"Mas se você tira a minha voz o que me resta?" pergunta a pequena sereia de Hans Christian Andersen, apontando o destino emudecedor e, portanto, trágico das sereias. Toda-phoné, a sereia reconhece a perda de sua essência na civilização da escrita. Para sobreviver, coube à sereia representar apenas a beleza física: e se inserir no mundo da visualidade.
Vocálico que ainda não se "elevou", a sereia é o monstro que mata o homem. Afinal, era ele quem saia ao mar, em um tempo em que, convenientemente, a mulher precisava ser sem voz. O silêncio das sereias e, consequentemente, o foco no físico, no corpo, ainda hoje serve à ideologia que teima em querer manter o silêncio da mulher.
A sereia oferece aos simples mortais aquilo que a musa só oferece aos poetas. E isso, em um mundo onde os segredos já não existem, quando a vida é assistida em "tempo real", ameaça a tentativa histórica e caduca de blindagem de certos setores da sociedade.
Na iconografia pictórica, o quadro de René Magritte em que uma impactante sereia invertida - parte de cima peixe, parte de baixo mulher - aparece deitada na praia é a exemplar radicalização do emudecimento sirênico: feita agora apenas ao desfrute sexual. Ou seja, se é para renunciar a alguma parte, a cabeça e a boca são as opções.
Inserindo-se na tradição crítica do destino das sereias, encontramos na série de pratos de Adriana Varejão o Sereias bêbadas (2009). Feito em óleo sobre fibra de vidro e resina, com dimensões de 150cm x 25cm, o prato apresenta as sereias como elementos que despertam o apetite. Não mais "apenas" sexual mas também gustativo.
Nadando entre figos suculentos e ostras semi-abertas, as sereias estão em seu habitat natural, mas a serviço tanto do "feliz poeta, quanto do esfomeado", como canta o sujeito de "A novidade", de Gilberto Gil e Paralamas do Sucesso.
A sugestão iconofágica (de devoração da imagem historicamente reconstruída das sereias) de Varejão produz o sensível. Somos convidados ao mergulho vertiginoso na concavidade do prato junto com os seres canoros dispostos em movimento de redemoinho. Desencarnado de nós, o sensível desperta a nossa subjetivação e cria uma aporia: por onde "comer" as sereias?E é nos figos em reconvexo, tridimensionais, do prato de Varejão que supomos tocar o sensível. Enquanto no convexo de Sereias bêbadas encontramos a harmonia por meio da recuperação da padronagem floral azul e branca da porcelana. Tudo quer ajudar a potência receptiva da sexualidade feminina: o contato entre sujeito e objeto. Ou melhor, quer ser meio, puro desperdício erótico.
Da mesma série e em mesmas dimensões, há ainda que se destacar o prato Mãe d’água (2009). Aqui, uma Iara (sereia negra-mestiça-amazônica) reina olhando o espectador sobre um fundo de água azul-escuro e agitada, entre seres aquáticos e um menino negro manchado de espuma branca. Mais um movimento iconofágico de Varejão.
Agora são jabuticabas que, tridimensionais, se protuberam na superfície côncava do prato. Estourando de tão maduras, brilhantes e apetitosas, as frutas nativas da Mata Atlântica funcionam na mesma intenção de "corpo à disposição" que os figos e mariscos do outro prato. Já a parte convexa é trabalhada em estilo marajoara.Sobrepostos, os dois pratos de Adriana Varejão, problematizando às técnicas - cerâmicas "feitas" de fibra de vidro, ou melhor, fibra de vidro que se finge cerâmica - servem à investigação do lugar diacrônico do indivíduo, em perspectiva pós-colonial. Ao invés de uma análise histórica, partimos para uma análise geográfica da inversão, do fingimento, da invenção.
E é aqui que entro na leitura de "Dreamworld: Marco de Canaveses", de David Byrne e Caetano Veloso" (Onda Sonora: Red Hot + Lisbon, 1998, Red Hot + Rio 2, 2011 e Live at Carnegie Hall, 2012). A canção em terceira pessoa narra na primeira parte a trajetória de Carmen Miranda como signo, símbolo e emblema de hibridização. Já na segunda parte narra o trabalho meticuloso de um travesti que se monta para manter o sonho da presença de Carmen. Tais inferências são percebidas melhor quando se assiste ao clipe da canção.
O nome "Carmen Miranda" não aparece em nenhum momento da letra, mas está proliferado em toda a canção, inclusive nas vozes em falsetes de Veloso e Byrne. Além de se condensar no corpo do travesti que a performatiza entre o espocar de bolhas de sabão ao final do clipe.
Nascida em Marco de Canaveses, Noroeste de Portugal, Maria do Carmo é sereia que transplantada e ressignificada inventa-se Carmen Miranda: muda o modo de cantar no Brasil, exportando o país para o mundo. Ultra e pós moderna, não à toa ela é recuperada pela Tropicália, Carmen dilui os limites que separam o local e o global, o íntimo e o cosmopolita. Ela se inscreve como uma estrutura crítica dançante que dessacraliza a história.
O som do theremin - infelizmente, ausente na versão ao vivo - que abre e acompanha fantasmagoricamente a canção é Carmen Miranda, agora performatizada no corpo do travesti: esta neosereia - "She lives in the dark / Breathing in / Breathing out" - que desempenha o papel cultural essencial de manter viva a memória afetiva das divas que inventaram nossa geo-história.
Ela veio, a Maria do Carmo de Marco de Canaveses - "o nome da terra / onde Iara Oxum nasceu", e ela vem, a Carmen Miranda - "Em 1980 que ela veio ao mundo / Com os olhos azuis / E na testa as estrelas da cruz".
Bêbada em sonhos, lúcida demais, a Carmen de hoje guarda a Carmen-metáfora no corpo inconcluso, montado: Iaroxum - um novo orixá resultado da fusão diplomática imagética, harmonia que não dispensa a tensão, a fricção. Guitarra e percussão, pandeiro e violino, agogô, repique e programação eletrônica.
Sereia, "She's living in a dreamworld / Like regular people / And she's caught by the tail", o sujeito de "Dreamworld: Marco de Canaveses" ecoa o canto já cantado: "Ela diz que tem / diz que tem, diz que tem // (...) // Tem pele morena, o corpo febril / e dentro do peito o amor no Brasil", para colocá-la na geografia do corpo que agora lhe serve de suporte.
As "Mãos / Pés e mãos / Contramãos / Sins e nãos / Olhos sãos / De rolar e de ver" se hibridizam com uma entidade que "Agora moça / Agora ela / Agora faz". A representação pressupõe a imaginação. Olhos azuis e pele castanha - as tais jabuticabas oferecidas ao encanto do mundo no prato de Adriana Varejão.
Claro está que uma análise cronológica dos fatos não dá conta das torções críticas e teóricas que sugiro aqui. Ao inventar um sentimento íntimo entre as linguagens e seus signos, cabe mostrar que o histórico está presente no agora através da seleção de dados que possibilitam os contatos e a análise.
Deste modo, os pratos de Adriana Varejão não são menos cerâmica por serem de fibra de vidro. Nem Carmen Miranda é menos ela por está no corpo dele. Portanto, é preciso pensar com rigor a cultura brasileira também a partir da combinação afetiva (agrado e desagrado) de elementos diacrônicos, a partir das invenções e das inversões artificiosas: pintura marajoara feita em fibra de vidro; negro-índio tingido de espuma branca; tropicalidade colada à pele da moça vinda da Europa; o canto do feminino que há no corpo morfologicamente masculino; vozes inglesa e brasileira se justapondo - tudo cantando o lugar do Brasil no mundo.
A sereia oferece aos simples mortais aquilo que a musa só oferece aos poetas. E isso, em um mundo onde os segredos já não existem, quando a vida é assistida em "tempo real", ameaça a tentativa histórica e caduca de blindagem de certos setores da sociedade.
Na iconografia pictórica, o quadro de René Magritte em que uma impactante sereia invertida - parte de cima peixe, parte de baixo mulher - aparece deitada na praia é a exemplar radicalização do emudecimento sirênico: feita agora apenas ao desfrute sexual. Ou seja, se é para renunciar a alguma parte, a cabeça e a boca são as opções.
Inserindo-se na tradição crítica do destino das sereias, encontramos na série de pratos de Adriana Varejão o Sereias bêbadas (2009). Feito em óleo sobre fibra de vidro e resina, com dimensões de 150cm x 25cm, o prato apresenta as sereias como elementos que despertam o apetite. Não mais "apenas" sexual mas também gustativo.
Nadando entre figos suculentos e ostras semi-abertas, as sereias estão em seu habitat natural, mas a serviço tanto do "feliz poeta, quanto do esfomeado", como canta o sujeito de "A novidade", de Gilberto Gil e Paralamas do Sucesso.
A sugestão iconofágica (de devoração da imagem historicamente reconstruída das sereias) de Varejão produz o sensível. Somos convidados ao mergulho vertiginoso na concavidade do prato junto com os seres canoros dispostos em movimento de redemoinho. Desencarnado de nós, o sensível desperta a nossa subjetivação e cria uma aporia: por onde "comer" as sereias?E é nos figos em reconvexo, tridimensionais, do prato de Varejão que supomos tocar o sensível. Enquanto no convexo de Sereias bêbadas encontramos a harmonia por meio da recuperação da padronagem floral azul e branca da porcelana. Tudo quer ajudar a potência receptiva da sexualidade feminina: o contato entre sujeito e objeto. Ou melhor, quer ser meio, puro desperdício erótico.
Da mesma série e em mesmas dimensões, há ainda que se destacar o prato Mãe d’água (2009). Aqui, uma Iara (sereia negra-mestiça-amazônica) reina olhando o espectador sobre um fundo de água azul-escuro e agitada, entre seres aquáticos e um menino negro manchado de espuma branca. Mais um movimento iconofágico de Varejão.
Agora são jabuticabas que, tridimensionais, se protuberam na superfície côncava do prato. Estourando de tão maduras, brilhantes e apetitosas, as frutas nativas da Mata Atlântica funcionam na mesma intenção de "corpo à disposição" que os figos e mariscos do outro prato. Já a parte convexa é trabalhada em estilo marajoara.Sobrepostos, os dois pratos de Adriana Varejão, problematizando às técnicas - cerâmicas "feitas" de fibra de vidro, ou melhor, fibra de vidro que se finge cerâmica - servem à investigação do lugar diacrônico do indivíduo, em perspectiva pós-colonial. Ao invés de uma análise histórica, partimos para uma análise geográfica da inversão, do fingimento, da invenção.
E é aqui que entro na leitura de "Dreamworld: Marco de Canaveses", de David Byrne e Caetano Veloso" (Onda Sonora: Red Hot + Lisbon, 1998, Red Hot + Rio 2, 2011 e Live at Carnegie Hall, 2012). A canção em terceira pessoa narra na primeira parte a trajetória de Carmen Miranda como signo, símbolo e emblema de hibridização. Já na segunda parte narra o trabalho meticuloso de um travesti que se monta para manter o sonho da presença de Carmen. Tais inferências são percebidas melhor quando se assiste ao clipe da canção.
O nome "Carmen Miranda" não aparece em nenhum momento da letra, mas está proliferado em toda a canção, inclusive nas vozes em falsetes de Veloso e Byrne. Além de se condensar no corpo do travesti que a performatiza entre o espocar de bolhas de sabão ao final do clipe.
Nascida em Marco de Canaveses, Noroeste de Portugal, Maria do Carmo é sereia que transplantada e ressignificada inventa-se Carmen Miranda: muda o modo de cantar no Brasil, exportando o país para o mundo. Ultra e pós moderna, não à toa ela é recuperada pela Tropicália, Carmen dilui os limites que separam o local e o global, o íntimo e o cosmopolita. Ela se inscreve como uma estrutura crítica dançante que dessacraliza a história.
O som do theremin - infelizmente, ausente na versão ao vivo - que abre e acompanha fantasmagoricamente a canção é Carmen Miranda, agora performatizada no corpo do travesti: esta neosereia - "She lives in the dark / Breathing in / Breathing out" - que desempenha o papel cultural essencial de manter viva a memória afetiva das divas que inventaram nossa geo-história.
Ela veio, a Maria do Carmo de Marco de Canaveses - "o nome da terra / onde Iara Oxum nasceu", e ela vem, a Carmen Miranda - "Em 1980 que ela veio ao mundo / Com os olhos azuis / E na testa as estrelas da cruz".
Bêbada em sonhos, lúcida demais, a Carmen de hoje guarda a Carmen-metáfora no corpo inconcluso, montado: Iaroxum - um novo orixá resultado da fusão diplomática imagética, harmonia que não dispensa a tensão, a fricção. Guitarra e percussão, pandeiro e violino, agogô, repique e programação eletrônica.
Sereia, "She's living in a dreamworld / Like regular people / And she's caught by the tail", o sujeito de "Dreamworld: Marco de Canaveses" ecoa o canto já cantado: "Ela diz que tem / diz que tem, diz que tem // (...) // Tem pele morena, o corpo febril / e dentro do peito o amor no Brasil", para colocá-la na geografia do corpo que agora lhe serve de suporte.
As "Mãos / Pés e mãos / Contramãos / Sins e nãos / Olhos sãos / De rolar e de ver" se hibridizam com uma entidade que "Agora moça / Agora ela / Agora faz". A representação pressupõe a imaginação. Olhos azuis e pele castanha - as tais jabuticabas oferecidas ao encanto do mundo no prato de Adriana Varejão.
Claro está que uma análise cronológica dos fatos não dá conta das torções críticas e teóricas que sugiro aqui. Ao inventar um sentimento íntimo entre as linguagens e seus signos, cabe mostrar que o histórico está presente no agora através da seleção de dados que possibilitam os contatos e a análise.
Deste modo, os pratos de Adriana Varejão não são menos cerâmica por serem de fibra de vidro. Nem Carmen Miranda é menos ela por está no corpo dele. Portanto, é preciso pensar com rigor a cultura brasileira também a partir da combinação afetiva (agrado e desagrado) de elementos diacrônicos, a partir das invenções e das inversões artificiosas: pintura marajoara feita em fibra de vidro; negro-índio tingido de espuma branca; tropicalidade colada à pele da moça vinda da Europa; o canto do feminino que há no corpo morfologicamente masculino; vozes inglesa e brasileira se justapondo - tudo cantando o lugar do Brasil no mundo.
***
Dreamworld: Marco de Canaveses
(David Byrne / Caetano Veloso)
Tem
Quem não tem
Ela tem
Diz que tem
Mas também
Nem precisa dizer
And if it is real
Wanna touch
Wanna feel
She can dance
She belongs
She believes
Marco de Canaveses
o nome da terra
Onde Iara Oxum nasceu
And the taste of each flower is sweet
So why do the say she's a bad girl
She lives in the dark
Breathing in
Breathing out
It is wild
It is real
It is good
Mãos
Pés e mãos
Contramãos
Sins e nãos
Olhos sãos
De rolar e de ver
She's living in a dreamworld
Like regular people
And she's caught by the tail
Filha de um mestre cafuso
Deusa do céu
Como tu e eu
Ela veio
Ela vem
Vem trazer encanto ao mundo
She's living in a dreamworld
Like regular people
And she's caught by the tail
And the taste of each flower is sweet
So why do they say she's a bad girl
Em 1980 que ela veio ao mundo
Com os olhos azuis
E na testa as estrelas da cruz
Ela agora moça
Agora ela
Agora faz
E na pele castanha ela traz uma luz de cajus
Marco de Canaveses
o nome da terra
Onde Iara Oxum nasceu
Filha de um mestre cafuso
Deusa do céu
como tu e eu
Take away, take away
Take away that hurting feeling
Ela veio, ela vem
Vem trazer encanto ao mundo
Wash away, wash away
Wash away that hurting feeling
Ela veio, ela vem
Vem trazer encanto ao mundo
(David Byrne / Caetano Veloso)
Tem
Quem não tem
Ela tem
Diz que tem
Mas também
Nem precisa dizer
And if it is real
Wanna touch
Wanna feel
She can dance
She belongs
She believes
Marco de Canaveses
o nome da terra
Onde Iara Oxum nasceu
And the taste of each flower is sweet
So why do the say she's a bad girl
She lives in the dark
Breathing in
Breathing out
It is wild
It is real
It is good
Mãos
Pés e mãos
Contramãos
Sins e nãos
Olhos sãos
De rolar e de ver
She's living in a dreamworld
Like regular people
And she's caught by the tail
Filha de um mestre cafuso
Deusa do céu
Como tu e eu
Ela veio
Ela vem
Vem trazer encanto ao mundo
She's living in a dreamworld
Like regular people
And she's caught by the tail
And the taste of each flower is sweet
So why do they say she's a bad girl
Em 1980 que ela veio ao mundo
Com os olhos azuis
E na testa as estrelas da cruz
Ela agora moça
Agora ela
Agora faz
E na pele castanha ela traz uma luz de cajus
Marco de Canaveses
o nome da terra
Onde Iara Oxum nasceu
Filha de um mestre cafuso
Deusa do céu
como tu e eu
Take away, take away
Take away that hurting feeling
Ela veio, ela vem
Vem trazer encanto ao mundo
Wash away, wash away
Wash away that hurting feeling
Ela veio, ela vem
Vem trazer encanto ao mundo
Obrigada pelo seu artigo, muito interessante essa visão de muitos aspetos da cultura se justapondo e originando uma lindíssima canção como essa. Gostei muito da sua análise, mas em nenhum momento do clipe pensei que aquela menina performatizando a Carmen era, na realidade, um homem :)
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