubrações sobre o existir: "mal entendo a língua / com que os homens falam / (finjo digo calo) / como entenderia / o que diz um peixe". A ausência de vírgulas dá fundamento e "tudo se baralha", numa paisagem do Rio de Janeiro em pleno verão. O poema "Barcarola" talvez seja o núcleo desse artifício. Cor mais alegre e mais triste, o verde novinho em folha se espraia pelos poemas e anima a tropical melancolia de Eucanaã Ferraz. Outra referência: as redondilhas de "Na feira" surge como um contracanto - "me aproximo mudo" - ao cantador cego do "circuladô de fulô" haroldiano. "Seria cego se eu não lhe reclamasse os olhos?", lê-se noutro poema. A estrutura de cada poema é um exercício formal a parte, dentro, entre: baladas, madrigais, odes, elegias desautomatizam o olhar, ou significa o ordinário - "instante mais bonito este quando o olho não funciona como se espera". Prismático, RAIO convida quem lê a rever.

03 dezembro 2023

Mela cueca


O livro MELA CUECA recolhe "as canções de amor que o mundo esqueceu". Com sua característica verve kitsch e tropical, Zé Pedro lista e comenta alguns dos motivos desse esquecimento, que é duplo: das canções e do amor. O diagnóstico diz bastante de nossos dias de hoje, com a emergência dos discursos de ódio e, ao mesmo tempo, das patrulhas ideológicas. Curador, produtor, DJ, Zé Pedro faz do livro, em que mescla memórias e biografemas, um elogio e uma defesa de um tipo de canção em desuso (?): aquelas que tocavam nas estações AM, "aquelas baladas de letras açucaradas com arranjos musicais gravados ao vivo e, muitas vezes, com o artista colocando a voz ao mesmo tempo", escreve. [Hoje deslocadas para o piseiro, ou o arrocha? Ele não chega a comentar, pois seu foco são as pistas de dança da noite carioca e paulista]. Antes de expor seu "guia de faixas", Zé Pedro escreve que "as canções listadas nesse livro vão até o primeiro ano da década de 1980, quando os teclados eletrônicos, ombreiras e o gel new wave para cabelos rebeldes alteraram a fórmula do romantismo no mundo". E essa é a profissão de fé de alguém que, pelo que se depreende da leitura de MELA CUECA, vive de amor e música.