27 setembro 2012

Sangue, água e sal



Cantar uma canção implica em performatiza-la - torna-la concreta pela gestualidade vocal – e mima-la, em um ato metacancional, injetar vida (calor) na canção. Cantar uma canção é tencionar e misturar matéria e espírito, sendo este um produto do cérebro (da consciência) e do coração (dos riscos).
Em sua investigação sobre "'canção ruim', voltada para a satisfação de exigências, que por definição são banais, epidérmicas, imediatas, transitórias e vulgares" (p. 295-296), Umberto Eco, em "Canção de consumo" (ver Apocalípticos e integrados), sugere que é preciso ter cuidado na análise das questões relacionadas à crise do sujeito versus as novas tecnologias, para que não caiamos nem no elogio vazio da técnica, nem no preconceito ou na nostalgia vã.
É preciso pensar a complexidade do problema que distingue cultura de entretenimento e cultura como alimento do espírito, pois é na formação cumulativa das experiências - entre o entreter e o pensar – que o indivíduo integral se rascunha, vive e atua.
Se a cultura como alimento do espírito nos sugere a emancipação do indivíduo, não podemos esquecer que a técnica (as modernas possibilidades de gravação e reprodução de uma canção, por exemplo) é um produto (fruto) da marcha do humano. Para o bem e para o mal.
Se hoje, com a dificuldade que desenvolvemos sobre a duração na capacidade de atenção, já que há inúmeros apelos e intensidades exigindo nosso olhar e nosso ouvido – podemos mudar de faixa musical em um toque –, o cérebro pulsa em inúmeras frequências, parece que estamos diante do fato de que as nossas competências cognitivas apontam para a afirmação nietzschiana de Paul Valéry: "O mais profundo é a pele".
E é também Valéry quem anota: "– Adeus, fantasmas (Leonardo, Leibniz, Kant, Hegel, Marx)! O mundo já não precisa de vocês. Nem de mim. O mundo, que batiza com o nome de progresso sua tendência a uma precisão fatal, procura unir aos benefícios da vida as vantagens da morte".
Por sua vez, Umberto Eco escreve: "O drama de uma cultura de massa é que o modelo do momento de descanso se torna norma, faz-se o sucedâneo de todas as outras experiencias intelectuais, e portanto o entorpecimento da individualidade, a negação do  problema, a redução ao conformismo dos comportamentos, o êxtase passivo requerido por uma pedagogia paternalista que tende a criar sujeitos adaptados". (idem, p. 303).
Mas, como afirmar com Umberto Eco que "a música de consumo é um produto industrial que não mira a intenção de arte, e sim à satisfação das demandas do mercado" (idem, p. 296) perante a audição de Alice Caymmi cantando "Sangue, água e sal", de Alice Caymmi e Paulo César Pinheiro (Alice Caymmi, 2012)?
Ao que tudo indica, haveria uma hierarquia dentro da cultura do entretenimento, em que uma canção seria mais ou menos arte, numa escala hipotética e infrutífera diante da competência humana e individual de ressemantizar os objetos vindos da estrutura comercial da sociedade de massas.
Mesmo mediatizada e a mercê do sistema econômico, a canção popular não se furta das marcas e cicatrizes da tradição, do tempo, da história e da garganta de quem lhe deu vida. Guardada em um arquivo eletrônico, ela aponta que as tecnologias transformam o homem (ingênuo e complexo), porque vindas deste.
Em "Sangue, água e sal", a voz de Alice Caymmi e o acompanhamento melódico derivado da mítica sirênica se unem para figurativizar a imagem que estampa a capa do disco: uma neo-sereia surrada pelo tempo, multiplicada em outras pela breve história do sujeito e ressacada por temer Yemanjá.
A rainha do mar aparece aqui como fantasmagoria da fusão amor-morte, da vida que só existe no risco de morrer, se afogar, desaparecer: "Mergulhar no mar, não saber voltar / se deixar levar pela maré". O sujeito cancional que surge na interpretação de Alice rompe a dor com efeitos eletrônicos, ciranda a ilha com técnica e quer morrer para viver com Yemanjá - a grande sereia, mãe da sereia Alice.
"Sangue, água e sal" trai e não trai a "lógica das fórmulas" identificadas por Eco nas canções de consumo. Sim, há um tempo que se adéqua ao tempo breve das canções de consumo. Mas o modo e o cuidado identificado pelo ouvinte na execução eternizadora (porque fixa, gravada) da canção desperta um "expandir para dentro", um viver em si, uma quietude desestabilizadora que promove o pensamento, a concentração. A artesania (a singularidade) está na voz de quem canta, é isso que alguns teóricos do elogio à escrita não percebem.
Ou seja, não só de escrita e leitura vivem as experiências do indivíduo. Ele não sai sem marcas. E este processo é individual e singular, mexe com fissuras e crivos únicos. Por isso o erro das generalizações quando o assunto é arte, conhecimento e construção do eu. 

***

Sangue, água e sal
(Alice Caymmi / Paulo César Pinheiro)

À luz do luar
flores de Yemanjá
cobrem o altar do meu amor

Sangue, água e sal
o amor não tem dó
de quem não tem medo de amar

Pode se afogar, desaparecer
quem nunca temeu Yemanjá
Mergulhar no mar, não saber voltar
se deixar levar pela maré

13 setembro 2012

Beira mar



Em "A crise da filosofia messiânica" (In: A utopia antropofágica) Oswald de Andrade anota que o canibalismo é um tipo de antropofagia. Porém, enquanto o segundo trata-se de um rito, o primeiro acontece movido pela fome e pela gula. Ambos caracterizam uma "fase primitiva de toda a humanidade" (p. 138).
A antropofagia por fome se contrapõe à antropofagia ritual naquilo que esta tem de transformar o tabu em totem: "Do valor oposto, ao valor favorável". "A vida é devoração pura. Nesse devorar que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao homem totemizar o tabu", escreve Oswald (p. 139). E o que é o tabu, "senão o intocável, o limite?", pergunta-se.
O indivíduo ocidental é educado a jogar fora toda prosódia e todo saber oral, em benefício do racionalismo. No entanto, nas coerentes palavras de Tom Zé: "Aquilo que os meninos do Nordeste jogavam fora quando travavam contato com Aristóteles escapulia do córtex, se alinhava no hipotálamo e ali adormecia. Tornava-se lixo, só que um lixo dotado de lógica própria. (...) Um lixo lógico!" (Revista Bravo! 179, jul/2012).
O "lixo lógico" não é outro senão a promoção do "tabu em totem", a construção inconsciente de uma "gaia ciência", de um saber não catalogado e que escapa às ciências instituídas. Saber que se cria e se alastra sem o controle da razão. Eis o que venho defendendo aqui em relação ao saber implícito à canção popular brasileira, com suas profusões de sujeitos cancionais.
Como já escrevi: o sujeito cancional é uma categoria da performance vocal; é a entidade - primitiva - que surge no momento exato em que a canção é executada por alguém e ouvida por outro alguém conectado ao primeiro via "estados-de-espírito" no instante do tempo que dura a canção. Daí a riqueza de nossa canção popular e suas múltiplas temáticas totêmicas, favorecedoras da pluralidade dos sujeitos cancionais e, consequentemente, da "gaia ciência".
Parafraseando Nietzsche, podemos afirmar que o habitat dos grandes problemas é a canção, na rua. Ao menos no Brasil, onde tradicionalmente a canção dá voz a saberes os mais diversos, seja por fome, seja por ritual de inserção íntima na vida coletiva distante da divisão do trabalho e da organização da sociedade em classes. Dito de outro modo: Não falta canção para mimar o brasileiro e fazê-lo se sentir incluído, igual.
Isso é resultado da devoração, da antropofagia que nos une. Achar que um tipo ou um gênero de canção é ruim e/ou aliena o indivíduo é subestimar a competência antropofágica do indivíduo. Aliena em que? Para que? Em detrimento de que? Eis as perguntas que devemos fazer diante do latente preconceito: "(...) mas para outros não existia  aquela música não podia porque não podia popular aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não tarantina", canta o narrador de Galáxias, de Haroldo de Campos.
O fato é que o saber dos "analfabetos em Aristóteles (os "analfatóteles"), nas palavras de Tom Zé, impregnam a canção mediatizada com brilho e força. Seja o funk com a totemização do sexo, seja o rap com a totemização da violência, por exemplos.
É preciso pensar a dívida para com este saber não científico. É este débito - que dessacraliza o intocável para lhe restituir a beleza - que move, por exemplo, o grupo Cabruêra, com suas ressignificações da cultura popular oral nordestina: prenha da cultura moçárabe e dos cantadores das feiras livres.
O som do Cabruêra é o processamento de dados vocais, ainda transmitidos vocalmente na rua, na "festafeira no pino do sol a pino", como canta o narrador de Galáxias, em sua lagrimalegria esperançosa por suporta a condição presente.
Calcado na mistura inventiva da música nordestina com os sons do oriente, o disco Nordeste oculto (2012) recupera a promiscuidade originária. Aboio e microtonalidade, cítara e safona, xote e raga, a feira de Campina Grande e um mercado público do Oriente Médio em devoração antropofágica, ritual.
O disco é uma viagem sonora rica, complexa e orgânica (simples, natural). Mas, para continuar no tema da tradução do tabu (o intocável) em totem, gesto comum nas culturas antropófagas e tendentes ao matriarcado, destaco "Beira mar", de Alberto Marsicano, Arthur Pessoa, Pablo Ramires, Edy Gonzaga e Leo Marinho, e "Marujo antigo", de Oliveira de Panelas. Vindo esta antes daquela na sequencia do disco, aquela é a resposta deformativa e sagradora desta.
O grande repentista-trovador Oliveira de Panelas (canto-quase-fala e viola) tem sua função de cantador ressemantizada na canção do Cabruêra. O saber que lhe constitui e que ele oferece à cultura é absolvido pelo Cabruêra (percussão, violão, teclados, guitarra, acordeom, viola, baixo) que, por sua vez, devolve a tradição à tradição: desreprimindo o desejo.
"Cantador pra cantar beira mar comigo / tem que saber bem do oceano", canta do sujeito de "Beira Mar" após o sujeito de "Marujo antigo" ter dito "além de poeta sou marujo antigo / conheço esses mares por dentro e por fora (...) sou filho das águas convivo com elas / cantando galope na beira do mar".
O encontro hibridizador dos dois poetas - do "marujo antigo" com o "beira mar"; daquilo que é dito com o modo como é dito - revela a tradição em movimento: "lírica viagem de brisa e luar". O que ouvimos não chega a ser um desafio no sentido clássico do termo, mas um diálogo com a atemporalidade das sabedorias populares. Algo só possível na eficácia do gesto devorador do sujeito cancional criado pelo Cabruêra.

***

Marujo antigo
(Oliveira de Panelas)

Além de poeta sou marujo antigo
Conheço esses mares pode dentro e por fora
Dos raios poentes à luz da aurora
O ritmo das águas viajam comigo
Sereias de sonhos entendem o que eu digo
Na lírica viagem de brisa e luar
O mar nordestino é meu reino é meu lar
Não vejo fronteiras nas suas procelas
Sou filho das águas convivo com elas
Cantando galope na beira do mar

Beira mar
(Alberto Marsicano / Arthur Pessoa / 
Pablo Ramires / Edy Gonzaga / Leo Marinho)

Cantador pra cantar beira mar comigo
Tem que saber bem do oceano
Dos seus movimentos não terão engano
A fim de livrar-se de qualquer perigo
Além de poeta sou marujo antigo
Conheço galope na beira do mar