Desde o Projeto 365 Canções (2010), o desafio é ser e estar à escuta dos cancionistas do Brasil, suas vocoperformances; e mergulhar nas experiências poéticas de seus sujeitos cancionais sirênicos.
26 dezembro 2017
Sons de 2017
"Esú", "Pajubá" e "Galanga livre" foram os discos mais intensos de 2017. Versos, sons e ritmos que abrem possibilidades. Paralelos a estes, eis (em modo aleatório) a seleção dos discos de 2017 com os quais mais convivi:
Juçara Marçal, Rodrigo Campos, Gui Amabis - Sambas do absurdo;
Baco Exú do Blues - Esú;
Linn da Quebrada - Pajubá
Hamilton de Holanda Quinteto - Casa de Bituca
Aláfia - SP não é sopa
Kiko Dinucci - Cortes curtos
Maria Alcina - Espírito de tudo
Otto - Ottomatopeia
Curumin - Boca
Mônica Salmaso - Caipira
Chico Buarque - Caravanas
Rodrigo Ogi - Pé no chão
Gal Costa - Estratosférica ao vivo
Filipe Catto - Catto
Rincon Sapiência - Galanga Livre
Duda Brack, Charles Gavin, Felipe Ventura, Paulo Rafael e Pedro Coelho - Primavera nos dentes
21 dezembro 2017
A voz do morto
Sons de 2017. MENÇÃO HONROSA. Se for para regravar e não reassinar,
recriar, reinventar a canção, melhor nem cantar. Maria Alcina e o
produtor Thiago Marques Luiz
sabem disso e assinaram - tornaram inéditas - canções em que a
antropofagia de Caetano Veloso se revela mais evidente. Exemplo disso é
"A voz do morto", paródia tropicalista caetânica de "A voz do morro", de
Zé Keti. Composta para Aracy de Almeida cantar, "A voz do morto"
dispara: "Eles querem salvar as glórias nacionais
/ Coitados / Ninguém me salva / Ninguém me engana / Eu sou alegre / Eu
sou contente / Eu sou cigana / Eu sou terrível / Eu sou o samba". Estes
versos são apropriados por Maria Alcina naquilo que eles guardam da raiz
difusa do samba, que no Brasil pode unir, na voz de Aracy, Paulinho da
Viola (Viva!) e Roberto Carlos ("Eu sou terrível"). Rainha dos
terreiros, a voz singular de Maria Alcina canta do lado de fora, à
margem, mas na glória de quem compreende as contradições do país -
"feito de ouro e prata e filó de nylon" - que tem o samba (margem da
margem) como ícone. E faz isso com um arranjo de rock pesado, além das
vozes incidentais de Chacrinha, Dercy Gonçalves, Elke Maravilha, Grande
Otelo e Aracy de Almeida - símbolos de carnavalização, de autoironia, de
deboche crítico. Portanto, ninguém melhor do que Maria Alcina, esse
espírito de tudo, para comer - o filme "Terra em transe", o livro
"PanAmérica", a peça "O rei da vela" e a instalação "Tropicália" - e
cuspir na cara dos caretas neste ano do meio século da Tropicália - "a
vez do louco / a vez de tudo".
20 dezembro 2017
Capitães da areia
Sons de 2017. TRÊS. "Capitães da areia" é uma das canções mais
sinestésicas deste ano. Já nos versos da "Intro" - "As luzes da cidade,
batuque, tiro, gemidos, briga é um caos tão bonito" - temos cheiros,
visões, escutas e toques que impregnam todo o disco "Esú" de Baco Exu do
Blues (Diogo Moncorvo). Os versos "Somos argila do divino mangue / Suor
e sangue / Carne e agonia / Sangue quente noite fria" sintetizam a
pretendida e brilhantemente executada harmonização (ruidosa e libertária)
entre bem e mal - essas condições complementares (não opostas) do
Humano. Isso se dá na incorporação de cânticos (ancestrais) de domínio
público ao rap (contemporâneo). De fato, o rapper e o cantador popular
se cruzam naquilo que a oralidade tem de transmissão de um saber
corporal/experimental não domável pela/na escrita. (Mário de Andrade e
Jorge Amado, citados na canção, que nos digam). Aliás, é neste
entre-lugar que Exú - a voz que fala por trás da voz que canta - é e
está: na encruzilhada ética e estética, na travessia. "Vi os prédios
subindo / A mata acabando / Aproveitei e arranhei o céu / (...) / Onde
cidadãos de bem queimam terreiros / E espancam mulheres, odeiam os
pretos / Odeiam o gueto, matam por dinheiro / Eu sou caos, eu sou
vilão", afirma.
19 dezembro 2017
Necomancia
Sons de 2017. DOIS. "Necomancia" é uma das canções mais políticas (e
desbundadas) deste ano. Os versos "Ai, que bixa! / Ai, que baixa! / Ai,
que bruxa / Isso aqui é bixaria / Eu faço necomancia" sintetizam
desbunde e política com a força de quem é "afeminada, bonita e folgada" -
Linn da Quebrada. Sem contar a ironia debochada da pergunta
desconstrutora (aí, Derrida) do "macho alfa": "Pra que eu quero sua pica se eu tenho
todos esses dedos?". Aquilo que oprime, coage e silencia é radicalmente
devorado - antropofagicamente - ao som de funk e demais sons
sintetizados e ameaça o poder do opressor: "deixa sua piroca bem
guardada na cueca / Se você encostar em mim, / Faço picadinho de neca".
Enviadescendo e invertendo a posição de controle do corpo alheio, a voz
que fala ataca justamente naquilo que o outro ostenta como centro de
poder: a "pica" pornografada. "Se tu quiser ficar comigo, boy, vai ter
que enviadescer", canta Linn noutra canção. E completa: "Já quebrei o
meu armário, agora eu vou te destruir / Porque antes era viado agora eu
sou travesti".
18 dezembro 2017
As caravanas
Sons de 2017. UM. "As caravanas" é uma das canções mais emblemáticas
deste ano. Os versos "Não há barreira que retenha esses estranhos
suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho a caminho do Jardim de Alá"
sintetizam tópicas urgentes de nossa atualidade, com o brilhantismo - "o
sol, a culpa deve ser do sol" - próprio de Chico Buarque: caravelas e
caravanas, refugiados e excluídos são sobrepostos tempoespacialmente.
Sem contar a beleza das camadas melódicas instrumentais e vocais:
rap e canção, violão e beatbox. Aquilo que se vê é tão terrível - "Tem
que bater, tem que matar engrossa a gritaria / Filha do medo, a raiva é
mãe da covardia" - que o sujeito da canção duvida e rejeita a visão:
"Doido sou eu que escuto vozes / Não há gente tão insana / Nem caravana
do Arará". Esse avesso do avesso diz bastante do nó em nós neste momento
descortês.