29 março 2012

Dreamworld: Marco de Canaveses

"Mas se você tira a minha voz o que me resta?" pergunta a pequena sereia de Hans Christian Andersen, apontando o destino emudecedor e, portanto, trágico das sereias. Toda-phoné, a sereia reconhece a perda de sua essência na civilização da escrita. Para sobreviver, coube à sereia representar apenas a beleza física: e se inserir no mundo da visualidade.
Vocálico que ainda não se "elevou", a sereia é o monstro que mata o homem. Afinal, era ele quem saia ao mar, em um tempo em que, convenientemente, a mulher precisava ser sem voz. O silêncio das sereias e, consequentemente, o foco no físico, no corpo, ainda hoje serve à ideologia que teima em querer manter o silêncio da mulher.
A sereia oferece aos simples mortais aquilo que a musa só oferece aos poetas. E isso, em um mundo onde os segredos já não existem, quando a vida é assistida em "tempo real", ameaça a tentativa histórica e caduca de blindagem de certos setores da sociedade.
Na iconografia pictórica, o quadro de René Magritte em que uma impactante sereia invertida - parte de cima peixe, parte de baixo mulher - aparece deitada na praia é a exemplar radicalização do emudecimento sirênico: feita agora apenas ao desfrute sexual. Ou seja, se é para renunciar a alguma parte, a cabeça e a boca são as opções.
Inserindo-se na tradição crítica do destino das sereias, encontramos na série de pratos de Adriana Varejão o Sereias bêbadas (2009). Feito em óleo sobre fibra de vidro e resina, com dimensões de 150cm x 25cm, o prato apresenta as sereias como elementos que despertam o apetite. Não mais "apenas" sexual mas também gustativo.
Nadando entre figos suculentos e ostras semi-abertas, as sereias estão em seu habitat natural, mas a serviço tanto do "feliz poeta, quanto do esfomeado", como canta o sujeito de "A novidade", de Gilberto Gil e Paralamas do Sucesso.
A sugestão iconofágica (de devoração da imagem historicamente reconstruída das sereias) de Varejão produz o sensível. Somos convidados ao mergulho vertiginoso na concavidade do prato junto com os seres canoros dispostos em movimento de redemoinho. Desencarnado de nós, o sensível desperta a nossa subjetivação e cria uma aporia: por onde "comer" as sereias?E é nos figos em reconvexo, tridimensionais, do prato de Varejão que supomos tocar o sensível. Enquanto no convexo de Sereias bêbadas encontramos a harmonia por meio da recuperação da padronagem floral azul e branca da porcelana. Tudo quer ajudar a potência receptiva da sexualidade feminina: o contato entre sujeito e objeto. Ou melhor, quer ser meio, puro desperdício erótico.
Da mesma série e em mesmas dimensões, há ainda que se destacar o prato Mãe d’água (2009). Aqui, uma Iara (sereia negra-mestiça-amazônica) reina olhando o espectador sobre um fundo de água azul-escuro e agitada, entre seres aquáticos e um menino negro manchado de espuma branca. Mais um movimento iconofágico de Varejão.
Agora são jabuticabas que, tridimensionais, se protuberam na superfície côncava do prato. Estourando de tão maduras, brilhantes e apetitosas, as frutas nativas da Mata Atlântica funcionam na mesma intenção de "corpo à disposição" que os figos e mariscos do outro prato. Já a parte convexa é trabalhada em estilo marajoara.Sobrepostos, os dois pratos de Adriana Varejão, problematizando às técnicas - cerâmicas "feitas" de fibra de vidro, ou melhor, fibra de vidro que se finge cerâmica - servem à investigação do lugar diacrônico do indivíduo, em perspectiva pós-colonial. Ao invés de uma análise histórica, partimos para uma análise geográfica da inversão, do fingimento, da invenção.
E é aqui que entro na leitura de "Dreamworld: Marco de Canaveses", de David Byrne e Caetano Veloso" (Onda Sonora: Red Hot + Lisbon, 1998, Red Hot + Rio 2, 2011 e Live at Carnegie Hall, 2012). A canção em terceira pessoa narra na primeira parte a trajetória de Carmen Miranda como signo, símbolo e emblema de hibridização. Já na segunda parte narra o trabalho meticuloso de um travesti que se monta para manter o sonho da presença de Carmen. Tais inferências são percebidas melhor quando se assiste ao clipe da canção.
O nome "Carmen Miranda" não aparece em nenhum momento da letra, mas está proliferado em toda a canção, inclusive nas vozes em falsetes de Veloso e Byrne. Além de se condensar no corpo do travesti que a performatiza entre o espocar de bolhas de sabão ao final do clipe.
Nascida em Marco de Canaveses, Noroeste de Portugal, Maria do Carmo é sereia que transplantada e ressignificada inventa-se Carmen Miranda: muda o modo de cantar no Brasil, exportando o país para o mundo. Ultra e pós moderna, não à toa ela é recuperada pela Tropicália, Carmen dilui os limites que separam o local e o global, o íntimo e o cosmopolita. Ela se inscreve como uma estrutura crítica dançante que dessacraliza a história.
O som do theremin - infelizmente, ausente na versão ao vivo - que abre e acompanha fantasmagoricamente a canção é Carmen Miranda, agora performatizada no corpo do travesti: esta neosereia - "She lives in the dark / Breathing in / Breathing out" - que desempenha o papel cultural essencial de manter viva a memória afetiva das divas que inventaram nossa geo-história.
Ela veio, a Maria do Carmo de Marco de Canaveses - "o nome da terra / onde Iara Oxum nasceu", e ela vem, a Carmen Miranda - "Em 1980 que ela veio ao mundo / Com os olhos azuis / E na testa as estrelas da cruz".
Bêbada em sonhos, lúcida demais, a Carmen de hoje guarda a Carmen-metáfora no corpo inconcluso, montado: Iaroxum - um novo orixá resultado da fusão diplomática imagética, harmonia que não dispensa a tensão, a fricção. Guitarra e percussão, pandeiro e violino, agogô, repique e programação eletrônica.
Sereia, "She's living in a dreamworld / Like regular people / And she's caught by the tail", o sujeito de "Dreamworld: Marco de Canaveses" ecoa o canto já cantado: "Ela diz que tem / diz que tem, diz que tem // (...) // Tem pele morena, o corpo febril / e dentro do peito o amor no Brasil", para colocá-la na geografia do corpo que agora lhe serve de suporte.
As "Mãos / Pés e mãos / Contramãos / Sins e nãos / Olhos sãos / De rolar e de ver" se hibridizam com uma entidade que "Agora moça / Agora ela / Agora faz". A representação pressupõe a imaginação. Olhos azuis e pele castanha - as tais jabuticabas oferecidas ao encanto do mundo no prato de Adriana Varejão.
Claro está que uma análise cronológica dos fatos não dá conta das torções críticas e teóricas que sugiro aqui. Ao inventar um sentimento íntimo entre as linguagens e seus signos, cabe mostrar que o histórico está presente no agora através da seleção de dados que possibilitam os contatos e a análise.
Deste modo, os pratos de Adriana Varejão não são menos cerâmica por serem de fibra de vidro. Nem Carmen Miranda é menos ela por está no corpo dele. Portanto, é preciso pensar com rigor a cultura brasileira também a partir da combinação afetiva (agrado e desagrado) de elementos diacrônicos, a partir das invenções e das inversões artificiosas: pintura marajoara feita em fibra de vidro; negro-índio tingido de espuma branca; tropicalidade colada à pele da moça vinda da Europa; o canto do feminino que há no corpo morfologicamente masculino; vozes inglesa e brasileira se justapondo - tudo cantando o lugar do Brasil no mundo.

***

Dreamworld: Marco de Canaveses
(David Byrne / Caetano Veloso)

Tem
Quem não tem
Ela tem
Diz que tem
Mas também
Nem precisa dizer

And if it is real
Wanna touch
Wanna feel
She can dance
She belongs
She believes

Marco de Canaveses
o nome da terra
Onde Iara Oxum nasceu
And the taste of each flower is sweet
So why do the say she's a bad girl

She lives in the dark
Breathing in
Breathing out
It is wild
It is real
It is good

Mãos
Pés e mãos
Contramãos
Sins e nãos
Olhos sãos
De rolar e de ver

She's living in a dreamworld
Like regular people
And she's caught by the tail

Filha de um mestre cafuso
Deusa do céu
Como tu e eu

Ela veio
Ela vem
Vem trazer encanto ao mundo

She's living in a dreamworld
Like regular people
And she's caught by the tail
And the taste of each flower is sweet
So why do they say she's a bad girl

Em 1980 que ela veio ao mundo
Com os olhos azuis
E na testa as estrelas da cruz

Ela agora moça
Agora ela
Agora faz
E na pele castanha ela traz uma luz de cajus

Marco de Canaveses
o nome da terra
Onde Iara Oxum nasceu

Filha de um mestre cafuso
Deusa do céu
como tu e eu

Take away, take away
Take away that hurting feeling
Ela veio, ela vem
Vem trazer encanto ao mundo
Wash away, wash away
Wash away that hurting feeling
Ela veio, ela vem
Vem trazer encanto ao mundo

22 março 2012

Voz mais triste

No meio do caminho há o denso silêncio. Feito de asfalto, vidro e óleo queimado, Calado, de Nuno Ramos, obriga o visitante do Museu do Açude (RJ) a desviar o caminho. A obra de Nuno Ramos interfere no verde-mata do lugar e parece perguntar: "Pra que cantar com alegria? Cantar assim faz mal a quem é triste" (versos de "Pra que cantar", de Nunos Ramos).
Em um complexo movimento de dentro-fora da euforia tropical pulsante ao seu redor, já que as árvores do lugar se refletem no vidro-núcleo-útero da obra, e com suas proporções de volume e de dimensões agigantadas, Calado equilibra e refrata em seus cortes retos o horror do verde-vênus, do historicamente apresentado como belo.
"Talvez as próprias árvores façam agora parte deste esqueleto (...). Nosso projeto é pô-lo de pé, içá-lo com guindastes e helicópteros até a posição vertical para ver como reage, mas temos medo que sua coluna se quebre. Enquanto isso, procuramos preservá-lo do sol e da poeira, semi-enterrado no chão calcário (...). Ele canta através de nós", anotaria o narrador de "Ele canta" (Nuno Ramos, O pão do corvo).
O núcleo não está no centro. Nem redondo ele é. Parece incompleto, cortado ao meio e em mais um pedaço. Está deslocado, como o asfalto e o óleo queimado colocados dentro da floresta, apontando para outras paisagens híbridas possíveis. Ele parece querer aportar na superfície do objeto talhado em linhas duras e cruas.
O núcleo-olho-boca de Calado mira no descentramento da obra como um todo artificioso - asfalto e óleo queimado - fincado no tropical. E mira no eixo sem-eixo do indivíduo que transita entre tradição e traição, intuição e raciocínio. Do lixo ao luxo culturais. E vice-versa. O Brasil "é o lixo que consome ou tem nele o maná da criação?"Mas Calado é também o espaço que o navio - barco feito de sabão? - ocupa dentro da água. E a "distância vertical da quilha do navio à linha de flutuação", como registra o dicionário. Calado (2003), é abertura e corte. Silêncio no meio do caminho do visitante que penetra a Floresta da Tijuca (maior floresta urbana do mundo), Calado sopala a dicotomia local/universal, natureza e sua imitação.
Não à toa, Calado (2004) é o nome do disco de Rômulo Fróes. E de uma música - não-canção, sem voz, nem letra - do mesmo disco. A potente desolação do objeto abandonado a esmo, transplantado, meteoro caído, atravessa o disco em suas letras e melodias tristíssimas. E aliada a elas a voz de Rômulo Fróes em tons baixos.
Tendo trabalhado como assistente de Nuno Ramos, e sendo a voz que confere presença nas obras do artista plástico, Rômulo Fróes é a voz que melhor traduz os sujeitos cancionais criados pelo cancionista Nuno Ramos.
É na voz de Rômulo, por exemplo, que o sujeito de "Voz mais triste" se desenvencilha de qualquer raio solar, nega os valores da cultura da festa. Ele não se protege do lado sombrio da existência através da ilusão artístico-cancional, diferente do folião comum que faz da mentira poética - da festa das máscaras e aparências - uma realidade.
Ao priorizar e dramatizar a pulsão do sujeito cuja voz não tem companhia, Rômulo Fróes assina parceria e investe na inscrição do indivíduo agoniado por querer ficar de fora do carnaval: da "euforia de três dias".
A voz de Rômulo performatiza a experiência de "Quem como eu / Perdeu o coração / [e] / Pode cantar por nós / Nós que choramos porque a morte existe / Nós que cantamos com a voz mais triste". E performatiza com auto-crítica o samba em sua nervura exposta. Ou o amor: esse "santo pesado que está sem andor".
Se para Clément Rosset a alegria não se distingue da alegria de viver, o sujeito de "Voz mais triste" não se acomoda à vida. A sua alegria é triste porque se fixa no sofrimento e não nela mesma, ou no regozijo incondicional da existência. Viver é pouco. O sujeito quer o raciocínio.
O som melancólico e lamentoso da cuíca (Wellington Moreira) surge como signo - cão uivando - de significação da canção: adensa as considerações trágicas cantadas por Rômulo. Voz humana e som instrumental forjam um sentimento de felicidade pessoal em que o silêncio sirênico indicia a morte eternamente cíclica do indivíduo abandonado na vida: junco perdido diante da imensidão do mar.
Os versos iniciais - "Não faz mal / Estava escrito no céu ou nas mãos / Como uma chuva que não chega ao chão / Ou carnaval / Feito de cinzas, solidão" - cantam o sentimento do sujeito. Ele sabe que entre a vontade (Dioniso) e a representação (Apolo) passa o mundo, a vida, o indivíduo.
O canto de Rômulo Fróes se fricciona e provoca ranhuras em um polo e no outro, conciliando-os, apontando que além do bem e do mal - "Depois do sonho [do abrigo onírico] e da alegria [de viver]" - há apenas o bem e o mal. O sujeito rompe com essa pseudo dialética: canta sua tragédia reconciliando-se com o silêncio em meio à profusão de sons carnavalescos.
Contrário a quaisquer idealização e escape, o sujeito de "Voz mais triste", de Nuno Ramos, critica a cultura da festa, as estruturas do gosto e os horizontes de expectativas. Pede menos exotismo e mais vivência por trás dos refletores. O sujeito usa o canto para como auto-conhecimento: "carnaval feito de cinzas, solidão". E desdobre que o resultado é a "voz mais triste".
O fenômeno estético justifica-se como existência. Ao Calado, de Nuno Ramos, e ao sujeito da canção "Voz mais triste", na interpretação de Rômulo Fróes, pouco importam os raios de sol que atravessam as palmeiras e aquecem suas superfícies: tudo virará cinza. Sob o turbilhão de brilho há a miserabilidade cotidiana das gentes que fazem o carnaval.
Em processo de sofrimento de individuação - o que, de viés, inflama a presença e a necessidade de contato com o outro, o "nós" que aparece na letra -, o sujeito acentua ao máximo a sua diferença em relação ao folião do carnaval, da festa tropical, da brasilidade vã. E se direciona para o silêncio, tonifica a objetivação do silêncio que contem o barulho do todo utópico que somos. Calado ou com voz mais triste ele sente melhor o mundo e estetiza a dor, a ausência de som, a certeza de ser só.
E aqui, no meio, na ponte, há o pressentimento do reestabelecimento de uma unidade. E aqui também mora a alegria, outro entendimento de alegria. Afinal, as rigorosas e ordenadas formas geométricas de Calado não indiciam uma tentativa de tornar sua vida no meio de tanto verde-mata mais suportável? E a "voz mais triste" não é o símbolo de um indivíduo que é feliz exatamente por não querer ter a subjetividade diluída no culto à tropicalidade irracional? No fundo, todos cantamos a mesma canção?

***

Voz mais triste
(Nuno Ramos)

Não faz mal
Estava escrito no céu ou nas mãos
Como uma chuva que não chega ao chão
Ou carnaval
Feito de cinzas, solidão
Quem como eu
Perdeu o coração
Pode cantar por nós
Nós que choramos porque a morte existe
Nós que cantamos com a voz mais triste
No final
Depois do sonho e da alegria
A minha voz sem companhia pode cantar

15 março 2012

Canção desnecessária

Em "O silêncio de Iara", de Guinga e LuisFelipe Gama, o sujeito canta: "Calada / Na sombra / Dos dias / Iara / Querida / Não durmas não / Ah! / Não! / (...) / Se ao menos / Iara / Teus lábios / Parados / Soprassem / Aonde estás, meu bem". O pedido e o desejo do sujeito registram os medos de todo ouvinte: o silêncio da sereia e o abandono.
Como sabemos, Iara é um dos nomes da rainha do mar. Mas Iara tem sua mitologia urdida no folclore da Amazônia. De origem indígena, Iara é sereia de rio. Porém, como não poderia deixar de ser, e a título de curiosidade, de cabelos longos e pretos e de olhos castanhos, Iara é descrita como sendo "de cabeleira de ouro e corpo frio / (...) Com os verdes olhos úmidos", pelo poeta parnasianoOlavoBilac, no poema que leva o nome da sereia.
Seja como for, guardadas as devidas intenções nas apropriações e leituras do mito, Iara é sereia de água doce. E o sujeito criado por Guinga e Gama roga pelo canto dela: pede o não emudecimento da consciência-de-si, pois é na canção que o sujeito se (re)descobre como um ser "na sombra dos dias". Calada, Iara mata o conhecimento que só existe no sopro da voz.
Mais adiante, no mesmo disco - NoturnoCopacabana (2003) - outro sujeito canta os versos da canção de Guinga e Francisco Bosco que dá nome ao disco e reafirma o desejo de ouvir o canto da sereia: "Noite, à beira-mar / Carros vão passar / Por vigilantes sereias / Uns vão seguir / Sem escutar / Com algodão nos ouvidos / Outros vêm morrer / Vêm se afogar / No mar de Copacabanaanaana".
Aqui, sereia (Ana: canora) e musa (Copacabana: narradora) se embaralham, mas não se misturam: enquanto a primeira canta o sujeito de dentro do mar; a outra, por sua vez, inspira o canto do sujeito. Ambas confirmando o papel essencial da phoné, do canto praticado em viva voz.
Interessante notar que "Ana" surge do eco da pronúncia da palavra "Copacabana". Ou seja, A ninfa Eco entra na história para repetir o cantar-desejo do sujeito: ter uma sereia que o cante. Voz que fragmenta a voz do cantor, Eco desenha "Ana" no rebate sonoro da língua. Reverberação sonora do sujeito, Eco corresponde ao ego deste sujeito.
Sobre o assunto, Adriana Cavarero anota: "Mais que repetir palavras, Eco repete sons. Se esses sons, separados do contexto da frase, recompõem-se em palavras que ainda significam alguma coisa, ou melhor, significam outra coisa, esse é um aspecto que diz respeito a quem ouve, não à ninfa. (...) A re-vocalização é, assim, uma dessemantização" (Vozes plurais, p. 195-196).
É deste ato não destinado ao sentido que surgem a canção necessária e a canção desnecessária. O logos de cada uma está tanto na astúcia retórica de cada sujeito, quanto na produção de sentido efetuada pelo ouvinte. "A música ilusória / Quase te atravessa / Sem você dar conta", diz o sujeito de "Canção desnecessária".
Cúmplice do sujeito que pede o canto de Iara e do outro que ouve Ana, o sujeito de "Canção desnecessária", de Guinga e Mauro Aguiar, guardada no mesmo disco das outras, abre seu canto dizendo, diante do silêncio do outro: "Enlace o meu silêncio / E valse a valsa avessa / Que te fiz em pranto".
Metacanção, "Canção desnecessária" desdobra na sonoridade aquilo que é vocalizado - "É valsa em si contrária". E é tomado pela sonoridade que o sujeito produz que ele próprio espera que seu ouvinte se permita ser tomado pelo som do grande amor. Insana e mansa, a valsa embala - dois para lá, três para cá - cantor e cantado. Eis que surge a canção desnecessária, pequena diante do pulsar de um coração.
É na voz de Guinga interpretando a canção que emerge a unicidade do sujeito e, consequentemente, sua importância entre "tanta antimatéria". Desde modo, a "canção desnecessária" sustenta involuntariamente os amantes, posto que os distingue. "Amor que vem na valsa / Mas que só se confessa / Quando a valsa cessa" - no silêncio, olhos nos olhos. A esfera da voz dispara a esfera do sentir.
Importa lembrar que, tempos depois de Mauro Aguiar dar letra à melodia de Guinga, Zé Miguel Wisnik trabalhou a mesma música e compôs a "Canção necessária", cujos versos "se acaso eu te sentir a ponto de fugir / definitivamente / no último segundo / eu grito: pára o mundo / que eu só sei te amar" cantam e contam a urgência de recompor um tempo perdido, de encontrar o encaixe harmônico dos amantes. Amantes que, para além do encontro de gêneros sexuais, são a música e o verbo - amparados na voz de alguém.
"Lancei meias palavras / (...) / prometendo mais / querendo muito mais // Querendo o teu regaço / que num minuto sem igual / você me lesse / não me esquecesse / adivinhasse enfim / não desistisse mais de mim / e ouvisse no meu canto / as tontas entrelinhas / que silenciei / por ti", diz o sujeito de "Canção necessária" ampliando os sentidos de "Canção desnecessária". Uma é canto paralelo da outra. E as duas são o desejo de todo indivíduo: ter uma Iara, uma Ana, um outro em quem se possa ressoar e ir ser no mundo.

***

Canção desnecessária
(Guinga / Mauro Aguiar)

Enlace o meu silêncio
E valse a valsa avessa
Que te fiz em pranto

É valsa em si contrária
Só pisando em falso
Se pressente o chão

A música ilusória
Quase te atravessa
Sem você dar conta

E tanta antimatéria
Sem querer se apossa
Do seu coração

Esqueça o tempo então
E valse um sentimento
Por dentro a valsa esquece o som
Extemporânea
Imaginária
Etérea como o amor
Até quem sabe o Grande Amor
Amor que vem na valsa
Mas que só se confessa
Quando a valsa cessa
Amor

Abrace o precipício
E valse a valsa imersa
Num silêncio insano

É valsa involuntária
mansa em seu ofício
de soar em vão

Canção desnecessária
Quase sempre acessa
Seu fundo oceano

Se você perde o senso
Nasce na memória
Súbito salão

Esqueça o tempo então
(...)

A sorte está lançada
A valsa está cansada
Logo vai cessar

No próximo compasso
Vai sumir no espaço
Vai se dissipar

Enlace o universo
E valse a valsa imensa
Que te fiz sonhando

Por mais que não pareça
nessa valsa avessa
Pulsa um coração

08 março 2012

Essa mulher

Na canção "Mulher de Música", de Tom Zé e Arnaldo Antunes, o sujeito diz: "Mulher de música / melhor ficar na música / porque mulher de música / é coisa de utilidade pública. / E além disso, sinhá de iáiá, / musa é musa e mulher de carne e osso / vem a ser hipotenusa / que me usa, / parafusa, / me recusa / e ainda me acusa".
A distinção entre a "mulher de música" e a "mulher de carne e osso" quer persuadir esta a fazer os dengos que iôiô deseja. Ele sabe que, "hipotenusa", lado oposto de seu ângulo reto (e teso), a mulher é bússola e desorientação: parafusa, recusa e acusa. Assonância e aliteração que reiteram a potência da mulher: da sinhá diante do sujeito (in)voluntariamente submisso.
A expressão "sinhá de iaiá" diz com quem o sujeito da canção está falando: ela é ela, "mulher de carne e osso", "mulher, martírio meu", como canta o sujeito de outra canção. "Você me abraça, me beija, me xinga / Me bota mandinga / Depois faz a briga / Só pra ver quebrar" ("Mulher, sempre mulher", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes). Menos idealizada (musa) e mais próxima (visceral).
Diferente da "mulher de música", da musa habitante do lugar da ficção, ele quer falar de uma mulher à sua frente, acessível ao toque, real. No entanto, a comparação, no fundo, esconde uma justaposição de signos. Emancipada em muitos países, a mulher - musa ou real - colocou em xeque a utilidade do homem. Ou seja, a consciência de também poder fazer, e não simplesmente só ser, fez a mulher trincar o signo homem.
Distante da deusa, da mãe de deus, a "mulher de carne e osso" por, supostamente, ser só do sujeito, é muito mais interessante e desejável. Até porque, de tanto ser acusada, ela assume o "gozar com a própria mão". Tamanha independência assusta e faz o sujeito desejar, ratificando a dicotomia fêmea-macho.
Mas afinal, para que servem os homens em um mundo cada vez mais assumidamente matriarcal? A pergunta que tem atravessado teorias feministas e femininas, desde a mítica greve de sexo das mulheres de Atenas, é resolvida esteticamente por Arnaldo Antunes quando ele se coloca na capa do disco Paradeiro (2001) representado em um boneco de pano pendurado em um varal. É como se os papéis se invertessem. Ou, pior, em seu grito de liberdade, a mulher denegasse a existência do homem. Aliás, no clipe da canção, a atriz, simbolicamente, "fecha" um livro de Balzac.
Na canção "Essa mulher", o sujeito criado por Arnaldo Antunes sintetiza a imagem da capa. "Ela tem um travesseiro mais macio / do que o seu braço / e um acolchoado muito mais / quente que o seu abraço", diz o sujeito cancional. Ou seja, é do lugar do incômodo de não mais saber qual é seu papel na História que o sujeito de "Essa mulher" canta.
Essa mulher não é (não quer ser) musa, nem sereia. Independente para viver seu desejo, ela rejeita o homem até como objeto disso: de desejo. Ela cansou de procurar: "Todos são iguais / Eu sou apenas aquela que lava os seus pratos / Homens, eu sempre pensei ou são reis ou são ratos / Mas são todos reis e ratos", canta subcancionalmente a mulher. Ela se basta: sempre se bastou.
Com o discurso em segunda pessoa, o sujeito não só tenta se desvencilhar deste jogo terrível para ele, como deixa tudo à cargo do outro, a quem tenta persuadir a não querer mais (essa) mulher - "e você ainda quer / essa mulher" - abstendo-se das consequências. Mas sentimos que ele está falando de um coletivo - quando a "sua" é igual à "nossa".
Diferente do sujeito de "Mulher de música", que consegue distinguir a mulher utilidade pública, já que, quando cantada, a mulher da canção é de todo e qualquer ouvinte, da mulher de carne e osso, o sujeito de "Essa mulher" parece ter perdido de vez qualquer lugar na vida da mulher de verdade: "que não sente a sua falta / e quando você chega em casa / ela não sente a sua presença", canta.
Com moldura melódica pop, feito para brincar com o dissabor daquilo que é experimentado, o sujeito da canção "Essa mulher" sugere que o elogio às semelhanças entre homem e mulher, muito aquém de promover uma posição horizontal para todos, muitas vezes esconde o (falso) apagamento das diferenças: das potências de cada parte envolvida. Dando voz ao homem ressentido com as posições psico-sociais perdidas, o sujeito parece dizer que a luta pela igualdade destruiu semelhanças e conciliações possíveis. Ou não.

***

Essa mulher
(Arnaldo Antunes)

ela quer viver sozinha
sem a sua companhia
e você ainda quer
essa mulher

ela goza com o sabonete
não precisa de você
ela goza com a mão
não precisa do seu pau

ela quer viver sozinha
sem a sua companhia
e você ainda quer
essa mulher

que não sente a sua falta
e quando você chega em casa
ela não sente a sua presença

ela tem um travesseiro mais macio
do que o seu braço
e um acolchoado muito mais
quente que o seu abraço

ela quer viver sozinha
sem a sua companhia
e você ainda quer
essa mulher

01 março 2012

O nome da cidade

O aboio é um chamamento que guia, ou quer guiar. Prática usada especialmente na cultura do sertão nordestino, dos vaqueiros que tangem (tocam) o gado, o aboio tem origens diversas. Câmara Cascudo (Dicionário do folclore brasileiro) e Mário de Andrade (As melodias do boi e outras peças) concordam na analogia do aboio com a jubilação melismática do cantochão, por exemplo.
O fato é que o aboio compõe a mítica sonora sertaneja. Salvo engano, a apropriação mais conhecida do aboio pela canção popular está guardada em "Admirável gado novo", de Zé Ramalho. O cancionista une a vocalização sem palavras com a frase-desabafo: "Êh, oô, vida de gado" - ditas com os alongamentos vocálicos e com as inflexões da voz do cantor. Aqui, a voz do cantor toca "vocês que fazem parte dessa massa / Que passa nos projetos do futuro".
O significado do aboio é oferecido não pelo que é dito, mas pelo gesto da voz. Há aqui um logos sonoro rico de desejos e sensações captados pelo ouvinte cansado de "dar muito mais do que receber". O aboio estimula a coragem para seguir em frente: seguir o rumo (certo).
O aboio (sem palavras) condensa e apresenta uma vocalidade pura, remete o ouvinte a um tempo/espaço original, primário, em que a phoné encapsula o conhecimento: o todo-humano. Há uma poética da vocalidade: a experiência sonora suplanta o sentido das palavras. "Rio que não é rio: imagens", como canta o sujeito de "O nome da cidade", de Caetano Veloso.
Nesta canção não há uma cidade Rio definida, pronta, mas uma movência de imagens "Fragmentos de cartas, poemas / Mentiras, retratos") que faz o sujeito da canção chegar ao nome da cidade, nunca à cidade em si. O aboio "Ôôôôôôô ê boi! ê bus!" mescla rural e urbano, antigo e presente, arcaico e civilizado: plasma uma cidade perspectivizada - da expectativa e da presença.
A aliteração "boi bus" rompe a fronteira entre a palavra e o som, anima a historiografia da cidade cantada: do povo (e seus projetos de futuro) que ergueu a megalópole: vida de gado na mobilidade via ônibus.
Em geral, melancólico, apontando o sertão que está em toda parte, o sofrimento do vaqueiro que vê o padecimento do gado e compara com o próprio sofrer, na lida diária, o aboio lança uma melodia "terna e apaixonada" (M. de Andrade) no ar, jubilando o aboiador e o aboiado.
Em "O nome da cidade" o aboio funciona no desejo que o sujeito tem em confrontar o sofrimento de ver o padecimento da cidade, do Rio cantado ("Letras demais, tudo mentindo") e do Rio que ele experimenta ("Ruas voando sobre ruas"). Daí as perguntas: "Será que tudo me interessa? / Cada coisa é demais e tantas / Quais eram minhas esperanças? / O que é ameaça e o que é promessa?".
Cantadas por Adriana Calcanhotto (Senhas, 1992) que, assim como Caetano Veloso, não é carioca, mas assumiu a cidade, essas perguntas guardam o segredo do estrangeiro posicionado entre o deslumbre, a confirmação (daquilo que se diz - canta - sobre a cidade) e a realidade.
Os versos "Cheguei ao nome da cidade / Não à cidade mesma, espessa" são exemplos daquilo que Severo Sarduy ("O barroco e o neobarroco") destaca como um artifício de substituição do objeto poético. Ou seja, sem poder chegar à cidade, o sujeito atravessado pela ideia-da-cidade prolifera signos que "dizem" aquilo que ela é.
"Quem vê, do Vidigal, o mar e as ilhas ou quem das ilhas vê o Vidigal?". Aboiar o mato ("Sertão, sertão!") e aboiar o litoral ("ê mar!") equilibra o sujeito, dá júbilo (nem alegre, nem triste): localiza-o na cidade - "A gente chega sem chegar / Não há meada, é só o fio": toca em esperanças e anuncia cada coisa.
O diálogo intercancional de "O nome da cidade" é com "Corcovado" - "O Redentor, que horror! Que lindo!". E mais tarde, em "Meu rio" (2000), Caetano transcria o verso "Meninos maus, mulheres nuas", em "Rapazes maus, moças nuas".
"Letras demais, todas mentindo". O Rio - a cidade espessa - é inalcançável, está fragmentado, proliferado nos vários versos que cantam - ameaças e promessas - a cidade sem dizer aquilo que ela verdadeiramente é.
Caetano faz uso semelhante do aboio em pelo menos mais uma canção: "Épico" (1972) - "ê, saudade (...) ê, João". Além de dar o nome de "Aboio" a uma canção que fala de uma "urbe imensa" que precisa "tocar/cantar" seus meninos, no disco Tropicália 2 (1993).
O aboio só tem sentido na voz, assim como o Rio parece ser mais e melhor nas "letras demais": mantenedoras da mitologia da cidade. Aboiar purifica, sagra o aboiador. O aboio é a ponte de integração entre aboiador e aboiado. A voz se mistura com o espaço espesso.
"A gente chega sem chegar / Não há meada, é só o fio" promove o rito de inserção do sujeito na cidade. E vice-versa: quem aboia torna-se (sem dualidades) a coisa aboiada. Em "O nome da cidade", o aboio recria, dentro do emissor, a cidade estranha e linda.

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O nome da cidade
(Caetano Veloso)

Ôôôôôôô ê boi! ê bus!

Onde será que isso começa
A correnteza sem paragem
O viajar de uma viagem
A outra viagem que não cessa

Cheguei ao nome da cidade
Não à cidade mesma, espessa
Rio que não é rio: imagens
Essa cidade me atravessa

Ôôôôôôô ê boi! ê bus!

Será que tudo me interessa?
Cada coisa é demais e tantas
Quais eram minhas esperanças?
O que é ameaça e o que é promessa?

Ruas voando sobre ruas
Letras demais, tudo mentindo
O Redentor, que horror! Que lindo!
Meninos maus, mulheres nuas

Ôôôôôôô ê boi! ê bus!

A gente chega sem chegar
Não há meada, é só o fio
Será que pra meu próprio rio
Este rio é mais mar que o mar?

Ôôôôôôô ê boi! ê bus!
Sertão, sertão! ê mar!