"Ouvi
dizer já por duas vezes que o Guesa
Errante será lido 50 anos depois; entristeci - decepção de quem escreve 50
anos antes", disse Sousândrade em 1877. De fato, só em 1964 com a primeira
edição do livro Re visão de Sousândrade
de Augusto e Haroldo de Campos a obra do poeta maranhense foi lida com merecida
atenção crítica.
Joaquim
de Sousa Andrade (1833-1902) é autor de Harpas
Selvagens (1857), Guesa
(1858-1888), Harpa de Ouro
(1888/1889) e Novo Éden (1893). O Guesa é um poema narrativo dividido em
13 Cantos (12 cantos e 1 epílogo), dos quais permaneceram inacabados quatro
cantos (VI, VII, XII e XIII); e tem estrutura épica (proposição, invocação,
dedicatória e narração). No Canto I temos a invocação - "Eia, imaginação
divina!" - e a proposição - "Infante adoração dobrando a
crença", já que o livro é baseado nas narrativas sobre o culto solar dos
indígenas muíscas da Colômbia: uma criança roubada dos pais é oferecida em
sacrifício ao deus-sol quando completa 15 anos.
Sob
a perspectiva do protagonista, podemos dizer que Sousândrade trabalha a
temática do poeta como exilado, errante, a vagar. O estilo mesclado - vozes do
poeta X vozes das personagens - condensa o tom épico/histórico: a descoberta
das Américas, a civilização indígena, as guerras coloniais e suas
consequências; e o tom individual: sentimentos e temores. O Guesa guarda e antecipa, portanto, o
indígena ancestral – anti-herói, o oposto do "bom selvagem" - do Macunaíma marioandradino.
"Eu
sou qual este lírio, triste, esquivo, / Como esta brisa que nos are erra",
diz o protagonista ainda nos Andes, de onde parte. E assim começa a jornada. A
intertextualidade e o hibridismo, os neologismos e as metáforas vertiginosas
dão conta do périplo e da errância, transitoriedades, exílios, de quem não tem
lugar na floresta amazônica e na América do Sul Inca, lugares paradisíacos
antes da colonização. Atravessar a natureza devastada marca o corpo do texto e
a alma do protagonista.
Para
Affonso Ávila (ler O poeta e a
consciência crítica), Sousândrade foi "autor marginalizado, em
decorrência ao mesmo tempo da desatualização crítica que lhe foi contemporânea
e do espírito acomodatício de nossa história da literatura" (p.48). Ávila
destaca "o comportamento do artista diante da realidade de que emergem
seus temas, as implicações de ordem social e vivencial que condicionam a sua
atitude criadora, a linguagem e seus desdobramentos nos estratos semântico,
sintático e sonoro" (p. 50).
"O
Guesa nada tendo do dramático, do lírico ou do épico, mas simplesmente da
narrativa, adotei para ele o metro que menos canta, e como se até lhe fosse
necessária, a monotonia dos sons de uma só corda; adotei o verso que mais
separa-se dos esplendores de luz e de música, mas que pela severidade sua dá ao
pensamento maior energia e concisão, deixando o poeta na plenitude intelectual
- nessa harmonia interna da criação que experimentamos no meio do oceano e dos
desertos, mais pelo sentimento que em nossa alma influem do que pelas formosas
curvas do horizonte. Ao esplendoroso dos quadros quisera ele antepor o ideal da
inteligência", escreveu Sousândrade na "Memorabilia" da edição norte-americana de o Guesa.
Daí
a importância do livro dos irmãos Campos. Os autores realizam a interpretação
dos aspectos macro e microestéticos da obra sousandradina, a fim de entender
"o metro que menos canta" como uma deliberada antimusicalidade
romântica. Contra a rima fácil, empenhado na "harmonia interna da criação
que experimentamos no meio do oceano e dos desertos", Sousândrade faz dos
efeitos melopaicos um gesto de "insurreição sonora". Para os autores,
"a arte sonora sousandradina responde a um conceito aberto de
musicalidade, que tanto pode incluir uma calculada alquimia de vogais e
consoantes, num sentido de harmonização pré-simbolista , de 'poesia pura', como
incorporar a dissonância e o contraste, o choque e a aspereza. É uma arte que
não se volta apenas para o acorde, mas se deixa torturar até a ruptura ou a
explosão pelo sentimento do desacorde" (p. 91).
Como
restituir na voz, no canto o engenho dessa escrita experimental, inclusive no
que se refere à tipografia e ao uso da página? Como ler em voz alta as
onomatopeias, aliterações, sibilações, assonâncias, sinalefas criadas por
Sousândrade no seu texto-montagem polilíngue? Instigado por Augusto de Campos,
em 1972, Caetano Veloso gravou o verso "Gil-engendra em gil-rouxinol"
da estrofe 72 do Canto X, mais conhecido como o episódio do "Inferno de
Wall Street". "A estrofe 72 é uma das mais herméticas do episódio, trazendo
em seu bojo aquele misterioso 'Gil-engendra em gil-rouxinol'. À falta de
qualquer explicação plausível, tive a ideia de enviá-la a Caetano Veloso, então
no exílio em Londres, e assim nasceu a bela canção "Gilberto
misterioso", com a qual homenageou seu famoso companheiro musical no cd Araçá azul" (ler Poesia antipoesia antropofagia & cia,
p. 221).
Araçá azul foi o disco mais
devolvido pelos compradores no Brasil. A "insurreição sonora",
"o metro que menos canta", "a plenitude intelectual" serão
recebidos pelos ouvintes de canção popular mais como problemas técnicos de
gravação e menos como pesquisa e estranhamento estético. "As experiências
são com sons orgânicos (corporais, funcionais) tendendo para o inorgânico (a
invenção do novo, o pensamento), num processo que o aproxima de Artaud e de
Oswald, e que será melhor metabolizado em Joia, mas que aqui [em Araçá azul] tem um tom erótico e
heroico, o sonar que penetra, som-mar = sexo", anota Luís Carlos de Morais
Junior (ler Crisólogo, p. 102).
Se
ao dar o título de "Gilberto misterioso" à quarta faixa do disco
Caetano "desmonta" o mistério do Gil presente no poema de
Sousândrade, ao mesmo tempo o cancionista investe na beleza do mistério que faz
de Gilberto Gil o grande artista que é. A canção começa com o acorde ao violão
(Sol maior) e uma voz em falsete passional estendendo à exaustão do limite do
fôlego o /o/ de "sol". "Sol" que, lembremos, está no verso
anterior ao verso cantando por Caetano: "Chuva e sol, / Gil-engendra em
gil rouxinol". Assim, o "sol" aproveitado serve de enjambement
no qual Caetano insere Gilberto na "linha evolutiva" da canção
popular brasileira.
A
voz que canta (solfeja) a palavra "sol" realiza um portamento até
chegar à palavra/nota "ré", acompanhada por brusco ataque do acorde
Ré com sétima e nona. Segue-se um arpejo e o retorno de Sol. Nessa variação da
emissão do som /o/ podemos ouvir, inclusive o Om (ou Aum) mantra mais
importante do hinduísmo. Feita esta afinação fonética e musical, Caetano passa
a cantar o verso assim registrado no encarte "Gil em Gendra / Em Gil
Rouxinol". A repetição do verso remete-nos à circularidade sonora
mântrica: o som que engendra o som, autofagicamente: repetições da fricativa
palatal sonora e da fricativa palatal surda. A busca do êxtase místico, os
limites do sujeito são tateados (dedos e voz) entre uma nota e outra.
Na
primeira parte da canção, o verso é cantado doze vezes, em seis partes.
"Gil em Gendra / Em Gil Rouxinol / Gil em Gendra / Em Gil Rouxinol"
tenciona blues e baião e essa harmonização tende a manter a dúvida, o mistério,
sem expectativa de resolução. Há um breve silêncio. Na segunda parte há uma
aceleração do ritmo, marcado pelo violão e percussão. O verso é cantado
quatorze vezes numa performance vocal empenhado na maquinaria a vapor do
engenho. Segue-se o mesmo cantar dobrado (e emparelhado) do verso. A voz e o
violão voltam a ser "afinados". Entre um vibrato e um desafino são
interpretados trechos de músicas, fragmentos (grunhidos) de palavras que não
chegam a ser ditas, como na canção anterior "De conversa em
conversa". É o aspecto orgânico do disco em cena. Começa o terceiro
movimento. O piano arpeja o acorde Dó com sétima, o verso volta a ser cantado,
mas o emparelhamento agora é "respondido" por assovios. Tudo caminha
para a palavra final "Gil".
Fica
evidente a tentativa de mimetizar o questionamento de Sousândrade sobre os
limites do metro através do procedimento de colocar em xeque os sistemas
temperado e tonal da música ocidental. O Gil-Rouxinol é a carnação disso. Se
para Affonso Ávila, "Sousândrade chega a uma intuição realmente notável do
problema da assimilação e redução de formas, tão atual e relevante para a nossa
arte de país novo, ao concluir que, dentre os estilos estrangeiros que enumera,
uns são repugnantes e outros, se não o são, modificam-se à natureza
americana" (p. 54); em Caetano Veloso o sistema metalinguístico (texto e
melodia) é experimentado e desestabilizado com o objetivo de cantar Gil: a
força estabilizadora (sonoro vs surdo).
Lembremos:
"Rouxinol" é canção de Gilberto Gil e Jorge Mautner. Diz a letra:
"Joguei no céu o meu anzol / Pra pescar o sol / Mas tudo que eu pesquei /
Foi um rouxinol". A rima "sol" e "rouxinol" parecem
ser os emblemas que Caetano toma para si em "Gilberto misterioso". O
trecho "Levei-o [o rouxinol] para casa / Tratei da sua asa / Ele ficou bom
/ Fez até um som / Ling, ling, leng / Ling, ling, leng, ling // Cantando um
rock com um toque diferente / Dizendo que era um rock do oriente pra mim"
também. Já que é a procura (o teste, o ensaio) do "toque diferente" o
que move o engenho de Caetano; e de Gil.
Se
a poesia verbivocovisual de Sousândrade investe na elaboração intelectual e
linguística, a canção de Caetano Veloso forja a improvisação para elogiar o
logos cantado pelo ser canoro: Gilberto Gil, digo, o rouxinol a "ave
imortal" da "Ode to a Nightingale" de Keats (1819): metáfora dos
poetas. Dito de outro modo, da impossibilidade da representação inventa-se, via
fragmentos, multipluralismo idiomático, urros, balbucios, cacofonias e inversões,
o sujeito americano na e pela linguagem. Autenticidade pessoal (montagem) e
lucidez da criação artística (técnica de colagem) unem Sousândrade a Caetano
Veloso. Gilberto Gil é o vértice deste triângulo amoroso da investigação de uma
forma original da experiência física do mundo: ser é fazer.
"Tem
a nação vaidosa, que enlevada / Dentre os espelhos cem outras nações, / De
todas toma os gestos – e alienada / Perde o próprio equilíbrio das
razões", anota Sousândrade no corpo do Guesa. Ora "rouxinol", ora "rouxínol" canta
Caetano. O erro da prosódia é assumido como traço distintivo. Como vimos com
Augusto de Campos, "a arte sonora sousandradina (...) é uma arte que não
se volta apenas para o acorde, mas se deixa torturar até a ruptura ou a
explosão pelo sentimento do desacorde".
O
próprio Augusto de Campos oraliza o episódio do "Inferno de Wall
Street" no disco de Cid Campos Música
para espetáculos de dança (2015). O disco é dividido em duas partes. A
primeira é esta de Augusto e foi realizada para o balé de Elianae Sofia
Cavalcante (2012). A segunda chamada Profetas
em movimento tem oralizações de o Guesa
por Décio Pignatari, Arnaldo Antunes, Walter Silveira, José Mindlin, Lauro
Moreira, Ricardo Araújo e Danilo Lôbo para coreografia de Soraia Silva (1988).
Cid tem sido o responsável por compor e interpretar músicas ligadas à poesia
experimental. Os discos Poesia é risco,
Ouvindo Oswald, Emily são alguns exemplos de sua verve.
Augusto
lê acompanhado de camadas sonoras sobrepostas - pós-utópicas - que mimetizam o
tom bíblico-apocalítico montado no texto. E chega à estrofe "Por sobre o
fraco a morte esvoaça... / Chicago em chama, em chama Boston, / De amor
Hell-Gate é esta frol... / Que John Caracol, / Chuva e sol, / Gil-engendra em
gil rouxinol... / Civilização... ham!... Court-hall!". Sobre o
trecho, Augusto anota "inclino-me a acreditar que o vocábulo 'gil', que
também aparece no composto 'gil-Jam', na estrofe 123, referido ao jornalista
James Gordon Bennet, tem seu significado ligado à ideia de astúcia, esperteza,
como consignam alguns raros dicionários" (ler Poesia antipoesia antropofagia & cia, p. 223).
"Brasil,
é braseiro de rosas", escreveu Sousândrade. "Um disco para
entendidos", escreveu Caetano Veloso no encarte do disco Araçá Azul. "Entendido" como
gíria para homossexual; "entendido" como quem sabe. E quem há de
entender sem se desentender na trama sousandradina? "Ir, ir indo",
"Eu vou, por que não?", "Destino eu faço não peço / Tenho direito
ao avesso" são versos de Caetano que afirmam a errância do Guesa de Sousândrade. Há um cruzamento
das dramatis personae, "a de
herói romântico (...) e a do herói indígena", segundo Luiza Lobo (ler Épica e modernidade em Sousândrade, p.
12). Por sua vez, há a justaposição da voz do romântico exilado - "Viola,
meu bem" - e da voz apocalíptica que diagostica a degradação -
"Épico". É nessa encruzilhada, nestes estados de amor à linguagem, de
valorização do mistério americano, que Sousândrade (Guesa) e Caetano (Araçá azul)
se encontram e nos convidam à reflexão da nação.
***
72 (W. CHILDS, A.M. elegiando sobre o filho de SARAH STEVENS:)
— Por sobre o fraco a morte esvoaça...
Chicago em chama, em chama Boston,
De amor Hell-Gate é esta frol...
Que John Caracol,
Chuva e sol,
Gil-engendra em gil rouxinol...
Civilização... ham!... Court-hall!
— Por sobre o fraco a morte esvoaça...
Chicago em chama, em chama Boston,
De amor Hell-Gate é esta frol...
Que John Caracol,
Chuva e sol,
Gil-engendra em gil rouxinol...
Civilização... ham!... Court-hall!
Nenhum comentário:
Postar um comentário