15 agosto 2019

Do jeito que você queria

Para Luiz Tatit, "A voz que canta prenuncia, para além de um certo corpo vivo, um corpo imortal. Um corpo imortalizado em sua extensão timbrística. Um corpo materializado nas durações melódicas. É quando o cancionista ultrapassa a realidade opressora do dia-a-dia, proporcionando viagens intermitentes aos seus ouvintes. É quando o cancionista tem o poder de aliviar as tensões do cotidiano, substituindo-as por tensões melódicas, em que só se inscrevem conteúdos afetivos ou estímulos somáticos" (Ver O cancionista).
Estas notas nos ajudam a pensar o disco de Enzo Banzo, a partir do título: Canção escondida (2017). Se na "entonação embrionária está o estilo da cultura gesticulado de modo personalista pelo compositor", como anota Tatit, Enzo Banzo faz da pesquisa dessa "canção escondida" por trás dos poemas que canta o seu estilo. Ao entoar, o cancionista dá vida ao "ser sensível" (ver Ensaio sobre a origem das línguas, de Rousseau) que cada poema guarda.
Noutro texto, Luiz Tatit observa que "Se a letra está pronta, o trabalho do melodista começa pela busca da entoação embrionária de suas frases. Uma vez identificadas as modulações prosódicas plausíveis, resta ao compositor estabelecê-las com maior ou menor fidelidade aos contornos da fala: é comum que aproveite o desenho da curva, mas expandindo seus pontos extremos no campo de tessitura" (Ver A arte de compor canções).
Deste modo, musicar um poema é compreender os indícios de oralização dados pelas palavras: inserir-se no estado de espírito do eu poemático, por vez, para transgredi-lo, mas, na maioria das vezes, para figurativizá-lo, ou seja, apresentá-lo como imagem na parede da mémória do ouvinte; é revocalizar a voz que canta por trás da voz que fala: a voz do poema, da letra; e é estabilizar o ser criado - o sujeito cancional - no ouvinte.
Enzo Banzo faz isso com os dez poemas escolhidos para terem suas canções escondidas reveladas. Os textos de Alice Ruiz, Arnaldo Antunes, Drummond, Marcelino Freire, Leminski, Averbuck, Camões, Cleusa Bernardes, Danislau e do próprio Enzo - cujo poema "Escondido" do livro Poesia colírica (2014) empresta o tema do disco - são tratados com pesquisa e rigor por quem ama estar "à procura do intangível / pelo toque no palpável". Tomemos como exemplo "Do jeito que você queria", poema de Alice Ruiz (Navalhanaliga, 1980).
No livro A primazia do poema (2019) Wilberth Salgueiro anota que "Em Navalhanaliga, de Alice Ruiz, há, como não poderia deixar de ser, um precioso 'retrato de época', expressão que dá título a um dos trabalhos mais fundamentais sobre a poesia e o comportamento do período. Pelas páginas quadrangulares do livro de capa avermelhada, poemas curtos, cômicos e incisivos dão o tom (temperados com sutil melancolia, aspecto da poesia marginal ainda pouco explorado pela crítica): — o psicodélico do desbunde e a dança imóvel do pensamento apreendemos em: 'que viagem/ ficar aqui/ parada'; — o chamamento à consciência das mulheres e ao fortalecimento dos direitos das minorias se inscreve em: 'nada na barriga/ navalha na liga/ valha', e em drumundana ('e agora maria?/// o amor acabou/ a filha casou/ o filho mudou/ teu homem foi pra vida/ que tudo cria/ a fantasia/ que você sonhou/ apagou/ à luz do dia/// e agora maria?/ vai com as outras/ vai viver/ com a hipocondria'); — uma reflexão acerca das delicadas relações entre a arte e a sociedade, em especial as classes menos favorecidas economicamente, se dá em: 'se eu fizer poesia/ com tua miséria/ ainda te falta pão/ pra mim não'".
Se, recorrendo novamente a Luiz Tatit, "a partir da letra, temos também indicações sobre o enaltecimento da conjunção do sujeito (intérprete ou personagem) com outro sujeito ou seu objeto de desejo, bem como, ao contrário, sobre o estado de insatisfação em que vive esse mesmo sujeito em virtude da ausência de seu bem-querer ou de seus principais valores", ao musicar a poesia de Alice Ruiz, poeta que entende a escrita como ferramenta para transformações culturais, Enzo Banzo presentifica a voz da mulher, feminina, feminista por trás da voz que canta: "vontade de ficar sozinha", diz o poema; canta Enzo.
O sujeito cancional acessa e ativa o diagnóstico - "bagaço no peito" - e a ironia - "defeito de mercadoria" - da mulher do poema. Ao assumir ser do jeito que o outro queria, a mulher do papel reflete sobre as expectativas de si no mundo: sozinha. "Antes só do que mal acompanhada", diz o ditado. E ela quer saber-se para além das expectativas domesticadoras. Daí a navalha no título do livro: arma de defesa, de transformação - verte-se o sangue da poeta.
No poema "Drumundana", paródia do poema "E agora, José?" de Carlos Drummond de Andrade, Alice Ruiz pergunta: "e agora Maria? / o amor acabou / a filha casou / o filho mudou / teu homem foi pra vida / que tudo cria / a fantasia / que você sonhou / apagou / à luz do dia / e agora Maria? / vai com as outras / vai viver com a hipocondria". Assim como no poema de Drummond, a tensão está posta: Maria é quem fala? Ou Maria é com quem se fala? Este jogo entre eu e outra interessa à ética e à estética de Alice. E são elementos que também sugerem o tom - a melodia de andamento desacelerado - criado por Enzo para a canção "Do jeito que você queria".
O canto que por vezes roça a fala e o violão ironicamente passional do intérprete, aliados ao piano elétrico de João Leão, criam a melodia lenta e expandida na tessitura da voz em autorreflexão. Integrante da banda Porcas Borboletas, a musicalização de poemas faz parte do projeto estético de Enzo Banzo. A banda que já musicou, por exemplo, poemas de Clara Averbuck e Paulo Leminski, é conhecida por suas apresentações passionais, topos que Enzo incorpora na persona cancional criada para o diálogo com Alice Ruiz.
Ironia e paixão se experimentam. Voltando ao texto de Luiz Tatit, podemos dizer que durante a audição da canção ergue-se "um corpo materializado nas durações melódicas", que "é quando o cancionista [e a voz que fala no corpo do poema] ultrapassa a realidade opressora do dia-a-dia, proporcionando viagens intermitentes aos seus ouvintes". E a si. A canção escondida se revela, se afirma, é no mundo - mundana-se.

***

Do jeito que você queria
(Enzo Banzo / Alice Ruiz)

Vontade de ficar sozinha
Só pra saber
Se você ia
Ou vinha
Quando deixou
Esse bagaço
No meu peito
Pedaço estreito
Desfeito na mercadoria
Do jeito que você queria

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