10 agosto 2012

A dor e o poeta


O sujeito cancional é um complexo de categorias. Ele só se permite ouvir no instante-já da canção. Ele amalgama a voz do compositor, a voz do sujeito da canção (a voz que "fala" a mensagem da letra da canção) e a voz do desejo do ouvinte. E se descola de todos estes quando permite a fruição, bem como a possível significação, pessoal e intransferível da canção.
Noutra e complementar perspectiva, podemos dizer que o sujeito cancional reúne em si "as três vozes da poesia" identificadas por T. S. Eliot (ver De poesia e poetas), a saber: a do poeta (indivíduo) que fala consigo mesmo, a do poeta (sujeito) que fala como um outro e a da personagem criada pelo poeta (indivíduo e sujeito). Eliot reconhece que elas não se excluem, ao contrário.
Porém, a estas, no caso do sujeito cancional, temos ainda a presença decisiva da voz do desejo do ouvinte: o espaço entre aquilo que é cantado e aquilo é ouvido. O sujeito cancional, portanto, é um lugar. É neste lugar que as canções deixam de ser promessas e passam a ser canção, como aponta o sujeito de "Nossa canção", de José Miguel Wisnik e Mauro Aguiar. E é deste lugar lamacento e nada asséptico que o compositor canta, transmutado em cancionista: "As canções / só são canções / quando não são / mais nossas" (versos da canção citada).
É através do sujeito cancional que podemos dizer que, ao cantar uma "mesma" canção, diferentes intérpretes também são autores daquela canção, singularizando-a em suas gestualidades vocais; e que, ao tomar a canção para si, o ouvinte se apropria da mensagem para "entender" o mundo à sua volta e a si mesmo, imerso no mundo. É o sujeito cancional, coincidido com o estado do ouvinte naquele momento de execução da canção, quem faz o convite para o canto compartilhado. "De voz em voz / de par em par" (idem).
 No caso das canções de amor, ou quando há na letra da canção um destinatário aparente, por exemplos, é o sujeito cancional quem permite que uma canção dirigida a uma pessoa possa ser ouvida e apropriada, pela empatia, por outras pessoas, quando do momento de sua vocalização. Nela o ouvinte entra em intimidade com o que lhe é apresentado. O ouvinte não conhece o sujeito, mas tem nele um cúmplice.
Ou seja, o sujeito cancional é performatização sirênica. Ele apresenta em som (tensão entre corpo e alma) algo que até então o ouvinte e o próprio compositor só tinham uma vaga ideia do que seria: a coisa em si - tão fluida e fugidia quanto a própria canção que (não) morre no ar. E aqui está o drama do sujeito cancional.
Em sua vasta e rica pesquisa sobre os medievais, provençais Paul Zumthor aponta que é preciso se concentrar "nos efeitos da voz humana, independentemente dos condicionamentos culturais particulares" (Performance, recepção, leitura p. 12) quando analisamos textos outrora oralizados e que nos são transmitidos como manuscritos. E reclama do silêncio profundo que nos cerca quando lidamos com as canções hoje tidas "apenas" como poesia.
Ao mesmo tempo, Zumthor anota que os meios eletrônicos "abolem a presença de quem traz a voz" e que "os media tendem a apagar as referências espaciais da voz viva". Salvo engano, o sujeito cancional como tenho aqui desenvolvido chama para si a responsabilidade de sustentar o mito, o arcaico vocal em tempos líquidos de reprodução técnica da voz.
Prismático, sujeito cancional é permanência (da certeza de que uma voz de alguém de carne e osso emitiu algo) e fluidez (momento luminoso feito um flash de compartilhamento de experiências). Corpórea e incorpórea, a canção é apreendida no corpo, que reage.
Pensando nestas vozes e em suas ações chegamos à canção "A dor e o poeta", de Moraes Moreira (A revolta dos ritmos, 2012). Nela, o sujeito da canção canta os motores que alimentam o poeta e a poesia. Retomando como mote o poema "Autopsicografia", de Fernando Pessoa, o sujeito diz: "A dor atinge / O peito do poeta / Mas ele finge / Que nada sente / e até se delicia". O foco aqui é na dor que o poeta "deveras sente". "É solidão / E ele dá outro nome: / Inspiração".
Há, no caso das canções, dos poemas vocalizados, entre a dor fingida (do campo da ficção) e a dor sentida (da inspiração), aliadas à dor vivida (no corpo) por quem ouve a canção, uma outra instância: o sujeito cancional, ligando tudo, entretendo a razão e tensionando as categorias no calor da voz que dura enquanto dura a canção.
De viés, "A dor e o poeta" chama atenção para o sadismo do ouvinte: "A dor destrói / Mas o poeta em si / É um herói / Diz que é feliz / E a plateia aplaude / E pede bis". O sujeito dessa canção parece chamar atenção para algo semelhante ao que experimenta o sujeito de "Bastidores", de Chico Buarque, na voz de Cauby Peixoto, que se constrói e se inventa diante dos ouvidos de quem lhe ouve cantar: "Cantei, cantei / Jamais cantei tão lindo assim / E os homens lá pedindo bis", apesar e além da dor.
A dor que atinge o peito do cantor se traduz em beleza trágica e satisfaz quem lhe ouve, satisfazendo a ele próprio por conseguir fingir (tornar arte/ficção) uma dor que deveras sente nesse "comboio de corda / que se chama coração", como anota Pessoa.
O texto de "A dor e o poeta" é cantado duas vezes: Na primeira a voz de Moreira declama os versos acompanhada de violões e sanfona, tal e qual acreditamos acontecia com a poesia medieval, provençal. Na segunda, no bis, com o poeta já devidamente deliciado na própria dor, Moreira canta: modaliza o texto na voz e na linha melódica dada pelos instrumentos. E vice-versa. E "o poeta faz / Um carnaval / Deixa doer / Até o fim / Ao bel prazer".
E a entrega no instante-já - "Em cada canção que vivo / motivo é que não me falta / Pra ir do começo ao fim", canta Moreira noutra canção do mesmo disco - se realiza. E o sujeito cancional surge e impregna de prazer a caixa acústica do ouvinte: "A dor é fria / Se não se transforma / Em poesia / Sofreguidão / Se não compõe os versos / De uma canção".

***

A dor e o poeta
(Moraes Moreira)

A dor atinge
O peito do poeta
Mas ele finge
Que nada sente
e até se delicia
Mas ele mente
A dor é tanta
No seu limiar
Mas ele canta
É de partir
O coração
Mas ele ri

A dor é fria
Se não se transforma
Em poesia
Sofreguidão
Se não compõe os versos
De uma canção
A dor invade
E o poeta diz
Que saudade
É solidão
E ele dá outro nome:
Inspiração

A dor é fina
O aço de um punhal
Não há morfina
Que traga alívio
Em sua permanência
Em seu convívio
A dor é tal
Mas o poeta faz
Um carnaval
Deixa doer
Até o fim
Ao bel prazer

A dor insana
Vai forjando as cenas
De um drama
E sobre o tema
Ergue a estrutura
Do seu poema

A dor destrói
Mas o poeta em si
É um herói
Diz que é feliz
E a plateia aplaude
E pede bis

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