João Cabral de Melo Neto sabia que a noção de lírica mudara no momento em que a poesia escrita passou a superar a poesia cantada. O corpo e a voz do poeta tinham um modo-de-usar-e-dizer o poético que não será o mesmo no papel. Daí a propagada aversão de Cabral à música, à melodia. Ele quis limpar a palavra escrita de toda reminiscência de um tipo de lirismo próprio à voz. Mas ele sabia também que a música, a entonação implícita persiste nas palavras, mesmo escritas. Seu trabalho foi o de escamotear este impulso vocal externo ao poema escrito e iluminar a palavra no suporte da página.
É por esta perspectiva que entendemos o que Paul Zumthor escreve em A letra e a voz: "O texto 'literário' é fechado: simultaneamente por causa do ato que, material ou idealmente, o circunscreve e na intervenção de um sujeito que efetua esse fechamento. Mas essa intervenção provoca o comentário, suscita a glosa, de modo que, nesse nível, o texto abre-se, e um dos traços próprios à 'literatura' é sua interpretabilidade. O texto tradicional, em contrapartida, pelo simples fato de que transita pela voz e pelo gesto, só pode ser aberto, numa abertura primária, radical, a ponto de escapar, por lampejos, à linguagem articulada; por isso ele se esquiva à interpretação, pelo menos a toda interpretação globalizante" (1993, p. 283-284).
Se por um lado, e de modo mais comumente praticado, temos cancionistas que cantam poemas escritos, vertendo poesia em letra, permitindo a reminiscência mais rápida do texto; por outro lado há cancionistas que deglutem, torcem, parodiam a poesia escrita antes de torná-la letra de canção. Em ambos os casos a parceria entre poetas e letristas é firmada. Mas o segundo caso exige de quem escuta um trabalho maior, a fim de aprofundar o registro da autoria de quem labora, citando direta ou indiretamente, o poema escrito ao cantá-lo. Ao que parece, nestes casos a leitura da poesia demorou mais, não se esgotou na primeira vez, quando o ímpeto de cantar, dizer o texto em voz alta aparece. Há aqui um processo de devoração do conteúdo de leitura acumulado.
"Meu trabalho é todo pautado em escritores. Eu não me inspiro porque a lua está assim ou assado, porque estou apaixonada ou estou sofrendo. É sempre um lastro, um alicerce que me dá credibilidade e me torna eterna", escreve Cátia de França, por exemplo, no encarte do disco Vinte palavras ao redor do sol (1979). Título inspirado nos versos de João Cabral de Melo Neto: "Falo somente com o que falo: / com as mesmas vinte palavras / girando ao redor do sol / que as limpa do que não é faca: // de toda uma crosta viscosa, / resto de janta abaianada, / que fica na lâmina e cega / seu gosto da cicatriz clara", do poema "Graciliano Ramos:" (Terça feira, 1961). Poeta do livro, João Cabral se empenhou na busca da pura escrita e fundou um público para sua obra e as obras de seus sucessores. Por sua vez, Cátia de França compreende o gesto cabralino e engendra um trânsito do texto da voz à letra e de novo à voz.
Ora, se a dobra sígnica Graciliano/Cabral já indica muito do "espinhaço" dito no poema, a vocoperformance de Cátia de França intensifica o sol "estridente, / a contrapelo, imperioso, / e bate nas pálpebras como / se bate numa porta a socos". Cátia usa o verso cabralino como mote para glosar a própria linguagem de Cabral. A canção gira em torno de "com o que", "do que", "por quem", "para quem" fala o eu do poema. E o Sol não permite repouso. Mesmo quando o acompanhamento musical desacelera, Cátia recusa cabralinamente a passionalização vocal, o lirismo egocêntrico, em benefício do cantado, das palavras que precisam dar conta de contar "quem existe nesses climas / condicionados pelo sol, / pelo gavião e outras rapinas".
Chamo atenção para a flexão "falo" do verbo falar na primeira pessoa do presente do indicativo, mas que também pode ser compreendida como alusão ao protagonismo do sol fálico e determinista: "Falo somente...", repete o poema quatro vezes. "Falo somente com / do / por / para / falo". Começar e terminar o primeiro verso de cada parte do poema com "falo" é diagnosticar a macheza e o androcentrismo entranhados nas narrativas da nordestinidade - Vidas secas, por exemplo.
Note-se, porém, que, diferente da Rosinha da canção do exílio "Asa branca", de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, que fica condenada ao horror da seca, limitada à metáfora que seu nome carrega, enquanto o sujeito da canção migra em busca de paisagens amenas, no livro de Graciliano Ramos, Sinhá Vitória tem voz e protagonismo: não assume "seu papel de mamulengo", conforme a letra da canção fala. Podemos ler Sinhá Vitória como a "Chuva feminina / Num sertão bem masculino", conforme canta Cátia na embolada "Vem vai, quem vem", no mesmo disco. Canção em que os versos "O que vejo é nossa sina / Enxergo a caatinga / Branco hospital" e "Onde o sol é um fuzil" reverberam o ethos do sertão cabralino.
Ainda em "Quem vai, quem vem", Cátia canta "Casebres 'tão caindo / Na porta vejo uma muié / Saco vazio mas que se tem de pé / Nas calçadas sonolentos / No cochilo e cusparada". Seca, "boca sem saliva", cusparada, "vocação de caliça", palavreado... É no capítulo "Sinhá Vitória" que Graciliano Ramos trata do desejo da personagem por uma cama de verdade, "igual à de seu Tomás da bolandeira. Vale a pena reler o trecho: "Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir novamente. Por uma extravagante associação, relacionou esse ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a boca de saliva, inclinou-se - e não conseguiu o que esperava. Fez várias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a garganta. Ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo não valia" (1970, p. 79).
Cancionista multinstrumentista, toda a obra de Cátia de França é marcada pela leitura. Sua criação artística está amalgamada à cultura da voz que fala por trás da voz que canta. Canção crítica, antropófaga, do "vencido [que] absorve" o vencedor, a obra oferece possibilidades de compreensão do universo, da vida, do ser. Cátia sugere que cantar é ler em voz alta Graciliano, Cabral. Autores que ensacam nas palavras o sol que a "boca sem saliva" de Cátia arrebenta. "Segure a barra, requente / o caldo da sopa fria / vá cultivando a semente / até que um dia arrebente / o saco cheio de sol", ela canta na canção "Ensacado" (Cátia de França / Sergio Natureza), do mesmo disco. Da letra à voz que arrebenta o sol, eis o movimento de Cátia - "Secando as coisas quase tudo ao espinhaço". Assim como as boas poesias, as canções de Cátia não se esgotam numa primeira leitura/audição. É preciso reler, reouvir "essa luta contra o deserto / luta em que o sangue não corre / em que o vencedor não mata / mas o vencido absorve".
No livro Iniciação na cultura literária medieval, o professor Segismundo Spina registra que "proclamada a superioridade e a anterioridade da letra em relação à melodia musical, surge então o POETA; e a fase do TROVADOR e do TROVEIRO entra em declínio. Há agora uma especialização de funções: o poeta compõe a letra, ficando a cargo do músico a melodia. A poesia deixa de ser cantada para se tornar cantável" (1973, p. 24). E se, como disse Riobaldo "tudo, nesta vida, é muito cantável", a "boca sem saliva" deixa explícita seu comprometimento com o cantado - "na insistência de quem sabe o que quer"; impõe-se - é despertador que, "num protesto estridente", desperta "quem padece sono de morto"; e convoca - "chegou a hora mostre seu palavreado / ou então assuma seu papel de mamulengo". Isto é, não seja Rosinha.
Se Cabral compreendera a fala por trás da escrita - "Falo somente..." -,Cátia de França lembra ao leitor de poesia de livro que a canção é uma arte originária, no sentido de que, nos primórdios, texto e canto estavam imbricados. Executada no papel ou na voz, a poesia questiona o ser e o estar no mundo, expande o instante de reflexão do Humano, seus comportamentos "nesse clima" de "gavião e outras rapinas". A canção de Cátia universaliza o conteúdo geográfico e fica "feito goteira picando no quengo" do ouvinte.
A assinatura autoral de Cátia embaralha as categorias poeta - ela assume a missão sugerida pelo eu poético cabralino ("Falo por quem"); trovadora - ela canta a economia vocabular ("bagaceira", "espinhaço", "estridente", "estrebucha", "caliça", "seca"); e voz coletiva - presentifica na vocoperformance quem vai, quem vem - "Zé Ferreira com sua roupa domingueira e "Dona Tereza arriba lá da bagaceira". O apelo valorativo dado à poesia escrita em detrimento da letra de canção entra em crise, tamanha a força da canção, da voz que fala por trás da voz que canta em Cátia. O timbre potencializa o cognitivo, o ouvinte é instado à ação.
Cabral sabia que o público "com o que", "do que", "por quem", "para quem" Graciliano escrevia era exigente, em resposta à própria exigência da vida "secando as coisas quase tudo ao espinhaço". Cátia sabe que o público de sua canção não é menos exigente, por isso limpa a voz "do que não é faca" e "bate numa porta a socos", não se presta à diversão. A voz cancional criada por Cátia, em consonância com o eu poético de Cabral, e com o ímpeto de Sinhá Vitória, não espera a chuva, não guarda consigo o coração do homem ("Adeus, Rosinha!"). Esta voz ressignifica a potência negativa do sol, a fim de aprofundar o estado estridente do eu.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. São Paulo: Martins Fontes, 1970.
SPINA, Segismundo. Iniciação na cultura literária medieval. Rio de Janeiro: Grifo, 1973.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a "literatura" medieval. Trad. Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
É por esta perspectiva que entendemos o que Paul Zumthor escreve em A letra e a voz: "O texto 'literário' é fechado: simultaneamente por causa do ato que, material ou idealmente, o circunscreve e na intervenção de um sujeito que efetua esse fechamento. Mas essa intervenção provoca o comentário, suscita a glosa, de modo que, nesse nível, o texto abre-se, e um dos traços próprios à 'literatura' é sua interpretabilidade. O texto tradicional, em contrapartida, pelo simples fato de que transita pela voz e pelo gesto, só pode ser aberto, numa abertura primária, radical, a ponto de escapar, por lampejos, à linguagem articulada; por isso ele se esquiva à interpretação, pelo menos a toda interpretação globalizante" (1993, p. 283-284).
Se por um lado, e de modo mais comumente praticado, temos cancionistas que cantam poemas escritos, vertendo poesia em letra, permitindo a reminiscência mais rápida do texto; por outro lado há cancionistas que deglutem, torcem, parodiam a poesia escrita antes de torná-la letra de canção. Em ambos os casos a parceria entre poetas e letristas é firmada. Mas o segundo caso exige de quem escuta um trabalho maior, a fim de aprofundar o registro da autoria de quem labora, citando direta ou indiretamente, o poema escrito ao cantá-lo. Ao que parece, nestes casos a leitura da poesia demorou mais, não se esgotou na primeira vez, quando o ímpeto de cantar, dizer o texto em voz alta aparece. Há aqui um processo de devoração do conteúdo de leitura acumulado.
"Meu trabalho é todo pautado em escritores. Eu não me inspiro porque a lua está assim ou assado, porque estou apaixonada ou estou sofrendo. É sempre um lastro, um alicerce que me dá credibilidade e me torna eterna", escreve Cátia de França, por exemplo, no encarte do disco Vinte palavras ao redor do sol (1979). Título inspirado nos versos de João Cabral de Melo Neto: "Falo somente com o que falo: / com as mesmas vinte palavras / girando ao redor do sol / que as limpa do que não é faca: // de toda uma crosta viscosa, / resto de janta abaianada, / que fica na lâmina e cega / seu gosto da cicatriz clara", do poema "Graciliano Ramos:" (Terça feira, 1961). Poeta do livro, João Cabral se empenhou na busca da pura escrita e fundou um público para sua obra e as obras de seus sucessores. Por sua vez, Cátia de França compreende o gesto cabralino e engendra um trânsito do texto da voz à letra e de novo à voz.
Ora, se a dobra sígnica Graciliano/Cabral já indica muito do "espinhaço" dito no poema, a vocoperformance de Cátia de França intensifica o sol "estridente, / a contrapelo, imperioso, / e bate nas pálpebras como / se bate numa porta a socos". Cátia usa o verso cabralino como mote para glosar a própria linguagem de Cabral. A canção gira em torno de "com o que", "do que", "por quem", "para quem" fala o eu do poema. E o Sol não permite repouso. Mesmo quando o acompanhamento musical desacelera, Cátia recusa cabralinamente a passionalização vocal, o lirismo egocêntrico, em benefício do cantado, das palavras que precisam dar conta de contar "quem existe nesses climas / condicionados pelo sol, / pelo gavião e outras rapinas".
Chamo atenção para a flexão "falo" do verbo falar na primeira pessoa do presente do indicativo, mas que também pode ser compreendida como alusão ao protagonismo do sol fálico e determinista: "Falo somente...", repete o poema quatro vezes. "Falo somente com / do / por / para / falo". Começar e terminar o primeiro verso de cada parte do poema com "falo" é diagnosticar a macheza e o androcentrismo entranhados nas narrativas da nordestinidade - Vidas secas, por exemplo.
Note-se, porém, que, diferente da Rosinha da canção do exílio "Asa branca", de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, que fica condenada ao horror da seca, limitada à metáfora que seu nome carrega, enquanto o sujeito da canção migra em busca de paisagens amenas, no livro de Graciliano Ramos, Sinhá Vitória tem voz e protagonismo: não assume "seu papel de mamulengo", conforme a letra da canção fala. Podemos ler Sinhá Vitória como a "Chuva feminina / Num sertão bem masculino", conforme canta Cátia na embolada "Vem vai, quem vem", no mesmo disco. Canção em que os versos "O que vejo é nossa sina / Enxergo a caatinga / Branco hospital" e "Onde o sol é um fuzil" reverberam o ethos do sertão cabralino.
Ainda em "Quem vai, quem vem", Cátia canta "Casebres 'tão caindo / Na porta vejo uma muié / Saco vazio mas que se tem de pé / Nas calçadas sonolentos / No cochilo e cusparada". Seca, "boca sem saliva", cusparada, "vocação de caliça", palavreado... É no capítulo "Sinhá Vitória" que Graciliano Ramos trata do desejo da personagem por uma cama de verdade, "igual à de seu Tomás da bolandeira. Vale a pena reler o trecho: "Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir novamente. Por uma extravagante associação, relacionou esse ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a boca de saliva, inclinou-se - e não conseguiu o que esperava. Fez várias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a garganta. Ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo não valia" (1970, p. 79).
Cancionista multinstrumentista, toda a obra de Cátia de França é marcada pela leitura. Sua criação artística está amalgamada à cultura da voz que fala por trás da voz que canta. Canção crítica, antropófaga, do "vencido [que] absorve" o vencedor, a obra oferece possibilidades de compreensão do universo, da vida, do ser. Cátia sugere que cantar é ler em voz alta Graciliano, Cabral. Autores que ensacam nas palavras o sol que a "boca sem saliva" de Cátia arrebenta. "Segure a barra, requente / o caldo da sopa fria / vá cultivando a semente / até que um dia arrebente / o saco cheio de sol", ela canta na canção "Ensacado" (Cátia de França / Sergio Natureza), do mesmo disco. Da letra à voz que arrebenta o sol, eis o movimento de Cátia - "Secando as coisas quase tudo ao espinhaço". Assim como as boas poesias, as canções de Cátia não se esgotam numa primeira leitura/audição. É preciso reler, reouvir "essa luta contra o deserto / luta em que o sangue não corre / em que o vencedor não mata / mas o vencido absorve".
No livro Iniciação na cultura literária medieval, o professor Segismundo Spina registra que "proclamada a superioridade e a anterioridade da letra em relação à melodia musical, surge então o POETA; e a fase do TROVADOR e do TROVEIRO entra em declínio. Há agora uma especialização de funções: o poeta compõe a letra, ficando a cargo do músico a melodia. A poesia deixa de ser cantada para se tornar cantável" (1973, p. 24). E se, como disse Riobaldo "tudo, nesta vida, é muito cantável", a "boca sem saliva" deixa explícita seu comprometimento com o cantado - "na insistência de quem sabe o que quer"; impõe-se - é despertador que, "num protesto estridente", desperta "quem padece sono de morto"; e convoca - "chegou a hora mostre seu palavreado / ou então assuma seu papel de mamulengo". Isto é, não seja Rosinha.
Se Cabral compreendera a fala por trás da escrita - "Falo somente..." -,Cátia de França lembra ao leitor de poesia de livro que a canção é uma arte originária, no sentido de que, nos primórdios, texto e canto estavam imbricados. Executada no papel ou na voz, a poesia questiona o ser e o estar no mundo, expande o instante de reflexão do Humano, seus comportamentos "nesse clima" de "gavião e outras rapinas". A canção de Cátia universaliza o conteúdo geográfico e fica "feito goteira picando no quengo" do ouvinte.
A assinatura autoral de Cátia embaralha as categorias poeta - ela assume a missão sugerida pelo eu poético cabralino ("Falo por quem"); trovadora - ela canta a economia vocabular ("bagaceira", "espinhaço", "estridente", "estrebucha", "caliça", "seca"); e voz coletiva - presentifica na vocoperformance quem vai, quem vem - "Zé Ferreira com sua roupa domingueira e "Dona Tereza arriba lá da bagaceira". O apelo valorativo dado à poesia escrita em detrimento da letra de canção entra em crise, tamanha a força da canção, da voz que fala por trás da voz que canta em Cátia. O timbre potencializa o cognitivo, o ouvinte é instado à ação.
Cabral sabia que o público "com o que", "do que", "por quem", "para quem" Graciliano escrevia era exigente, em resposta à própria exigência da vida "secando as coisas quase tudo ao espinhaço". Cátia sabe que o público de sua canção não é menos exigente, por isso limpa a voz "do que não é faca" e "bate numa porta a socos", não se presta à diversão. A voz cancional criada por Cátia, em consonância com o eu poético de Cabral, e com o ímpeto de Sinhá Vitória, não espera a chuva, não guarda consigo o coração do homem ("Adeus, Rosinha!"). Esta voz ressignifica a potência negativa do sol, a fim de aprofundar o estado estridente do eu.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. São Paulo: Martins Fontes, 1970.
SPINA, Segismundo. Iniciação na cultura literária medieval. Rio de Janeiro: Grifo, 1973.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a "literatura" medieval. Trad. Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
***
Vinte palavras girando ao redor do sol
(Cátia de França / João Cabral de Melo Neto)
Vinte palavras girando ao redor do sol
Na insistência de quem sabe o que quer
Vem Zé Ferreira com sua roupa domingueira
Vem inté Dona Tereza arriba lá da bagaceira
Vinte palavras girando ao redor do sol
Secando as coisas quase tudo ao espinhaço
Falo somente por quem, eu sei que falo
Gente vive nesse clima
Gavião e outras rapinas
Quem padece sono de morto
Precisando d'um despertador
Sol a pino sobre o olho
Num protesto estridente
Estrebucha, cerra os dentes
Vinte palavras girando ao redor do sol
Feito goteira picando no teu quengo
Chegou a hora mostre seu palavreado
Ou então assuma seu papel de mamulengo
Essa luta contra o deserto
Luta em que o sangue não corre
Em que o vencedor não mata
Mas o vencido absorve
Essa luta contra a terra
É uma boca sem saliva
Os intestinos de pedra
Vocação de caliça
Que se dá de dia em dia
Que se dá de home a home
Que se dá de seca em seca
Que se dá de morte em morte
Vinte palavras girando ao redor do sol
(Cátia de França / João Cabral de Melo Neto)
Vinte palavras girando ao redor do sol
Na insistência de quem sabe o que quer
Vem Zé Ferreira com sua roupa domingueira
Vem inté Dona Tereza arriba lá da bagaceira
Vinte palavras girando ao redor do sol
Secando as coisas quase tudo ao espinhaço
Falo somente por quem, eu sei que falo
Gente vive nesse clima
Gavião e outras rapinas
Quem padece sono de morto
Precisando d'um despertador
Sol a pino sobre o olho
Num protesto estridente
Estrebucha, cerra os dentes
Vinte palavras girando ao redor do sol
Feito goteira picando no teu quengo
Chegou a hora mostre seu palavreado
Ou então assuma seu papel de mamulengo
Essa luta contra o deserto
Luta em que o sangue não corre
Em que o vencedor não mata
Mas o vencido absorve
Essa luta contra a terra
É uma boca sem saliva
Os intestinos de pedra
Vocação de caliça
Que se dá de dia em dia
Que se dá de home a home
Que se dá de seca em seca
Que se dá de morte em morte
Vinte palavras girando ao redor do sol
Eu amo esse disco. Amo Cátia, na verdade. Quando ela e Gilberto Gil se tornarem orixás, serei filho deles, com certeza. Cátia comentou uma vez, em entrevista, que ela lê as obras, fica grávida de literatura e pare as músicas. E é bela toda essa ressignificação, que tem dela e das obras a herança de um DNA lítero-musical potente e fluido, aguçando a atenção instante a instante. Termino a noite muito agradecido pela sua análise, Leonardo. Fantástica! Um grande abraço aqui das terras tabajaras!
ResponderExcluirMichel Costa.
Não conhecia esse blog.
ResponderExcluirQue surpresa agradável, em uma busca por essa canção que tanto me tocou; conhecer uma visão ampliada, contextualizada e comprometida com trabalhos brasileiros no sentido amplo.
Indo conhecer animada os outros textos e análises.
Abraços,
Isabella.