29 outubro 2023

Finas flores


O livro FINAS FLORES trata das mulheres letristas na canção brasileira. Jorge Marques elenca Adriana Calcanhotto, Fátima Guedes, Dolores Duran, Joyce, Maysa e Rita Lee, sem esquecer de citar Chiquinha Gonzaga, entre outras, e investiga a palavra e o acorde feitos por mulheres no Brasil, esse "país de cantoras", como diz o adágio popular. Porém, de "poucas letristas". "E pra que palavras / se eu não sei usá-las?", pergunta ironicamente uma canção de Adriana Calcanhotto. Se, "cada uma palavra é a minha vida / cada acorde é um pedaço de mim", como diz a canção de Joyce, coube ao autor de FINAS FLORES interpretar o que significou a tomada de voz dessas mulheres, historicamente silenciadas, ou, pior, destinadas à função de musas para/por homens. "Ser mulher é ter o poder de gerar vida", diz o primeiro verso do poema de Gilka Machado. E é essa vida gerada que o autor investigar, esse ser e estar mulher no mundo, na perspectiva que cada letrista poetiza em suas obras. "Mulher é desdobrável. Eu sou", diz outro poema, de Adélia Prado. Ao final da leitura do livro, percebemos o trabalho minucioso realizado por Jorge Marques: a singularização de variadas dobras, de diversas poéticas lidas/ouvidas. Quem lê FINAS FLORES ouvindo as canções, descobre novas frestas, faz descobertas. "O cânone se impõe porque seleciona: determina aqueles(as) que fazem parte e aqueles(as) que não fazem parte da fina flor. Relaciona, limita e, por conseguinte, exclui", conclui o autor, lançando luz sobre o que urge revelação.

22 outubro 2023

O homem que amava rapazes e outros ensaios


Vira e mexe releio, cito, indico o livro O HOMEM QUE AMAVA RAPAZES E OUTROS ENSAIOS, de Denilson Lopes. Há nesse livro vários nós ainda hoje não devidamente desatados no debate acadêmico, e que Denilson diagnostica e faz encaminhamentos para lá de pertinentes. Talvez o mais importante: o enfrentamento teórico, crítico e ensaístico da (tropical) melancolia. "O indivíduo é uma construção e não dado inerente ao humano", lemos no primeiro parágrafo do texto "Terceiro manifesto camp", em que trata do desafio do sujeito contemporâneo para "articular suas máscaras em constante troca, seu eu mutante, sem se deixar dissolver no puro movimento, na velocidade, no mercado de imagens". É inspirador ver Denilson, por exemplo, ensaiando uma tradução de "camp" para nós: "Enquanto comportamento, o camp pode ser comparado à fechação, à atitude exagerada de certos homossexuais, ou simplesmente à afetação. Já enquanto questão estética, o camp estaria mais na esfera do brega assumido, sem culpas, tão presente nos exageros de muitos dos ícones da MPB, especialmente o culto a certas cantoras e seus fãs". Essa formulação nos ajuda a entender a cultura popular midiatizada brasileira desde, pelo menos, a Tropicália, no "influxo da contracultura nos anos 1960". Pensar a "fechação", a "estetização do social" enquanto categoria ético-estética brasileira é desafiador e fascinante. Aqui a fechação "aparece como uma estratégia corrosiva da ordem, no momento em que políticas utópicas e transgressoras parecem ter se esvaziado de qualquer apelo, e para os que não querem simplesmente aderir à nova velha ordem global do consumismo, em que a diferença é oferecida a todo momento, em cada esquina, em cada propaganda". São muitos os momentos luminosos de O HOMEM QUE AMAVA RAPAZES E OUTROS ENSAIOS. Findo novamente citando Denilson Lopes: "Por mais que a solidão, a melancolia, a violência e o desamparo persistam, não é tarde demais. Não estamos também no começo. Este nós de que participo mas não represento".

15 outubro 2023

O filho da mãe


"O prazer do outro pode ser insuportável, ainda mais quando não há um labor [procriação] aí, quando o prazer é ostensivamente um fim em si mesmo", diz Bernardo Carvalho numa entrevista. Daí porque um trecho como “Qualquer tchetcheno a quem se fizer a pergunta dirá que não há homossexuais na Tchetchênia. E talvez por isso Ruslan e Akif não tenham sido vistos durante os meses em que encontraram nas ruínas do prédio da escola de medicina. Porque eram invisíveis" valha o livro O FILHO DA MÃE por inteiro; isto é, por conter a ambivalência que as vidas das personagens impõe: num contexto de guerra e patrulha ideológica, quais corpos importam? Se, em entrevista de 1982, Foucault afirmou: "o melhor momento, no amor [entre homens], é quando o amante se distancia no táxi", no livro de Carvalho, "Andrei se aproxima e desabotoa as calças do batedor de carteiras. Quatro horas depois, quando abrir os olhos, ele já não estará mais ao seu lado". As histórias se repetem noutros lugares, noutros corpos, noutras subjetividades afetadas pela guerra: "Ruslan passou a associar o amor ao risco e à guerra, porque não conhecia outra coisa. Associou o sexo à trégua (o desejo deixava a realidade em suspenso) e o amor à iminência da perda. E daí em diante só conseguiu amar entre ruínas”. O livro enfrenta isso com delicadeza e crueza singulares. "O sexo e a guerra são o que todo homem tem em comum, rico ou pobre, educado ou não", lemos mais adiante. Se "histórias de amor podem não ter futuro, mas têm sempre passado", O FILHO DA MÃE articula os escombros dessas subjetividades marcadas pelo horror do outro, da alteridade, da diferença que, em alguma medida, fascina o desejo, posto "que sempre haverá alguém pronto para reconhecer e atacar a vulnerabilidade onde quer que ela se manifeste".

08 outubro 2023

Polipoesia


POLIPOESIA é livro que ilumina o que não tem governo, nem nunca terá: a performance poética. Exatamente por isso, pela insubmissão da singularidade (alguém - perigosamente - fala) que a performance vocal realiza, e isso diz muito da história da literatura, há uma dificuldade de análise, de apreciação, de entendimento, de instrumentalização do que seja "performance". Enzo Minarelli enfrenta o problema da poesia fora do livro, "em sua força plena e absoluta", investigando interpretações, promovendo audições (o livro vem com um CD, esse objeto já em desuso). Para Enzo Minarelli, "a voz em performance é a essência de muitas vozes: é a voz autêntica, arquétipo, xamã oriundo das profundezas do corpo, de um corpo além, voz metafísica, ontológica, uma voz sempre dialética, uma voz crítica em sua entidade social, eletrônica em sua intermidialidade, natural e artificial, sopro bucal regenerador e deformador, voz aleijada, fluxo fonético como fala divina, aceita sem contestação, voz régia, voz superior, em sua singularidade, voz vital, força utópica". Como lidar com essa potência, com essa multidão que alguém falando engendra? Poeta que experimenta o que pensa, Minarelli se une a um coro dissonante que vem a longo tempo abrindo o ouvido, revocalizando o logos sistematicamente emudecido em nossa cultura grafocêntrica: Paul Zumthor, Mikhail Bakhtin, Luiz Tatit, Philadelpho Menezes, Adriana Cavarero, Ruth Finnegan, Ricardo Aleixo. Com tradução, comentários e posfácio de Frederico Fernandes, POLIPOESIA é um convite à tensão entre presença (pathos) e memória (ethos) na era da reprodutibilidade técnica de poemas, entre as poéticas da voz no século XX.

01 outubro 2023

Uma encarnação encarnada em mim


O livro UMA ENCARNAÇÃO ENCARNADA EM MIM escrituraliza o Falatório de Stella do Patrocínio. No livro, Bruna Beber investiga os modos de assentamento da fala na escrita, sem perder de vista a tensão entre revelação poética e revelação religiosa presente na obra de Stella, para quem o mistério irrevelável está no gesto, no ato de transvalorizar a negatividade da vida que só o eu em performance (vocalizando, falando) revela. Resultado da dissertação do mestrado da autora, UMA ENCARNAÇÃO ENCARNADA EM MIM revela que Stella sobrevive na escritura, esse suporte privilegiado pela academia. (A despeito das gravações em áudio, mediadas por Carla Guagliardi e Nelly Gutmacher). Se toda audição, ou leitura é, em si, uma mediação, é esse o exercício que Bruna Beber realiza, ao iluminar a obra de Stella do Patrocínio por dentro - suas lacunas, ruídos, silêncios, mistérios, pletoras. Como estabelecer uma performance, o gesto-em-si da presença? Os riscos de defasagem e silenciamento são enormes, mas Bruna Beber permanece à escuta o tempo todo durante o ensaio, e isso é fundamental: ser com o corpus, ser "na encruza das ciências com as crenças". Se, ao que tudo indica, a poesia predominantemente oral transitou à poesia predominantemente escrita a partir do século XIII, na Itália, com o surgimento do soneto e a produção poética de Dante, a obra de Stella do Patrocínio nos lembra o eu-falante da lírica e que a voz que fala por trás da voz que fala no texto é a voz que fala no texto: uma mulher negra em primeira pessoa - "me transformei com esse falatório todinho", falou Stella. Bruna está à escuta dessa "voz que emana e constitui o corpo vivo para ressoar também não só nesse corpo vivo, mas no espaço e, consequentemente, em outros corpos", como escreve a partir de Paul Zumthor, a fim de elaborar importante método de escuta também antirracista.