31 julho 2019

Homens

O que une os artistas plásticos Leonilson e Bispo do Rosário, o cangaceiro Lampião e o rebelde marinheiro João Cândido? O bordado, responde o poema "Homens", de Ricardo Aleixo (ler Antiboi): "Leonilson / pintava / e / bordava. //  Bispo do Rosário / colecionava / delírios / e bordava. // Lampião / tocava o terror / no sertão / e bordava. // João Cândido / punha a República / no curé / e bordava".
Se o trabalho de bordar parece mais facilmente relacionado a Leonilson e Bispo do Rosário, é preciso atravessar as imagens e os mitemas historicamente cristalizados de Lampião e João Cândido para acessar a referência feita no poema.
O fato é que o rei do cangaço era responsável por costurar e ornamentar suas roupas e as do bando. No livro Estrelas de Couro – A Estética do Cangaço, o historiador Frederico Pernambucano de Mello analisa como Lampião (Virgulino Ferreira da Silva, 1898-1938) criou a assinatura de seu grupo, distinguindo-se dos cangaceiros (jagunços, bandoleiros) comuns. Metais, ouro, moedas, espelhinhos eram bordados à roupa. "Ele não era apenas o executor do bordado. Era também o estilista", grifa Mello.
Lampião ressignificou o termo e a imagem do cangaço - termo que faz referência à canga de madeira usada em carros de boi, carroças (ler Os Cangaceiros da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz). A coronha da espingarda deitada sobre os ombros faria lembrar a canga. Portanto, Lampião "tocava o terror no sertão e bordava".
Por sua vez, João Cândido Felisberto (1880-1969), líder da Revolta da Chibata, "o almirante negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais" da canção "O Mestre-sala dos Mares" de João Bosco e Aldir Blanc, canção censurada pela ditadura militar, também teve suas habilidades para o bordado reveladas no artigo "Os bordados de João Cândido" (ler Pontos e Bordados, de José Murilo de Carvalho).
José Murilo de Carvalho anota que "João Cândido bordava as águas da baía com o lento e majestoso evoluir dos encouraçados". Mais adiante conta que "em fevereiro de 1985, em uma das visitas periódicas a São João del Rei", sua atenção "foi chamada para duas toalhas bordadas conservadas no Museu de Arte Regional da cidade. A curiosidade virou assombro quando fui informado de que os bordados tinham sido feitos por ninguém menos do que João Cândido Felisberto. O conegaço João Cândido fazendo bordados?".
O assombro do autor transformou-se em pesquisa. Os bordados tinham sido doados ao museu por Antônio Manuel de Sousa Guerra, que ainda vivia na cidade, aos 92 anos. Carcereiro, o jovem sargento Antônio conhecera João Cândido e com este estabeleceu amizade. "O sargento jamais vira homem bordando e o primeiro fora João Cândido. Ficou particularmente interessado em um grande bordado do Minas Gerais e propôs comprá-lo. João Cândido respondeu que lhe daria o bordado de presente, que, na verdade, o estava fazendo para ele. Por alguma razão, de que Antônio Guerra não se lembra, o carcereiro não ganhou o Minas Gerais. Em compensação, João Cândido lhe deu duas toalhas bordadas, uma com o tema O adeus do marujo, e a outra com Amôr. São esses os dois bordados que se encontram no Museu de Arte Regional".
Ainda segundo o artigo, "os bordados teriam sido feitos após a morte dos companheiros [sufocados por poeira de cal, numa cela na Ilha das Cobras] e antes da remoção para o hospital [Nacional dos Alienados, na Urca]. Devem ter servido como uma espécie de autoterapia instintiva para fugir dos fantasmas que o perseguiam. Traumatizado pelas mortes, sentindo-se injustiçado pela traição do governo e fragilizado pela situação de preso incomunicável, João Cândido encontrou nos bordados a forma para extravar seus sentimentos. Daí seu valor único como documento revelador do lado humano do marinheiro".
É assim que João Cândido - que "tinha a imagem de um marinheiro machão, alto e forte. Sua figura não combinava em nada com o hábito de bordar, que era encarado como uma prática feminina" - "punha a República no curé [na parede, no seu devido lugar] e bordava".
A estes dois emblemas de virilidade, macheza e heróis de revoltas, o poema de Aleixo alinhava Leonilson (José Leonilson Bezerra Dias, 1957-1993), artista cuja obra plástica também se utilizou da costura e do bordado de palavras, frases, versos em tecidos vários. Segundo a crítica Lisette Lagnado (ler Leonilson: são tantas as verdades), cada peça realizada pelo artista é construída como uma carta para um diário íntimo. Gesto intensificado quando em 1991 descobre ser soropositivo para HIV/Aids. Estigma e moralismo passam a ser enfrentados numa estética singular, única, bioescrítica por Leonilson.
Os bordados de João Cândido - Amôr: um coração sangrando atravessado por uma espada, cercado por flores, borboletas e pássaros; e O adeus do marujo: além do desenho em que duas mãos se cumprimentam e uma âncora junta as mãos enfeitadas por dois ramos, vêm-se as palavras "liberdade" e "ordem" - irmanam-se aos bordados de Leonilson, seja na temática bioescrita, corações feridos de amor, de opressão social; seja pelo uso da palavra grafada, ou seja, costurada à subjetividade em expressão. 
Se Leonilson rompeu com a mudez artística e discursiva sobre a Aids - por exemplo, há uma gota de sangue do artista Leonilson no desenho que intitula a série O Perigoso (1992) -, logo, "deu pinta" e bordava, bagunçou as certezas, passou dos limites impostos; Arthur Bispo do Rosário Paes (1909-1989) usava linha (obtida dos uniformes do hospital psiquiátrico) e agulha para colecionar delírios e bordar. Vítima do pensamento eugênico, Bispo bordou vários mantos, criando obras-primas como o Manto do juízo final. Bordar palavras, tecer labirintos onde se perdia para se achar - manter a memória de si - era gesto biopoético do artista: sua voz.
No poema "Bispo do Rosário" temos cantada e confessada a potência que o artista exerce sobre a obra de Ricardo Aleixo: "quem fez e refez / cem vezes o // caminho do mundo / até antes // cem vezes na / cabeça o longo // trecho entre o / mar e o // céu / quem re fez o // caminho da perda / com seu manto // de / ver deusfilho". Rosário é referência para Ricardo criar "O poemanto: ensaio para escrever (com) o corpo". Poesia, performance, "obra permanentemente em obras". "(Arthur Bispo do Rosário bordou / em um de seus estandartes: / 'Todo louco tem um morto / que ele carrega nas costas. / O louco só fica bom quando / se livra do morto'), escreve Aleixo, autor que trabalha a "poesia expandida" com elementos de ancestralidade e experimentalismo, pesquisa e inconformismo.
Como dar conta do ato de ler e vozear um poema de Ricardo Aleixo, sendo ele um artista em permanente elaboração desses atos? Costurar palavras é trabalho do poeta. Em "Homens" Aleixo revisita a história - dá "glória a todas as lutas inglórias / que através da nossa história / não esquecemos[?] jamais" - pesquisando o que faz do sujeito social um homem, ao mesmo tempo em que tenciona as imagens, as referências do que significa ser homem: mitos e deslocamentos.
Para dividir os vocais na canção criada a partir do poema "Homens" no disco Se tudo ruir deixa entrar o ruído (2019) Gustavo Galo convida Rubi. Eis o ato possível: dividir a voz das vozes contidas no texto, devolver ao corpo, ao ar a encarnação do papel. O clima épico dado pela bateria de Mariá Portugal, baixo acústico de Meno del Picchia e piano de Tomás Oliveira é contrabalanceado com as oitavas acima e os falsetes de Rubi e os graves de Gustavo Galo: tensão. A canção dramatiza as subjetividades contadas no poema, une as pontas das histórias bordadas por Aleixo. A audição de "Homens" mira o ruir da masculinidade tóxica e estrutural de nossa cultura: ruído. Atentemos para a gestualidade vocal de Rubi ao dizer e estender as vogais em "curé".
No já citado "O poemanto" Ricardo escreveu que "Sou, quando coloco sobre / meu corpo (negro) / o pedaço de pano (preto) / coberto por palavras grafadas / com tinta (branca) / ao qual dei o nome / de poemanto, / um performador". É a performance "(como gênero artístico)" do homem o que se realiza em "Homens": no poema, na canção. "Deixar para trás / os cadáveres, se não for possível / enterrá-los com dignidade, / ou incinera-los / e espalhar suas cinzas ao vento". Não é isso o que Gustavo Galo e Rubi fazem com os homens do poema?

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Homens
(Ricardo Aleixo / Gustavo Galo)

Leonilson
pintava
e
bordava.

Bispo do Rosário
colecionava
delírios
e bordava.

Lampião
tocava o terror
no sertão
e bordava.

João Cândido
punha a Républica
no curé
e bordava. 
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